sábado, maio 31, 2003
ANTÓNIO RIBEIRO SANCHES
O médico dos "males de amor"
José Milhazes e Rachid Kaplanov
Portugal e a Rússia foram as suas duas pátrias, mesmo se fugiu delas e aceitou o asilo francês em Paris. Em Portugal, escapou-se da vigilância da Santa Inquisição e, na Rússia, às intrigas da corte czarista. Nos dois casos, poderes absolutos que intelectualmente execrava e de que foi unicamente vítima, pois a política não era a sua esfera de intervenção. Foi graças a ele que estes dois países, colocados nos extremos opostos da Europa, estabeleceram ligações culturais, para lá dos regimes políticos que neles vigoraram.
António Nunes Ribeiro Sanches, por indicação de Boerhaave, seu mestre holandês e um dos mais eminentes médicos do seu tempo, foi trabalhar para a Rússia, onde passou dezassete anos (1731-1749). Aí deixou um rasto relevante na ciência e na cultura deste longínquo país.
Ribeiro Sanches deixou as melhores recordações na Rússia principalmente graças à sua actividade no campo da medicina. Quando já exercia as funções de médico da corte de São Petersburgo, o iluminista luso salvou da morte a noiva do grão-príncipe Pedro e futura imperatriz da Rússia, Catarina II, a Grande. Por isso, em 1782, o seu filho e sucessor no trono, Pavel I, exprimiu-lhe publicamente gratidão em Paris. Isso valeu-lhe também uma pensão vitalícia da corte russa.
Já depois de ter abandonado a Rússia, por ter sido acusado de não ter renunciado ao judaísmo, ele nunca se recusou a prestar assistência médica aos nobres russos que o procuravam na capital francesa. É de sublinhar que Ribeiro Sanches era, na época, considerado um mestre incomparável no tratamento de doenças venéreas, o que vinha muito a propósito: os jovens nobres russos (e não só jovens) que visitavam Paris sofriam frequentemente desses "males do amor".
O cientista luso continuou a corresponder-se com colegas seus na Rússia, bem como a dar por correspondência consultas a altos dignatários russos. Mas claro que, tanto na Rússia como em França, os contactos entre Ribeiro Sanches e os russos não se limitavam a temas de medicina. Por exemplo, quando se encontrava a viver em São Petersburgo, ele não só tratava da família real, como também fornecia livros para leitura aos seus membros, incluindo a duquesa Ana de Macklenburgo, futura regente do trono russo.
O enciclopedista português mantinha contactos estreitos com o mundo científico russo, contribuindo para o estabelecimento de relações entre cientistas russos e sábios de outros países da Europa e do mundo. Por sua iniciativa, em 1735, dá-se início à troca de cartas e de livros entre a Academia de Ciências de São Petersburgo (de que Ribeiro Sanches se tornou mais tarde membro) e a Academia Portuguesa de História.
É também ele que está na origem dos contactos entre São Petersburgo e Pequim, onde as sociedades científicas eram dirigidas por jesuítas portugueses. A propósito, é curioso assinalar que a troca de cartas entre os orientalistas russos e os missionários portugueses na China continuaram até meados do séc. XIX, o que fez com que várias dezenas de livros, incluindo alguns em língua portuguesa, transitassem das missões católicas na China para diversas bibliotecas russas, entre elas a Biblioteca Universitária de Irkutsk, na Sibéria, e a Biblioteca da Universidade Estatal de Moscovo.
Correspondia-se com a elite europeia
Outros estrangeirados portugueses, que haviam fugido da Inquisição e se instalaram noutras capitais estrangeiras, estabeleceram também contactos científicos - e não só - com a Rússia. O exemplo mais relevante é o de Jacob de Castro Sarmento, médico judeu de origem portuguesa que residia em Londres. Alguns meses antes da morte de Ribeiro Sanches, João Jacinto de Magalhães, outro estrangeirado português residente também em Londres, físico e popularizador da ciência, torna-se, tal como o seu amigo Sanches, membro correspondente da Academia de Ciências de São Petersburgo.
Os contactos de Ribeiro Sanches não se restringiram a Portugal e à diáspora portuguesa no estrangeiro. Quando se encontrava na Rússia e mesmo depois de partir para Paris, correspondeu-se com cientistas de quase todo o mundo civilizado de então. Entre os seus interlocutores havia ingleses, holandeses, espanhóis, italianos, suíços, latino-americanos, etc. Respondia com prazer e saber aos seus colegas europeus a perguntas que lhes interessavam da história da Rússia. Por exemplo, as informações sobre os peixes da Rússia por ele concedidas ao famoso naturalista francês Buffon foram por este incluídas nas suas obras.
Um espantoso conhecimento da Rússia
Os dirigentes da Academia de Ciências de São Petersburgo tinham em linha de conta a opinião de Sanches quando da eleição de novos membros estrangeiros. O iluminista português dava a conhecer aos seus interlocutores à situação sócio-política e económica na Rússia. Nos anos 70 do séc. XVIII, informava-os das reformas da imperatriz Catarina II, a Grande. Por outro lado, ele comunicava de Paris para a capital russa as transformações que ocorriam nos vários Estados europeus.
Da pena deste ilustre sábio luso saíram numerosas obras sobre a Rússia, muitas das quais continuam nos arquivos à espera de publicação. Alguns manuscritos de Ribeiro Sanches sobre este tema eram considerados perdidos e só foram descobertos em Moscovo, São Petersburgo e Lisboa nos anos 80 do nosso século.
É impressionante a amplitude de interesses científicos de Ribeiro Sanches. Entre os seus tratados e cartas manuscritas, há escritos etnográficos sobre alguns povos do Sul da Rússia, que ele conheceu durante a campanha militar da Crimeia (anos 30 do séc. XVIII), onde exercia funções de médico militar. Nomeadamente, redigiu em manuscrito o único dicionário da língua dos tártaros de Kuban, povo hoje desaparecido. Ribeiro Sanches deixou igualmente escritos sobre os cossacos, ucranianos, povos do Báltico, etc.
Todavia, ele dedicou maior atenção aos russos, suas tradições, costumes, vida económica e agricultura. Na sua conhecida obra "Dos banhos a vapor russos", a única traduzida do francês para russo durante a vida do autor, Ribeiro Sanches analisa o tema não só enquanto médico, mas também como economista.
Ele via nos populares banhos russos um meio universal de tratamento de doenças quando não era possível o acesso a outros tratamentos e recomendou-o aos seus leitores ocidentais.
Quando se encontrava já há vários anos na capital francesa, Ribeiro Sanches tornou-se conselheiro de vários estadistas russos, principalmente no campo da pedagogia e da economia. Ivan Betskoi, um dos grandes reformadores russos do sistema de ensino no reino de Catarina II, reconheceu que frequentemente se orientava pelas recomendações enviadas pelo sábio luso.
Nos seus conselhos aos altos dignitários russos, Ribeiro Sanches não poupava críticas à Igreja Católica, embora fosse muito cauteloso ao abordar temas religiosos. Por exemplo, recomendava não exagerar no ensino do latim nas escolas da Igreja Ortodoxa Russa, considerando que isso poderia conduzir ao aumento da influência do papado romano na Rússia, que transportava em si uma ameaça constante à independência política do país.
Pondo de parte semelhantes exageros ideológicos, raros em Ribeiro Sanches, as suas recomendações são de um saudável realismo. Ao abordar, por exemplo, as reformas no campo agrário na Rússia, ele não ia ao ponto de proibir a liquidação da servidão da gleba neste país (que só ocorreu em Fevereiro de 1861), mas defendia mudanças significativas nesse sistema.
Baseando-se nas reformas do czar Pedro I, "o Grande", o ilustre estrangeirado português aconselhou o marquês de Pombal na sua tarefa de modernização de Portugal.
As belas artes e a agricultura
RIBEIRO SANCHES, que fez parte dos enciclopedistas franceses, tinha uma visão filosófica das ciências sociais e considerava que a auto-subsistência agrícola era fundamental para qualquer país, insistindo, para isso, no incremento das culturas cerealíferas. Nesse aspecto tinha uma visão proteccionista e gostava de discorrer sobre os problemas da agricultura, mesmo quando lhe colocavam questões completamente diferentes.
Quando um seu interlocutor russo lhe perguntou: "Como introduzir as belas-artes na Rússia?", ele respondeu que, primeiramente, era preciso ter camponeses minimamente alimentados e com algum nível de autonomia na sua actividade económica. As belas artes vinham depois.
As recomendações no campo agrário feitas pelo cientista português foram entusiasticamente recebidas pelo seu jovem amigo e admirador, príncipe Dimitri Golitsin, encarregado de negócios da Rússia em Paris, mas, infelizmente, rejeitadas pela imperatriz Catarina II.
Convém dizer que depois de 200 anos de reformas e revoluções, o problema agrário continua por resolver. Mas Ribeiro Sanches enganou-se numa previsão: não obstante a permanente crise agrária, as belas-artes floresceram na Rússia.
Defensor do ensino laico e separação da religião o Estado
Um iluminista para déspotas iluminados
O ESBOÇO de polémica entre António Barreto e frei Bento Domingues (PÚBLICO de 3/1/99 e 17/1/99) sobre a "terceira via" e as inclinações religiosas do governo socialista faria sorrir António Nunes Ribeiro Sanches, se o ilustre físico ainda estivesse entre nós. O médico dos czares, nascido em Penamacor no dia 7 de Março de 1699, foi, ao longo dos seus 84 anos, um paradigma vivo desta discussão que se renova, felizmente noutro contexto, três séculos depois.
A terra beirã onde Ribeiro Sanches nasceu era, ao tempo, uma vila relativamente próspera, com guarnição militar e um castelo fernandino a recordar a sua importância de fortaleza fronteiriça. Os dez anos de idade que distanciam o futuro D. João V do nosso médico vão pesar na vida de Ribeiro Sanches. Quando este nasceu já a fogueira da Santa Inquisição fazia arder corpos e almas no Rossio Lisboeta e de Évora, assim como nos passos de Coimbra e Goa. Os cristãos-novos, grupo a que pertencia Ribeiro Sanches, tinham alimentado a esperança de ver afastados destes reinos o terrível tribunal do Santo Ofício, umas quatro décadas antes. Tarefa vã, apesar de nela se ter esforçado o padre António Vieira, que com esse objectivo deixou as suas terras do Brasil e veio a Lisboa e foi a Roma.
Quando Ribeiro Sanches nasceu já a corte portuguesa recaíra na órbita escolástica, que chegou a ameaçar com um cisma à inglesa caso o Vaticano extinguisse o tribunal inquisitorial. Apesar disso, a infância de António Nunes Ribeiro Sanches foi tranquila. Viveu num ambiente burguês onde a cultura, em especial a leitura, eram prezadas. A conselho do pai iniciou-se na leitura dos clássicos (Plutarco) e dos modernos (Montaigne), mas desobedeceu-lhe secretamente quando este tentou fazer dele um bacharel, entregando-o a um tio advogado.
Aos 15/16 anos foi cursar cânones para Coimbra, mas, às escondidas, estudava medicina. O facto despertou a atenção de um outro tio, este físico, Diogo Nunes Ribeiro, que lhe deu hospedagem e o pôs em contacto com um mestre, Bernardo Lopes do Pinho.
Ribeiro Sanches utilizava o seu próprio corpo como instrumento de análise e procurava ser ele fazer o diagnóstico e a medicar-se. Insatisfeito com o ensino ministrado em Coimbra em 1720 decidiu ir para Salamanca. Aí se doutorou, regressando em 1723 ao país natal, obtendo o partido de médico municipal em Benavente.
Quatro anos depois sentindo os ventos da Inquisição a passarem-lhe pela porta, fez as malas e seguiu para Itália. Saltitou de escola em escola até que em 1728 chegou a Leyden, cidade holandesa onde ensinava Boerhaave, grande mestre do tempo. Admirado com o seu saber, este aconselhou a czarina russa a tomá-lo como médico, quando em 1731 esta lhe pediu o nome de um físico capaz.
Foi uma longa estadia, a que só pôs termo quando temeu que o envolvessem nas intrigas da corte russa, refugiando-se em 1747 em Paris de onde não mais saiu, nem mesmo quando o marquês de Pombal, que prezava o seu conselho lhe garantiu que com ele estaria em segurança em Portugal.
Não quis regressar, disse, porque sem profundas reformas este era "um reino cadaveroso" - qualificativo que António Sérgio recuperou durante o regime salazarista. Mas, por carta, enviou ao ministro absoluto de D. José I os seus pareceres sobre os diversos assuntos de Estado em que é consultado.
Maximiliano Lemos, seu biógrafo ("Ribeiro Sanches – A Sua Vida e a Sua Obra", 1911) diz que a propósito da criação do Real Colégio dos Nobres, foi muito explícito sobre as suas concepções pedagógicas: separação absoluta do sagrado e do profano. O ensino devia ser exclusivamente laico e, sob a direcção de um oficial português, ministrado inteiramente por um oficial português, ministrado inteiramente por professores contratados no estrangeiro.
Com estas orientações não surpreende que morto D. José I e demitido o marquês do Pombal (1777), os seus contemporâneos o tenham apelidado de "estrangeirado", cognome que lhe ficou para além da morte (14/10/1783).
António Melo
"Público" de 07 de Março de 1999.
posted by Luís Miguel Dias sábado, maio 31, 2003
Pedro-o-Grande
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Pedro, o Grande, 1672-1725
“A sede de sangue não pára ainda, e é Sofia que aconselha a mãe de Pedro a entregar o seu irmão às feras para poupar o resto da família. Este comunga, recebe das mãos da czarina uma imagem sagrada, que Sofia supõe poder incutir respeito aos revoltosos, hesitando perante um sacrilégio, e aparece fora da igreja. Estes não hesitam – como hesitariam homens sem possível frenação moral? – arrastam-no pelos cabelos, torturam-no horrivelmente e cortam-no aos bocados. Ainda não satisfeitos reclamam que seja Ivan – o idiota – feito czar. A Assembleia, que já tinha escolhido Pedro, não sabe resistir, e encontra-se a solução do medo – Ivan será primeiro czar e o Pedro segundo czar.
São ambos coroados: um idiota e uma criança de dez anos. Sofia será regente; Natália e seu filho Pedro são afastados de Moscovo. Sofia quer destruir as seitas dos raskolnikis (velhos crentes) e outras já saídas deste cisma. O raskol é a oposição feita às reformas de Nikonio – mudanças de letras, bênção com dois ou três dedos são os grandes motivos de desacordo doutrinário (?!)
Outras seitas, como a dos tolky aparecem: seitas que, regressando ao paganismo vivaz da alma russa, acabam por vezes num sadismo (o Império morreu envolto neste satanismo de Rasputine) orgiástico. A perseguição foi cruel e cuidada: fogueiras, chicotes, etc. Nada se conseguiu de sério, pois não só ficaram estas seitas, mas desenvolveram-se, viveram até protegidas por alguns imperadores e vivem ainda hoje, com máscara nova ou até com a velha máscara do Raskol.
A Rússia entra numa aliança europeia contra o Turco. Sofia entrega o comando ao seu amante, o príncipe Galitzine, que faz uma campanha vergonhosa sem perder a confiança e a dedicação escandalosa da regente. Estes e outros desastres da política externa levantam rumores de rebeldia contra a regente. Ela imagina uma, conjura em que entra sua madrasta e seu irmão Pedro e organiza uma conspiração para o assassinato de Pedro. Este prevê e vai-se refugiar num convento, para onde seguem sua mãe, os boiardos que lhe são dedicados, e os mercenários estrangeiros de Sommer e de Patrieck Gordon, que já Pedro tinha conquistado pelas suas maneiras rudes e francas. Sofia manda-lhe uma deputação de boiardos e depois o patriarca, pedindo-lhe que venha a Moscovo. Pedro recusa-se e o patriarca fica com ele. Sofia recorre mais uma vez aos Streltsy, que, pressentindo do lado de Pedro combatentes e não fáceis vítimas desarmadas, se recusam a qualquer agressão contra o segundo czar. Sofia é vencida, sendo muitos outros executados.
A RÚSSIA PETROVIANA
Pedro toma conta do poder, deixando na penumbra o pobre Ivan, que, em breve desaparece na grande sombra da morte. Com Pedro as veleidades ocidentalistas fazem-se um quase querer consciente, e dizemos quase, porque ainda, mesmo em Pedro, é mais uma paixão que uma vontade. Pedro tem a ansiedade do mar, duma saída da imensa terra russa por um mar aberto., para o amplo oceano das navegações e comércio. Tem o desejo da segurança militar e administrativa e percebe a superioridade plena dos estados europeus, antes, ocidentais. Não é propriamente a cultura espiritual do Ocidente que o seduz e entusiasma, mas as possibilidades técnicas, as riquezas do progresso e da civilização material. A sua infância mesmo revela em Pedro um gesto prático de organização militar; é construtor de fortes e já um apaixonado sonhador da livre vida do mar. Os seus historiógrafos dão-lhe a paixão precoce da pirotecnia, da arte das fortificações, mecânica aplicada e construção naval. Os seus brinquedos são ensaios na arte de governar e combater; os seus companheiros, plebe e técnicos estrangeiros.
Grosseiro, rude e violento, não era, no entanto, um homem gratuitamente cruel; quer dizer: não aparece nele, sem excitações que o despertem, o clássico sadismo do déspota oriental e de tantos tiranos da Rússia. É um dos primeiros russos a Ter uma clara consciência dos deveres profissionais. Para Pedro – antes, para o Pedro não excitado por traições – a Rússia não é uma Quinta sua a tratar segundo o seu bom ou mau capricho. É um chefe, digamos, um funcionário ao serviço da nação. E, como vê toda a prosperidade em certos hábitos e conhecimentos ocidentais, ele irá, de chicote se preciso for, conduzir o seu povo para o Oeste, para um destino ocidental. Único ou primeiro a fazê-lo? Não; já vimos tentativas sérias nesse sentido.
Mas Pedro-o-Grande porá uma violência e uma paixão novas e entusiásticas ao serviço da sua grande ideia reformadora. E um temperamento excessivo, uma pletora de forças animais e psicológicas. Tentará tudo, desejará tudo; quereria que a Rússia renascesse, num dia, tão europeia como as mais progressivas nações da Europa. A sua vida passa-se no bairro estrangeiro, em camaradagem com os eus mercenários, em licenciosas reuniões em que mulheres fáceis acham nele o encanto das forças selvagens, a frescura e a violência duma natureza exuberante. O seu contacto com a Europa é essencialmente feito através de subordinados ou de pessoas, que esperam os seus favores e cujos costumes são mais da Europa de vida fácil que da grande Europa cultural.
É através de alguns aventureiros mais ou menos indisciplinados e cépticos, que ele conhece directamente a Europa. Não se aquieta e viaja; viaja incógnito, corre a Europa, trabalhando até como operário. Espera encontrar nela o segredo, que o obsidia. Mas da alma profunda da culta Europa cristã nada pode conhecer. É a técnica, a arte de construir, a arte militar que ele vê, e da Europa cultural, apenas vagas impressões de epígonos e vulganizadores dum cartesianismo degerenado. Nas suas reuniões mais ou menos licenciosas do bairro estrangeiro de Moscovo violenta um dia uma mulher feia que a ninguém interessa, dizendo-lhe num misto de sensualismo grosseiro e de «sensiblerie» compassiva, que vai cometer a proeza extraordinária de a violar. E fá-lo diante de todos, numa falta de pudor de animal palpitante de excessivas e irreprimíveis violências. No entanto, e apesar de tudo, ele é no fundo um recalcado desde a infância. E, se muitas das suas violências são filhas da libertação de tais recalcamentos, um complexo de medo e desconfiança lhe ficou sempre nos longes da sua psicologia, desde os assassinatos e ignomínias de que foi trágica testemunha aos seus dez anos de idade.
A sua primeira campanha (militar) destina-se à conquista do mar de Azov, e nela verifica, de pronto, a necessidade de construir uma frota marítima, com a qual consiga a conquista desejada. Depois dessa conquista, encarrega industriais e capitalistas de arranjarem dinheiro para uma esquadra do mar Negro e manda estudantes à Inglaterra, Veneza e Holanda para futuros engenheiros da Rússia. Vem ele mesmo à Europa Ocidental e é nessa altura que Sofia faz corre a notícia da sua morte, tentando revoltar os Streltsy contra os boiardos de Pedro e contra os estrangeiros ocidentais. A revolta é vencida pelas tropas fiéis de Pedro, e este, que volta à pressa da Europa, dá aprimeira satisfação ao velho complexo do medo e da vingança. Logo que chega corta pessoalmente as barbas (era contra as superstições russas não deixar crescer os cabelos, etc.) aos mais altos dignitários, obriga-os a vestir à moda ocidental, à francesa, e toma depois conta dos Streltsy. A execução destes dura meses, sendo assassinados mais de um milhar e insepultos durante todo o Inverno. Sofia é encarcerada num convento, e, das janelas do seu quarto, são pendurados alguns dos seus cooperadores revolucionários.
A sedução do mar leva-o a uma série de lutas com a Suécia. É numa dessas guerras que le encontra, como doméstica dum pastor protestante, a alegre Marta que virá a ser a sua esposa Catarina. Depois de váriasflutuações da sorte das armas, sai a Pedro-o-Grande vitorioso da Suécia e de posse das terras do mar Báltico. Manos feliz foi a Segunda guerra com a Turquia, que acabou pela cedência de Azov. A guerra com a Pérsia, de que sai vencedor, permite-lhe estabelecer o melhor caminho para a Ásia, do Báltico para Ladoga Volga e através do mar Cáspio. As lutas com a Suécia acabam com a posse pela Rússia da Estónia, Livónia, Carélia, Viborg, todas as ilhas do golfo de Riga e da Finlândia.
Pedro fizera do exército miliciano um exército permanente de profissionais e conseguira sujeitar os irrequietos cossacos. Sofrera derrotas, mas rtivera sempre a obstinação de recomeçar, melhorando as condições. Depois da vitória definitiva sobre os suecos, o Senado e o Sínodo pedem-lhe que tome o título de imperador e que, acrescente ao seu nome o adjectivo Grande. «PedroI, Imperador e autocrata de todas as Rússias» alargara o seu vastíssimo império a limites ainda não alcançados. As suas guerras não o fazem todavia esquecer a missão reformadora, embora tirem a esta a continuidade e o sossego que lhe seriam necessários. Organiza a vida política, administrativa e religiosa. Cria o Senado e o Sínodo ... (...)
A Rússia é dividida administrativamente em governos, províncias e distritos.
O Sínodo é a mais terrível arma e o mais claro sinal das influências protestantes no ânimo de Pedro. A Igreja perde a pouca liberdade que possuía e passa a ser mais um departamento da vida do Estado. O clero não pode receber bem tal reforma; mas o imperador não hesita e lança mão de todas as armas mesmo daquelas que veremos mais tarde na Rússia bolchevista. Uma primeira declaração de liberdade dos cultos, que é mais tarde inteiramente suprimida, serve para separar e enfraquecer a Igreja ortodoxa. A caricatura da ortodoxia é empregada para a desvalorizar. São organizadas mascaradas religiosas: uma assembleia de militares caricaturando a hierarquia religiosa e celebrando missas ao deus Baco sentado num barril, com os próprios cânticos da Igreja russa. Tudo isto contribuiu para uma proliferação de seitas, algumas daquela natureza sádica e orgiástica, de complexos eróticos, dum pansexualismo mal frenado na violenta e instável psicologia russa. O próprio Pedro terá mais tarde de opor uma disciplina a tanta vagabundagem psíquica.
As suas reformas sociais desconsideram a nobreza de origem, que, de resto, fora sempre instável e sem força moral perante os caprichos dos czares, substituindo-a pela nobreza burocrática. Os nobres deviam o serviço ao estado e, quando proprietários, só o eram sob a condição dos serviços prestados. Por seu lado os camponeses, que se tinham vistos presos à gleba e pagavam ao proprietário os impostos em géneros, são agora obrigados a pagar directamente ao Estado e em dinheiro, sendo o proprietário responsável por tal pagamento. (...)
A política económica de Pedro, que é indirectamente errada quanto à agricultura, é inovadora em relação à indústria. (...)
Em todas estas obras mostrou o imperador um sincero desejo de progresso e uma grande esperança de elevar o nível do seu povo. No entanto, tudo isto é muito precário. (...)
À oposição do clero (ele é para muitos o verdadeiro Anticristo, como o será mais tarde o seu admirador Lenine) junta-se a oposição de muitos russos da nobreza, incluindo o seu filho, que se deixa levar até ao perigo duma conspiração sendo mandado sujeitar ao interrogatório e tortura pelo próprio pai. O desgraçado czarvitch fora sempre dominado pela obstinação paterna. (...)
O feitio trágico de Pedro-o-Grande, aquela antiga criança de dez anos chicoteada pela orgia sangrenta das tropas de Sofia, anda sempre de par com o seu histrionismo. (...)
O histrionismo trágico de Pedro é característico de toda a sua persanalidade. (...)
Este misto de dedicação à causa pública e de bárbara cólera e irreprimível violência vê-se na fantástica criação da sua cidade – Petersburgo ou a cidade de Pedro. A estátua de Falconet o mostra: um cavalo empinado sobre uma abismo, impassível de violência retesada no máximo, feito bronze de força e domínio. A cidade é, para Pedro, a afirmação do resgate da Rússia – a amplidão dos mares conquistada. É um sonho secular feito acção dum homem, vencendo nações, homens e elementos.
Assim será a cidade de Pedro. Ele sonha, e, cada dia, um sonho novo vem modificar o sonho anterior. É o desequilíbrio da raça, o caminho dum sonho que se não faz vontade mas obstinação delirante. Plano sobre plano, construção e destruição, sonho-névoa, que se levanta e tomba na mediocridade da realização, para de novo se erguer mais veemente e mais louco. Em tudo isto só uma coisa não conta – o material humano. Os faraós do Egipto ergueram em pedra milenária o seu medo da morte, o protesto do homem sem Cristo contra uma vida sem ressurreição em eternidade. O chicote dos condutores de escravos foi a batuta dessa bárbara sinfonia, em que os homens perseguidos pela morte, mas ignorantes do amor, se queriam salvar na excepção do seu aristocratismo.
Petersburgo será erguida sobre emanações de lama e lodo, e sobre os cadáveres de mais de dez mil trabalhadores escravos. É esta cidade que o imperador chamará «o meu Paraíso», não se lembrando que dez mil almas aí tiveram o seu Inferno, não sonhando sequer, que, dos seus fundamentos, poderão sair um dia, em pleno século XX, imprecações, que a façam um Inferno de milhares e milhares de russos.
Pedro-o-Grande morre, não deixando testamento, nem indicação de sucessor. Ele tiha coroado a sua «Katarinucha» e é ela que lhe vai suceder; assentando-se no trono de todas as Rússias esta aventureira adúltera.” (...)
COIMBRA, Leonardo, “A Rússia de hoje e o Homem de sempre”, (Obras de Leonardo Coimbra), Porto, Lello & Irmãos – Editores, 1983, p.p. 761–771.
posted by Luís Miguel Dias sábado, maio 31, 2003
quinta-feira, maio 29, 2003
COMEMORAÇÕES - São Petersburgo, 300 anos
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Heidi Bradner
A face-lift at 300: Workers make repairs in front of the General Staff Arch in St. Petersburg to prepare for festivities this month that commemorate the city's founding.
O CAVALEIRO DE BRONZE
Conto de Petersburgo
“INTRODUÇÃO
Na margem das ondas desertas
Cismava ele uma alta ideia,
Olhando o longe. Em frente as águas
Corriam, largas mísera barca
Sulcava o rio solitária.
Negrejavam izbás pelas abas
Musguentas e empantanadas,
Couto do finês indigente;
E as brenhas, virgens dos raios
Do sol oculto na neblina,
A toda a volta restolhavam.
Cismava ele:
Será aqui erguida uma cidade
Para arremeter o Sueco,
Ai do vizinho emproado.
Destinou-nos a natureza
Rasgar aqui uma janela
Para a Europa, os pés fincar
À beira-mar. Pelas ondas novas
Singrarão todas as bandeiras
E ao largo iremos festejar.
Cem anos correram e ergueu-se
Da lama e do brejo escuro
A urbe moça, em fausto e orgulho,
Da meia-noite a maravilha;
Onde o fínico pescador,
Triste enteado da natura,
Sozinho nas ribas avaras,
Dantes lançava as redes gastas
Às obscuras águas, hoje
Pelas vivas margens fervilhantes
Montoam-se esbeltos gigantes
De palácios e torres; barcos
Do mundo inteiro em chusma
Acorrem aos cais opulentos;
Vestiu-se o Nevá de granito;
Pontes penderam sobre as águas;
Cobriram-se as suas ilhas
De jardins verdes, verde-escuros,
E, ante a capital menina,
Já a velha Moscovo se apaga,
Como, frente à nova czarina,
Se apaga a viúva purpurada.
Amo-te, urbe e obra de Pedro,
Amo teu rigor e esbelteza,
Tua corrente majestosa,
Nevá, tuas margens de pedra,
Dos teus gradis amo o bordado
De ferro, e a transparente
Claridade, brilho sem lua,
Das tuas noites pensativas:
Leio, escrevo sem luz, claras
Se abrem as massas dormidas
Das ruas ermas, clara se recorta
A agulha do Almirantado,
E, vedando ao escuro da noite
A entrada nos céus dourados,
Corre um sol a render o outro,
Nem uma hora dando à noite.
Amo teu ar parado, o gelo
Do teu Inverno de achar,
As faces meninas – rosas vivas
Nos teus trenós pelo Nevá,
Do baile o brilho, o rumorejo,
Da estroina jovem amo a ceia,
Taças espumantes esfuziando,
E do ponche a chama azul. (…)
Refulge, urbe de Pedro, sê
Inquebrantável como a Rússia,
Que a ti se resigne também
A natureza enfim domada,
Que as ondas finlandesas esqueçam
Seus ferros e o ódio velho
E não turvem com inútil raiva
O sono eterno de Pedro!
Eram terríveis esses tempos,
Inda é fresca a sua memória…
Amigos meus, empreendi
Dar-vos deles a minha história.
Triste conto enceto aqui.” (…)
PUCHKIN, Aleksandr (trad. Nina Guerra e Filipe Guerra), “O Cavaleiro de Bronze e outros poemas”, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p.p. 35-41.
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Heidi Bradner
A statue at the Anichkov bridge.
Fotografias do nytimes.com
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 29, 2003
GEORGE ORWELL
1955, Stepney filming George Orwell´s 1984.
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1942, BBC Eastern Service broadcasters, including Orwell and T. S. Eliot
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1944, Eileen Blair and son Richard
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George Orwell
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 29, 2003
EPISTOLÁRIO
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Orwell, en los 40, cuando trabajó en la BBC
Orwell en España
Epistolario inédito
A finales de junio se cumple el centenario de Eric Blair, más conocido como George Orwell, autor esencial del pasado siglo. Además, el autor de 1984 tuvo una fuerte relación con España, reflejada en su Homenaje a Cataluña y en un libro de inminente aparición, Orwell en España (Tusquets), que contiene sus escritos sobre la guerra civil y un apasionante epistolario inédito que hoy publica en parte El Cultural. Porque el 26 de diciembre de 1936 George Orwell, que acababa de cumplir 33 años, llegó a Barcelona. Venía, escribió, “a parar el fascismo”, pero en 1937 una bala perdida la atravesó el cuello, dejándole una cuerda vocal inutilizada. Estas son sus cartas.
CARTA A EILEEN BLAIR
¿5? de abril de 1937Hospital de Monflorite
Queridísima,
Eres realmente una esposa maravillosa. Cuando vi los puros se me derritió el corazón. Me van a resolver el problema del tabaco durante mucho tiempo. McNair dice que no tienes que preocuparte por el dinero, que puedes pedirlo prestado y devolverlo cuando llegue B.E. con las pesetas, pero no te pongas a mendigar, y por encima de todo no te quedes sin comida ni sin tabaco, etc. No me gusta oír que has pillado un resfriado y te sientes agotada. Tampoco te esfuerces demasiado ni te preo-cupes por mí, porque ya estoy mucho mejor y espero volver al frente mañana o pasado. Por suerte, la infección de la mano no se ha extendido y ya está casi bien, aunque la herida, como es lógico, sigue abierta. Puedo moverla bastante bien y hoy tengo intención de afeitarme, cosa que no hago desde hace unos cinco días. El clima ha mejorado mucho, es primavera de verdad casi todo el tiempo, y el aspecto de la tierra me hace pensar en el jardín de nuestra casa, y me pregunto si habrán florecido ya los alhelíes y si el viejo Hatchett estará sembrando las patatas. Sí, la crítica de Pollitt era muy mala, aunque buena como publicidad, ya me entiendes. Imagino que se habrá enterado de que estoy con los milicianos del POUM. No presto mucha atención a las críticas del “Sunday Times” [...] Me temo que de nada sirve confiar en que vayan a darme un permiso antes del 20 de abril. En mi caso es un fastidio, y esto pasa por haber cambiado de unidad; muchos hombres con los que vine al frente están ya de permiso. Por otro lado hay indicios –no sé cuánto hay que fiarse de ellos– de que esperan una acción dentro de poco, y no tengo intención de irme de permiso cuando está por concretarse, si puedo evitarlo. Todos se han portado muy bien conmigo mientras he estado en el hospital, me han visitado todos los días, etc. Creo que ahora que el clima está mejorando puedo aguantar otro mes sin indisponerme. ¡Qué descanso tendremos después, incluso para ir a pescar, si es posible!
[...] Gracias mil por enviarme las cosas, querida; cuídate y sé feliz. Le dije a McNair que hablaría con él sobre la situación en cuanto me dieran el permiso, y quizá tú podrías buscar el momento oportuno para decirle algo sobre mi deseo de ir a Madrid, etc. Adiós, amor mío. Volveré a escribirte pronto. Con todo mi amor
Eric
CARTA A CYRIL CONNOLLY
8 de junio de 1937Sanatori Maurín, Sania, Barcelona
Querido Cyril,
No sé si estarás en la ciudad durante las próximas semanas. Si te parece y quieres que nos veamos, manda unas líneas confirmándolo a 24 Crooms / Hill. Greenwich/ S.E. 10.
Si consigo los papeles de la licencia, estaré en casa en menos de quince días. He recibido una herida fea, en realidad no muy grave, un balazo en el cuello, destinado a matarme, pero que sólo me ha producido dolores nerviosos en el brazo derecho y me ha dejado casi sin voz. Los médicos de aquí no parecen estar seguros de si recuperaré la voz o no. Yo creo que sí, porque unos días la tengo menor que otros, pero en cualquier caso quiero estar ahí para que me traten como es debido. He estado leyendo uno de tus artículos sobre España en un “New Statesman” de febrero. Es todo un mérito que el “New Statesman” sea el único periódico [...] donde no se expresa el punto de vista comunista. El reciente artículo de Liston Oak sobre los problemas de Barcelona era muy bueno e imparcial. Yo he vivido todo el asunto y sé que casi todo lo que han dicho los periódicos es mentira. Gracias también por decir públicamente que a buen seguro escribiré un libro sobre España, porque tal es mi intención en cuanto se ponga bien este puñetero brazo. He visto cosas maravillosas y por fin creo en serio en el socialismo, porque hasta ahora no creía. En general, aunque siento no haber visto Madrid, me alegro de haber estado en un frente relativamente poco conocido, entre anarquistas y gente del POUM en vez de entre brigadistas, como habría sido el caso si hubiera venido a España con credenciales del PC y no con las del ILP. Lástima que no te acercaras a nuestra posición para verme cuando estuviste en Aragón. Me habría encantado invitarte a un té en un refugio. Un abrazo,
Eric BLAIR
CARTA A STEPHEN SPENDER
2 de abril de 1938
Jellicoe Ward, Preston Hall, Kent
Apreciado Spender,
Espero que estés bien. En realidad te escribo para decirte que me gustaría que leyeras mi libro español (título Homenaje a Cataluña) cuando salga, que será en breve. Tengo miedo de que después de haber leído aquellos dos capítulos pienses que todo el libro es propaganda trotskista, cuando la verdad es que la controversia se limita a la mitad o menos de la mitad. Detesto escribir de estas cosas, pues me interesan mucho más mis propias experiencias, pero por desgracia en esta asquerosa época en que vivimos las experiencias personales son inseparables de las polémicas, las intrigas, etc. A veces tengo la impresión de que desde comienzos de 1937 no estoy vivo como hay que estarlo. Recuerdo que cuando hacía guardia en las trincheras de la zona de Alcubierre recitaba sin parar Félix Randal, el poema de Hopkins, que imagino que conocerás, para matar el tiempo en medio de aquel frío espantoso; creo que fue la última vez que me sentí sensible a la poesía. Desde entonces ha desaparecido la sensibilidad. No sé si podré regalarte un ejemplar del libro, porque ya he tenido que encargar unos de diez más y es carísimo.
Llevo en este lugar unas tres semanas. Por lo que dicen, me temo que es tuberculosis lisa y llana, a todas luces una lesión antigua y de escasa gravedad. Dicen que tengo que guardar cama en absoluto reposo durante tres meses y que luego probablemente estaré bien. Eso significa que no podré trabajar [...].
Me siento abatido por lo que está ocurriendo en España. Todos los pueblos y aldeas que conocí están siendo arrasados, y supongo que perseguirán a los pobres campesinos que tan bien se portaron con nosotros para devolverlos al redil de los terratenientes. Dudo que volvamos alguna vez por España si vence Franco. [...] He visto que los dos estamos en el comité de patrocinadores, o lo que sea, de SIA. También está Nancy Cunard, lo que no deja de ser cómico, porque fue ella quien me envió aquella idiotez que luego se publicó en forma de libro (Los escritores toman partido). Le respondí muy enfadado con una nota en la que me temo que hablaba de ti en términos poco halagüeños, ya que por entonces no te conocía personalmente. Pese a todo, estoy por completo a favor de este asunto de SIA si en verdad se trata de enviar comida y demás y no de esa basura de firmar manifiestos que cuentan lo malo que es todo. Escríbeme si tienes algún momento libre. Me gustaría verte cuando salga de aquí. También podrías venir tú y quedarte unos días. Un abrazo
Eric BLAIR
in www.elcultural.es
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 29, 2003
CRÓNICAS
O sal da terra
Clara Ferreira Alves
“Roma estava cheia de peregrinos. Aos bandos, como aves mansas, atrás de um guia com uma bandeirinha de cor num pau, ou uma flor, um girassol de tecido, uma rosa de nylon. (…)
Estes peregrinos não vinham apenas admirar a Basílica do Vaticano ou a Capela Sistina. Vinham celebrar os 83 anos do Papa João Paulo II. (…)
Um grande chefe espiritual é um espectáculo necessário ao mundo, e basta olhar para aquela humanidade abraçada pelas colunas de Bernini, para perceber como um mundo sem Deus, qualquer que ele seja, é um mundo desolado. A metafísica comunista deu direitos aos trabalhadores, mas não deu a beleza, o mistério do sagrado e da transcendência, sem os quais não existiria História e Arte. (…)
Na Praça de São Pedro, uma criança numa cadeira de rodas parecia uma boneca desarticulada, uma boneca de trapos a respirar, os efeitos da paralisia cerebral. Os pais olhavam em paz para o grande «écran» que transmitia a palavra e a imagem do Papa. Junto à Fontana di Trevi, o lugar onde a opulência física da Ekberg se molhava e dançava no filme de Fellini, um grupo de jovens paralíticos sorria sentado nas cadeiras de rodas, admirado de ver ali, viva, a água verde-azul da fonte dos sonhos, com aqueles pés gigantes e perfeitos, aqueles músculos de mármore mais possantes do que os seus músculos atrofiados. E havia nas caras uma felicidade grande, o dia tinha sido bom. (…)
A fé, e o Papa, juntaram em Roma uma parte da humanidade que acredita na candura e na generosidade onde outros verão o ódio. O sal da terra. Na verdade todos eles vêm por causa de Cristo, e pelos seus sinais. Uns procuram-no no Vaticano, outros numa tela de Caravaggio ou Rafael, outros na Pietà de Michelangelo, abandonado e morto nos braços da mãe. Outros bas catacumbas ou na Roma Antica. (…)
Numa esquina, uma velha, decerto albanesa, ou de um desses países do Leste que fornecem os novos pobres da Europa. Toda vestida de preto, estava de joelhos encostada a um a bengala feita de um cabo de chapéu-de-chuva sem varetas. Não se lhe via a cara, que olhava para o chão, e tremia, abanando o corpo em convulsões ritmadas. Só o chapéu sem varetas a guardava de cair. Tinha os pés descalços e sujos, pés de muita idade. E, como não olhava os que passavam apressados e estava de costas para o céu, tinha o prato das moedas vazias. Parecia estar à beira de cair. Na Via del Corso, cheia de gente, ninguém olha para ela. Os bandos de peregrinos, com a cara levantada, seguem o guia, o girassol, a rosa a bandeira. Amarela ou vermelha. Para não se perderem. A velha treme lá em baixo, por baixo da humanidade, tão perto do meu Gesù. Voltei a passar por ele na Piazza di Spagna, um menino ao colo de uma Madonna de uns dezoito anos, belíssima como a das Anunciações dos Mestres, uma Madonna de Rafael. Era uma cigana romena, quase uma criança, de mão estendida. Menos triste do que a velha tremente, mais bonita do que as mulheres caras que quase a espezinham ao passar, com aquele bronzeado perpétuo e aqueles doirados das italianas ricas. A velha e a mãe com o menino são invisíveis, rentes ao chão, porque os muito pobres nunca estão à altura do resto do mundo, acocoram-se, sentam-se, ajoelham-se, rastejam. Suplicam, num plano inferior ao dos deuses. Tanta gente em Roma à procura de Jesus e passando por ele sem o ver, foi o que eu pensei. Nós, o sal da terra. “
in Única, Expresso n.º 1595 de 24 de Maio de 2003.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 29, 2003
TEATRO
Do Teatro Nacional São João, Porto, recebemos uma bela edição do programa para Maio-Julho de 2003. No envelope, que para coleccionadores é uma preciosidade, vinha escrito a cor de sangue este fragmento do Hamlet.
"«[…] Como todas as ocasiões contra mim conspiram
E arpoam a tarda vingança. Que é um homem,
Se o primeiro bem e trato do seu tempo
É só comer e dormir? Um animal, não mais.
Decerto quem nos fez com tão lato discernir,
Não nos deu
Tal capacidade e razoar quase divino
Para em nós criar verdete. Seja pois por
Letargo animal ou por abjecto escrúpulo
De com atenção excessiva no acto de cismar,
Pairo indeciso sem saber
Por que vivo para dizer que isto há-de ser feito,
Quando tenho causa e vontade, força e meios
Para fazê-lo. Exemplos vis como terra acenam-me,
Veja-se este exército de tal aparato e monta,
Comandado por um gentil e fino príncipe,
Cujo espírito, inflado pela ambição divina,
Faz gaifonas ao evento que há-de vir,
Expondo tudo o que é mortal e incerto
Ao que a sorte, a morte e o perigo criam,
Por uma mera casca de ovo. Que dizer de mim,
Que tenho um pai morto, uma mãe poluída,
Transtornos vários na razão e ânimo,
E tudo abismo no sono, humilhado
Pela morte iminente de vinte mil homens
Que, por uma fantasia e astúcia do acaso,
Vão para a cova como para a cama? […]»
Hamlet (Acto IV, cena 4), de William Shakespeare
O Teatro Nacional São João em tempo de Guerra?
Leia-nos.
RICARDO PAIS"
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 29, 2003
quarta-feira, maio 28, 2003
LITERATURA
A Biblioteca de Babel
By this art you may contemplate the variation
of the 23 letters…
The Anatomy of Melancholy, part 2,
sect. II, mem. IV
“O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercados por parapeitos baixíssimos. De qualquer hexágono vêem-se os pisos inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte estantes, a cinco longas estantes por lado, cobrem todos os lados menos dois; a sua altura, que é a dos pisos, mal excede a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito saguão, que vai desembocar noutra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do saguão há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir de pé; o outro, satisfazer as necessidades finais. Por aí passa a escada em espiral, que se afunda e se eleva a perder de vista. No saguão há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que serviria esta duplicação ilusória?); eu prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito… A luz provém de umas frutas esféricas que têm o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.
Tal como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, se calhar do catálogo dos catálogos; agora que os meus olhos quase não conseguem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasci. Morto não faltarão mãos piedosas que me atirem pela balaustrada; a minha sepultura será o ar insondável; o meu corpo precipitar-se-á longamente até se corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que é infinita. Eu afirmo que a Biblioteca é interminável. Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença: A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e cuja circunferência é inacessível.” (…)
BORGES, Jorge Luís (trad. José Colaço Barreiros), Porto, Colecção Mil Folhas, 2003, p.p. 63 e 64.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, maio 28, 2003
terça-feira, maio 27, 2003
POST ESQUECIDO NO PRELO
MARIA JOÃO AVILEZ E MARTIN SCORSESE
Na sua crónica no Expresso, de 5 de Abril de 2003, Maria João Avilez, diz que “No Brasil a guerra é outra. (…)
Falo é do poderosíssimo, armadíssimo, «outro estado», o crime organizado, que actua com regras próprias e tanto poder que fecha bairros e ruas, tranca o comércio onde quer, paralisa os transportes, espalha o terror e mata na maior impunidade e sabe-se como ela fermenta o crime e aduba a insegurança". (…)
Cara Maria João Avilez, a descrição, que acabamos de citar, sobre o “uso” do poder nas maiores metrópoles (mega) brasileiras (e também do mundo), parece-nos que se pode aplicar a outras (metrópoles), cujos Estados sejam, democráticos.
Dizemos democráticos, porque os regimes não democráticos, tem outras especificidades.
Porque a juntamos, aqui, com Martin Scorsese?
Simples. Apenas, porque, no seu mais recente filme, Gangs of New York, Martin Scorsese, retrata as mediações que, políticos eleitos, têem de fazer, para preservar a ordem, ou seja, para não descontentarem o seu «outro estado».
Parece-nos, que a lucidez de Scorsese é notável, em relação aos nossos dias. Contudo, como seria hoje, reconhecer que existem estas mediações? Seria colocar a democracia em perigo, não lhe parece? Não lhes parece?
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 27, 2003
PINTURA
"Amadeo de Souza Cardoso nasceu a 14 de Novembro de 1887 em Manhufe, freguesia de Mancelos, no concelho de Amarante. Fez estudos liceais em Amarante e frequentou a Academia de Belas Artes de Lisboa em 1905, tentando seguir o curso de Arquitectura que interrompeu para partir para Paris, em 1906, instalando-se, então, em Montparnasse.
Frequentou ateliers preparatórios para o concurso de admissão às Beaux-Arts parisienses, ainda, com destino a Arquitectura, vindo, no entanto, a dedicar-se exclusivamente à Pintura, tendo frequentado a Academia Viti do pintor espanhol Anglada Camarasa. Nesta primeira época realizou várias caricaturas e algumas pinturas marcadas por aspectos naturalistas e impressionistas.
Em 1910 fez uma estadia de alguns meses em Bruxelas e em 1911 expôs trabalhos no Salon des Indépendants, em Paris, havendo-se aproximado progressivamente das vanguardas e de artistas como Modigliani, Brancusi, Archipenko, Juan Gris, Robert e Sonia Delaunay.
Em 1912 publicou o álbum XX Dessins e expôs no Salon des Indépendants e no Salon d’Automne. Em 1913 tomou parte, com oito trabalhos, nos Estados Unidos da América, no Armory Show, aí restando algumas das obras expostas, hoje patentes ao público nos museus americanos. Nesse ano participou ainda no Herbstsalon da Galeria Der Sturm, em Berlim. Em 1914 encontrou-se em Barcelona com Gaudi, parte para Madrid onde é surpreendido pela guerra. Regressou a Portugal, instalando-se em Manhufe e casou no Porto com Lucia Pecetto que conhecera em Paris, já, em 1908.
Pintou com grande constância, refez algumas obras no seu atelier da Casa do Ribeiro, cultivou a amizade com Eduardo Viana, Almada Negreiros e os Delaunay (que então se instalaram em Vila do Conde). Em 1916 expõe no Porto 114 obras como título Abstraccionismo que serão também expostas em Lisboa, num e noutro caso com novidade e algum escândalo.
Em 25 de Outubro de 1918 Amadeo morre em Espinho vítima da "pneumónica" que então grassava em Portugal."
in www.geira.pt/MMASouzaCardoso/
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 27, 2003
segunda-feira, maio 26, 2003
PRECIOSIDADES
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Sello postal argentino de 1987, dibujo de Néstor Martín, producido por iniciativa del Jorge Eduardo Padula Perkins
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, maio 26, 2003
domingo, maio 25, 2003
OS LIVROS DA NOSSA VIDA
Pergunta à blogosfera:
"-Para terminar, le voy a hacer otra pregunta convencional: si tuviera que pasar el resto de sus días en una isla desierta con cinco libros, ¿cuáles elegiría?"
posted by Luís Miguel Dias domingo, maio 25, 2003
DIÁLOGOS
En 1963, en París, Mario Vargas Llosa, en aquel entonces toda una promesa de las letras peruanas, tuvo la ocasión de entrevistar a uno de sus ídolos: el escritor argentino Jorge Luis Borges.
Este es el texto que hemos desempolvado de sus archivos personales para inaugurar nuestra sección de inéditos y rarezas en su página oficial.
-Discúlpeme usted, Jorge Luis Borges, pero lo único que se me ocurre para comenzar esta entrevista es una pregunta convencional: ¿cuál es la razón de su visita a Francia?
-Fui invitado a dos congresos por el Congreso por la Libertad de la Cultura, en Berlín. Fui invitado también por la Deutsche Regierum, por el gobierno alemán, y luego mi gira continuó y estuve en Holanda, en la ciudad de Amsterdam, que tenía muchas ganas de conocer. Luego mi secretaria María Esther Vázquez y yo seguimos por Inglaterra, Escocia, Suecia, Dinamarca y ahora estoy en París. El sábado iremos a Madrid, donde permaneceremos una semana. Luego, volveremos a la patria. Todo esto habrá durado poco más de dos meses.
-Tengo entendido que asistió al Coloquio que se ha celebrado recientemente en Berlín entre escritores alemanes y latinoamericanos. ¿Quiere darme su impresión de este encuentro?
-Bueno, este encuentro fue agradable en el sentido de que pude conversar con muchos colegas míos. Pero en cuanto a los resultados de esos congresos, creo que son puramente negativos. Y, además, parece que nuestra época nos obliga a ello, yo tuve que expresar mi sorpresa -no exenta de melancolía-, de que en una reunión de escritores se hablara tan poco de literatura y tanto de política, un tema que es más bien, bueno, digamos tedioso. Pero, desde luego, agradezco haber sido invitado a ese congreso, ya que para un hombre sin mayores posibilidades económicas como yo, esto me ha permitido conocer países que no conocía, llevar en mi memoria muchas imágenes inolvidables de ciudades de distintos países. Pero, en general, creo que los congresos literarios vienen a ser como una forma de turismo, ¿no?, lo cual, desde luego, no es del todo desagradable.
-En los últimos años, su obra ha alcanzado una audiencia excepcional aquí, en Francia. La "Historia universal de la infamia" y la "Historia de la eternidad" se han publicado en libros de bolsillo, y se han vendido millares de ejemplares en pocas semanas. Además de "L'Herne", otras dos revistas literarias preparan números especiales dedicados a su obra. Y ya vio usted que en el Instituto de Altos Estudios de América Latina tuvieron que colocar parlantes hasta en la calle, para las personas que no pudieron entrar el auditorio a escuchar su conferencia. ¿Qué impresión le ha causado todo esto?
-Una impresión de sorpresa. Una gran sorpresa. Imagínese, yo soy un hombre de 65 años, y he publicado muchos libros, pero al principio esos libros fueron escritos para mí, y para un pequeño grupo de amigos. Recuerdo mi sorpresa y mi alegría cuando supe, hace muchos años, que de mi libro "Historia de la eternidad" se habían vendido en un año hasta 37 ejemplares. Yo hubiera querido agradecer personalmente a cada uno de los compradores, o presentarle mis excusas. También es verdad que 37 compradores son imaginables, es decir son 37 personas que tienen rasgos personales, y biografía, domicilio, estado civil, etc. En cambio, sí uno llega a vender mil o dos mil ejemplares, ya eso es tan abstracto que es como si uno no hubiera vendido ninguno. Ahora, el hecho es que en Francia han sido extraordinariamente generosos, generosos hasta la injusticia conmigo. Una publicación como "L'Herne", por ejemplo, es algo que me ha colmado de gratitud y al mismo tiempo me ha abrumado un poco. Me he sentido indigno de una atención tan inteligente, tan perspicaz, tan minuciosa y, le repito, tan generosa conmigo. Veo que en Francia hay mucha gente que conoce mi "obra" (uso esta palabra entre comillas) mucho mejor que yo. A veces, y en estos días, me han hecho preguntas sobre tal o cual personaje: ¿por qué John Vincent Moon vaciló antes de contestar? Y luego, al cabo de un rato, he recapacitado y me he dado cuenta que John Vincent Moon es protagonista de un cuento mío y he tenido que inventar una respuesta cualquiera para no confesar que me he olvidado totalmente del cuento y que no sé exactamente las razones de tal o cual circunstancia. Todo eso me alegra y, al mismo tiempo, me produce como un ligero y agradable vértigo.
-¿Qué ha significado en su formación la cultura francesa?; ¿algún escritor francés ha ejercido una influencia decisiva en usted?
-Bueno, desde luego. Yo hice todo mi bachillerato en Ginebra, durante la primera guerra mundial. Es decir que durante muchos años, el francés fue, no diré el idioma en el que yo soñaba o en el que sacaba cuentas, porque nunca llegué a tanto, pero sí un idioma cotidiano para mí. Y, desde luego la cultura francesa ha influido en mí, como ha influido en la cultura de todos los americanos del Sur, quizá más que en la cultura de los españoles. Pero hay algunos autores que yo quisiera destacar especialmente y esos autores son Montaigne, Flaubert -quizá Flaubert más que ningún otro-, y luego un autor personalmente desagradable a través de lo que uno puede juzgar por sus libros, pero la verdad es que trataba de ser desagradable y lo consiguió: Leon Bloy. Sobre todo me interesa en Leon Bloy esa idea suya, esa idea que ya los cabalistas y el místico sueco Swedenborg tuvieron pero que sin duda él sacó de sí mismo, la idea del universo como una suerte de escritura, como una criptografía de la divinidad. Y en cuanto a la poesía, creo que usted me encontrará bastante "pompier", bastante "vieux jouer", rococó, porque mis preferencias en lo que se refiere a poesía francesa siguen siendo la Chanson de Roland, la obra de Hugo, la obra de Verlaine, y -pero ya en un plano menor- la obra de poetas como Paul-Jean Toulet, el de las "Contrerimes". Pero hay sin duda muchos autores que no nombro que han influido en mí. Es posible que en algún poema mío haya algún eco de la voz de ciertos poemas épicos de Apollinaire, eso no me sorprendería. Pero si tuviera que elegir un autor (aunque no hay absolutamente ninguna razón para elegir un autor y descartar los otros), ese autor francés sería siempre Flaubert.
-Se suele distinguir dos Flaubert: el realista de "Madame Bovary" y "La educación sentimental", y el de las grandes construcciones históricas, "Salambó" y "La tentación de San Antonio". ¿Cuál de los dos prefiere?
-Bueno, creo que tendría que referirme a un tercer Flaubert, que es un poco los dos que usted ha citado. Creo que uno de los libros que yo he leído y releído más en mi vida es el inconcluso "Bouvard y Pecuchet". Pero estoy muy orgulloso, porque en mi biblioteca, en Buenos Aires, tengo una 'editio princeps' de Salambó y otra de la Tentación. He conseguido eso en Buenos Aires y aquí me dicen que se trata de libros inhallables, ¿no? Y en Buenos Aires no sé qué feliz azar me ha puesto esos libros entre las manos. Y me conmueve pensar que yo estoy viendo exactamente lo que Flaubert vio alguna vez, esa primera edición que siempre emociona tanto a un autor.
-Usted ha escrito poemas, cuentos y ensayo. ¿Tiene predilección por alguno de esos géneros?
-Ahora, al término de al carrera literaria, tengo la impresión que he cultivado un solo género: la poesía. Salvo que mi poesía se ha expresado muchas veces en prosa y no en verso. Pero como hace unos diez años que he perdido la vista, y a mí me gusta mucho vigilar, revisar lo que escribo, ahora me he vuelto a las formas regulares del verso. Ya que un soneto, por ejemplo, puede componerse en la calle, en el subterráneo, paseando por los corredores de la Biblioteca Nacional, y la rima tiene una virtud mnemónica que usted conoce. Es decir, uno puede trabajar y pulir un soneto mentalmente y luego, cuando el soneto está más o menos maduro, entonces lo dicto, dejo pasar unos diez o doce días y luego lo retomo, lo modifico lo corrijo hasta que llega un momento en que ese soneto ya puede publicarse sin mayor deshonra para el autor.
-Para terminar, le voy a hacer otra pregunta convencional: si tuviera que pasar el resto de sus días en una isla desierta con cinco libros, ¿cuáles elegiría?
-Es una pregunta difícil, porque cinco es poco o es demasiado. Además, no sé si se trata de cinco libros o de cinco volúmenes.
-Digamos, cinco volúmenes.
-¿Cinco volúmenes? Bueno, yo creo que llevaría la "Historia de la Declinación y Caída del lmperio Romano" de Gibbons. No creo que llevaría ninguna novela, sino más bien un libro de historia. Bueno, vamos a suponer que eso sea en una edición de dos volúmenes. Luego, me gustaría llevar algún libro que yo no comprendiera del todo, para poder leerlo y releerlo, digamos la "Introducción a la Filosofía de las Matemáticas" de Russell, o algún libro de Henri Poincaré. Me gustaría llevar eso también. Ya tenemos tres volúmenes. Luego, podría llevar un volumen cualquiera, elegido el azar, de una enciclopedia. Ahí ya podría haber muchas lecturas. Sobre todo, no de una enciclopedia actual, porque las enciclopedias actuales son libros de consulta, sino de una enciclopedia publicada hacia 1910 o 1911, algún volumen de Brockhaus, o de Mayer, o de la Enciclopedia Británica, es decir cuando las enciclopedias eran todavía libros de lectura. Tenemos cuatro. Y luego, para el último, voy a hacer una trampa, voy a llevar un libro que es una biblioteca, es decir llevaría la Biblia. Y en cuanto a la poesía, que está ausente de este catálogo, eso me obligaría a encargarme yo, y entonces no leería versos. Además, mí memoria está tan poblada de versos que creo que no necesito libros. Yo mismo soy una especie de antología de muchas literaturas. Yo, que recuerdo mal las circunstancias de mi propia vida, puedo decirle indefinidamente y tediosamente versos en latín, en español, en inglés, en inglés antiguo, en francés, en italiano, en portugués. No sé si he contestado bien a su pregunta.
-Sí, muy bien, Jorge Luis Borges. Muchas gracias.
in www.clubcultura.com/clubliteratura/clubescritores/vargasllosa/raros_borges.htm
posted by Luís Miguel Dias domingo, maio 25, 2003
TEATRO
"CENA II
Roma – Fórum
Entram BRUTO e CÁSSIO e uma chusma de cidadãos.
CIDADÃO
Queremos que nos dêem explicações. Queremos explicações!
BRUTO
Então, segui-me e concedei-me audiência, amigos. – Cássio, ide por outra rua; repartiremos o povo entre nós. – Aqueles que me quiserem ouvir falar, fiquem aqui; os que quiserem ouvir falar Cássio, sigam-no. Públicas satisfações da morte de César hão-de ser-vos dadas.
1.º CIDADÃO
Eu quero ouvir falar Bruto.
2.º CIDADÃO
Eu ouvirei Cássio. Comparemos os seus argumentos quando os tivermos ouvido aos dois. (Cássio sai, seguido de alguns cidadãos. Bruto sobe aos Rostros.)
3.º CIDADÃO
O nobre Bruto vai falar. Silêncio!
BRUTO
Tende paciência até ao fim. Romanos, compatriotas, amigos, atendei a minha causa e conservai-vos em silêncio a fim de melhor me ouvirdes. Crede na minha honra e respeitai-a, se quiserdes crer-me. Julgai-me segundo a vossa sapiência, despertai os vossos sentidos a fim de que vos seja possível julgar-me conscienciosamente. Se há alguém nesta assembleia amigo de César, dir-lhe-ei que por mais amigo que dele fosse, não era capaz de ter por César o amor que Bruto lhe dedicava. Se esse amigo perguntar porque foi então que Bruto se revoltou contra César, eis qual será a minha resposta: Eu era amigo de César, mas era muito mais amigo de Roma. Preferiríeis que César vivesse e morrêssemos nós todos escravos, ou que César morresse para nós vivermos como homens livres? César era meu amigo: eu choro-o. Ele foi feliz, folgo com isso. Foi valoroso, presto-lhe as minhas honras. Mas, como era ambicioso, eu matei-o. Eis lágrimas para o chorar, porque o amava; alegria pela sua fortuna, veneração pelo seu valor, e a morte pela sua ambição! Qual é aqui o homem assaz vil que queira ser escravo? Se houver um, que fale, pois eu ofendi-o! Qual é aqui o homem assaz bárbaro para não querer ser romano? Se houver um, que fale, pois eu ofendi-o! Qual é aqui o homem assaz desprezível para não amar a pátria? Se houver um, que fale, pois eu ofendi-o! Espero que me respondam.
CIDADÃOS (falando todos ao mesmo tempo)
Tal homem não existe, Bruto, não existe!
BRUTO
Então, não ofendi ninguém. Não fiz a César senão o que vós teríeis feito a Bruto. As razões da sua morte estão inscritas no Capitólio. Elas não lhe atenuam a glória no que merecia louvores, nem lhe exageram as culpas pelas quais sofreu a morte. (Entram António e outros com o cadáver de César.) Aqui vem o corpo de César, pranteado por Marco António. Sem ter tomado parte nenhuma na conjura, dela beneficiará, terá um lugar na República. Qual de vós não lucrará assim com esta morte? Retiro-me, afirmando o seguinte: «Matei o meu melhor amigo por amor de Roma; conservo o punhal que o matou para mim próprio, no caso do meu país querer dispor da minha vida.»
CIDADÃOS
Viva Bruto! Viva Bruto!
1.º CIDADÃO
Levemo-lo em triunfo até sua casa!
2.º CIDADÃO
Erijamos-lhe uma estátua no meio de todos os seus antepassados!
3.º CIDADÃO
Que seja César!
4.º CIDADÃO
As melhores virtudes de César vão ser coroadas em Bruto.
1.º CIDADÃO
Conduzamo-lo a casa com aplausos e aclamações.
BRUTO
Compatriotas…
2.º CIDADÃO
Silêncio! Silêncio! Bruto vai falar.
1.º CIDADÃO
Silêncio!
BRUTO
Meus bons compatriotas, deixai que eu parta só; e por consideração para comigo, ficai aqui com António. Prestai homenagem ao cadáver de César e honrai o discurso que António vai pronunciar, celebrando a glória de César, como por nós foi autorizado a fazer. Suplico-vos que ninguém daqui saia, excepto eu, até que António acabe de falar. (Sai.)
1.º CIDADÃO
Silêncio! Ouçamos Marco António!
3.º CIDADÃO
Que suba à tribuna. Ouvi-lo-emos. – Nobre António, subi.
ANTÓNIO
Fico-vos muito obrigado por me ouvirdes, em consideração a Bruto. (Sobe.)
4.º CIDADÃO
Que diz ele de Bruto?
3.º CIDADÃO
Diz que nos está muito reconhecido por o ouvirmos, em consideração a Bruto.
4.º CIDADÃO
Será bom que não diga uma única palavra má relativamente a Bruto…
1.º CIDADÃO
César era um tirano.
3.º CIDADÃO
Não há dúvida, e foi uma felicidade para nós que Roma se visse livre dele.
2.º CIDADÃO
Silêncio! Ouçamos o que António poderá dizer.
ANTÓNIO
Nobres romanos…
CIDADÃOS
Silêncio! Escutem!...
ANTÓNIO
Amigos, romanos, compatriotas, prestai-me atenção. Vim para sepultar César, não para o louvar. O mal que os homens fazem vive depois deles. O bem que puderam fazer permanece quase sempre enterrado com os seus ossos. Que seja assim para César. O nobre Bruto disse-vos que César era um ambicioso. A ser isso verdade, a culpa era grave, e César dolorosamente a expiou. Com a autorização de Bruto e dos outros (porque Bruto é um homem honrado, assim como todos os outros são honrados) venho falar nos funerais de César. Ele era, para mim, um amigo fiel e justo. Mas Bruto diz que ele era ambicioso, e Bruto é um homem honrado. Ele trouxe a Roma numerosos cativos, cujos resgates encheram os cofres públicos. Era César ambicioso por isso? Quando o pobre gemeu, César chorou. A ambição deveria ser dum estofo mais rude. Mas Bruto diz que ele era um ambicioso, e Bruto é um de bem. Todos vós viste, nas Lupercais, que três vezes uma coroa real lhe foi apresentada, e que três vezes ele a recusou. Era isso ambição? Contudo, Bruto diz que ele era um ambicioso, e não há dúvida que Bruto é honesto. Eu não falo para reprovar o que Bruto disse; mas estou aqui para dizer o que sei. Todos vós o amáveis antigamente, e não era sem motivo. Porque, pois, não o pranteais hoje? O que é que vos impede disso? Ó razão, onde estás tu, razão? Refugiaste-te nas brutas feras e os homens ficaram sem ti! Sede indulgentes para comigo. O meu coração está ali no esquife de César; e vejo-me obrigado a calar-me até recuperar ânimo.
1.º CIDADÃO
Parece-me que tem muita razão no que diz.
2.º CIDADÃO
Se bem considerares a coisa, verás que César foi vítima duma grande injustiça.
3.º CIDADÃO
Pensais como eu, senhores! Tenho medo de que venha outro pior do que ele.
4.º CIDADÃO
Tomastes bem sentido nas palavras de António? César não quis aceitar a coroa; portanto é certo que ele não era ambicioso.
1.º CIDADÃO
Se isso se provasse, alguém o havia de pagar caro!
2.º CIDADÃO
Pobre alma! Tem os olhos vermelhos como fogo por tanto chorar!
3.º CIDADÃO
Em Roma não há outro homem mais nobre do que António.
4.º CIDADÃO
Atenção! Ele vai começar outra vez a falar.
ANTÓNIO
Ontem, ainda a palavra de César fazia tremer o mundo e agora ei-lo por terra e ninguém, por mais humilde que seja, lhe paga o seu tributo de respeito. Ó meus amigos! Se eu estivesse disposto a excitar os vossos corações e os vossos espíritos à rebelião e à cólera, teria de ser injusto para com Bruto e para com Cássio, que, todos o sabeis, são homens honrados. Não quero; prefiro antes ser injusto para com o morto, injusto para comigo mesmo, injusto para com todos vós, do que sê-lo para com homens tão honrados. Mas eis aqui um pergaminho, com o selo de César, que encontrei no seu quarto. É o testamento dele. Se o povo conhecesse este testamento, que não faço tenção de ler, iria beijar as feridas do corpo de César, molhar o lenço no seu sangue sagrado, mendigaria um dos seus cabelos, para guardá-lo como a essas relíquias que à hora da morte se mencionam entre as últimas vontades, e que são transmitidas como um legado precioso à posteridade!
1.º CIDADÃO
Queremos ouvir o testamento! Lede-o, Marco António!
CIDADÃOS
O testamento! O testamento! Queremos ouvir o testamento de César!
ANTÓNIO
Tende paciência, nobres amigos; não devo lê-lo. Não convém que fiqueis sabendo quanto ele vos amava. Vós não sois de pau, vós não sois de pedra, vós sois homens; e, sendo homens, se ouvísseis ler o testamento de César, isso inflamar-vos-ia e tornar-vos-ias furiosos. Não convém que fiqueis sabendo que sois seus herdeiros, porque, se o soubésseis, o que viria a suceder?
4.º CIDADÃO
Lede o testamento! Queremos ouvi-lo, António! Deveis ler-nos o testamento, o testamento de César!
ANTÓNIO
Sossegai! Quereis esperar um momento? Fui mais longe do que queria, ao falar-vos. Fui injusto – e disso tenho medo – para com os homens honrados que, com seus punhais, assassinaram César. Sim, tenho medo disso.
4º. CIDADÃO
Homens honrados! Traidores é o que eles são…
CIDADÃOS
O testamento! O testamento!
2.º CIDADÃO
São celerados! Assassinos! O testamento! Lede o testamento!
ANTÓNIO
Quereis, pois obrigar-me a ler o testamento? Fazei um círculo em redor do cadáver de César para que eu possa mostrar-vos aquele que fez este testamento. Devo descer? Quereis dar-me licença?
1.º CIDADÃO
Saltai!
2.º CIDADÃO
Descei! (António desce da tribuna.)
3.º CIDADÃO
Tendes a nossa autorização.
4.º CIDADÃO
Ponhamo-nos em círculo. Rodeemos o cadáver.
1.º CIDADÃO
Afastemo-nos do esquife, desviemo-nos do cadáver.
2.º CIDADÃO
Dai lugar a António, ao nobilíssimo António.
ANTÓNIO
Não me aperteis tanto! Recuai um pouco.
CIDADÃOS
Para trás! Para trás! Lugar a António.
ANTÓNIO
Se tendes lágrimas, preparai-vos para derramá-las. Todos vós conheceis este manto. Lembro-me do dia em que pela primeira vez César o envergou; foi por uma tarde de Verão, na sua tenda, quando venceu os Nérvios. Olhai! Neste ponto foi atravessado pelo punhal de Cássio. Vede que rasgão lhe fez neste ponto o invejoso Casca. Foi aqui que bruto, o bem-amado, o feriu, e quando arrancou o maldito ferro, vede com que rapidez o sangue de César espadanou, golfando pelas veias fora para se certificar se era ou não Bruto, bem o sabeis, era o génio familiar de César! Só vós, ó deuses, sabeis com que ternura César o amava! Esta punhalada foi de todas a mais cruel. Quando o nobre César o viu feri-lo, a ingratidão, mais poderosa do que o ferro dos traidores, aniquilou-o completamente! Então, o seu magnânimo coração despedaçou-se, e, encobrindo o rosto com este manto, o grande César caiu ao pé da estátua de Pompeu, toda banhada de sangue. Que queda, meus compatriotas! Eu, vós, nós, todos, caímos com ele, enquanto a sanguinolenta traição cantou vitória sobre nós! Agora chorais! Bem vejo; sentis o poder da compaixão; são lágrimas generosas, essas. Ó almas cheias de bondade, chorais somente porque vedes o manto despedaçado do nosso César? Olhai! Olhai todos para aqui! Vede-o! É ele desfigurado; foi neste estado que os traidores o puseram!
1.º CIDADÃO
Ó lamentável espectáculo!
2.º CIDADÃO
Ó nobre César!
3.º CIDADÃO
Ó dia desditoso!
4.º CIDADÃO
Ó traidores! Ó celerados!
1.º CIDADÃO
Ó sangrentíssimo espectáculo!
2.º CIDADÃO
Nós o vingaremos! Vingança! Corramos! Para a frente! Investiguemos! Queimemos! Incendiaremos! Matemos! Massacremos! Que não viva mais um só dos traidores!
ANTÓNIO
Esperai, concidadãos!
1.º CIDADÃO
Silêncio! Ouçamos o nobre António!
2.º CIDADÃO
Não só o ouviremos, mas segui-lo-emos e morreremos com ele.
ANTÓNIO
Meus bons amigos, meus ternos amigos! Não seja eu quem vos excite a uma tão repentina revolta! Aqueles que praticaram este acto são pessoas dignas, se bem que eu não possa adivinhar as razões particulares que os incitaram a proceder assim! São homens ponderados, dignos, que, sem dúvida alguma, vos hão-de dar explicações. Eu não vim aqui, meus amigos, para captar os vossos corações. Eu não sou um orador como Bruto, mas, todos o sabeis, um homem simples, franco, que é amigo dos seus amigos; eles próprios não o ignoram, esses que publicamente me deram licença para falar dele. Não tenho inteligência, nem palavras, nem nobreza, nem gesto, nem expressão, nem valor oratório para estimular o sangue dos homens. Contento-me em falar com toda a franqueza; não vos dei novidades; mostro as feridas do generoso César, pobres, muito pobres bocas mudas, e peço-lhes que falem por mim. Mas se eu fosse Bruto e Bruto fosse António, teríeis aqui um António que desencadearia a vossa cólera, que daria a cada ferida de César uma voz capaz de comover as pedras de Roma e de fazer com que se erguessem para a revolta.
CIDADÃOS
Revoltar-nos-emos!
1.º CIDADÃO
Queimaremos a casa de Bruto!
3.º CIDADÃO
Partamos! Vamos à procura dos conspiradores!
ANTÓNIO
Tende paciência, compatriotas; ouvi-me ainda.
CIDADÃOS
Silêncio! Ouçamos António, o muito nobre António!
ANTÓNIO
Amigos! O que ides fazer não o sabeis ainda. Em que foi que César mereceu tanto amor? Ai! Não o sabeis? É preciso pois que eu vo-lo diga. Esquecestes o testamento de que vos falei há pouco?
CIDADÃOS
É verdade! O testamento! Detenham-nos e ouçamos o testamento!
ANTÓNIO
Eis esse testamento, selado pela mão de César. Deixa a cada cidadão romano, a cada simples particular, setenta e cinco dracmas.
2.º CIDADÃO
Ó nobilíssimo César! Vingaremos a tua morte!
3.º CIDADÃO
Ó real César!
ANTÓNIO
Ouvi-me com paciência.
CIDADÃOS
Silêncio!
ANTÓNIO
Além disso, lega-vos todos os seus recreios particulares, pomares, vergéis, jardins recentemente plantados na margem do Tibre. Deixa-vos isto para sempre, a vós e aos vossos herdeiros, como lugares públicos para gozo e distracção vossa! Ah! César era assim. Quando tereis vós outro parecido?
1.º CIDADÃO
Nunca mais! Nunca mais! Vamos! Partamos! Partamos! Queimemos em sagrado o seu cadáver e com os tições deitemos fogo às casas dos traidores. Levantemos o corpo!
2.º CIDADÃO
Vamos buscar lume!
3.º CIDADÃO
Despedacemos os bancos!
4.º CIDADÃO
Quebremos as cadeiras, as janelas, tudo! (Saem com o cadáver.)
ANTÓNIO
Deixemos agora caminhar as coisas. Ó mal! Tu puseste-te a caminho, segue a direcção que quisseres. (Entra o Servo.) Então, amigo, que há?
SERVO
Senhor, Octávio já está em Roma.
ANTÓNIO
Onde?
SERVO
Ele e Lépido estão em casa de César.
ANTÓNIO
Vou imediatamente visitá-lo. Chega muito a propósito. A Fortuna está a nosso favor e com tal disposição de ânimo que nos dará tudo.
SERVO
Ouvi-lhe dizer que Bruto e Cássio tinham como loucos, fugido a toda a brida dos seus cavalos pelas portas de Roma.
ANTÓNIO
Tiveram, sem dúvida, algum aviso da maneira como eu amotinei a plebe. Leva-me junto de Octávio." (Saem.) (…)
SHAKESPEARE, William (trad. DR. Domingos Ramos), Júlio César, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1988, p.p.101-118.
posted by Luís Miguel Dias domingo, maio 25, 2003
sábado, maio 24, 2003
CORRESPONDÊNCIA
Recebemos um convite para ir visitar o novo blog Linha dos Nodos .
Parabéns. Gostámos muito de aí ler o Manuel Damásio.
Na sua apresentação, esclarecem, "Linha dos nodos (astr.): a intersecção entre o plano de uma órbita e um plano de referência. Une dois pontos opostos da órbita, o nodo ascendente e o nodo descendente.
Linha dos nodos (blog): linha entre dois pontos da rede. Weblog de discussão, opinião, leituras, Ciência e Artes, criado e mantido por David Luz.
Cumprimentos.
posted by Luís Miguel Dias sábado, maio 24, 2003
TERTÚLIA
Caro JPP, Abrupto
Comecemos pelo fim, para voltarmos ao princípio.
A força da poiesis continua e continuará, pois o Homem não é uma proposição que precise de ser demonstrada. Escreveu Leonardo Coimbra, “A vida é como é, e, por mais que se queira fazer do homem um teorema, ele será sempre uma alma, tendo, a vibrar, no fundo do seu ser e em natureza primeira, um clamoroso e invencível apelo do Infinito.”
Mesmo aqueles que crêem na morte de Deus, de uma forma ou de outra, aproximam-se do Absoluto, seja através de um poema, de uma pintura, de uma escultura, da arquitectura, do cinema, do teatro, etc. Mesmo que não acreditem, estão a descrever um caminho, que, nos tenta levar à perfeição, à pureza, ao transcendente, logo a Deus.
Confessámos, que a sua expressão “oceano de esterilidade” nos recordou, por razões opostas, o belíssimo filme e obra-prima (na nossa opinião) Solaris de Andrei Tarkovski (o de Soderbergh ainda não vimos). Neste filme, um cientista viaja para uma estação espacial, próxima do planeta Solaris, onde se têem verificado “estranhos fenómenos”, com os cientistas lá residentes. Este cientista, parte do pressuposto, que o que lá vai encontrar se explicará facilmente pela ciência.
A esterilidade, neste caso, está, para nós, no estado de alma, que leva este cientista até à estação. O que não conseguir explicar não existe. Contudo, a sua permanência na estação, mudar-lhe-á a vida e por consequência a visão que tinha do mundo. Um cientista a tentar explicar fenómenos de outro planeta, quando ainda, não se compreendia a si nem aos seus semelhantes!
Tudo isto, para dizer, que a esterilidade, que nos pode ter já atingido segundo o JPP, não atinge, pensámos nós, os poetas e artistas sublimes (e a História pode provar que houve sempre uma elite que esteve sempre à frente do seu tempo), nós é que podemos não os compreender, o que é bem diferente.
Relativamente ao século XXI e às ameaças sérias de armamentos nucleares, químicos e biológicos, temos que formular uma questão prévia: qual e quem é o mundo que está no século XXI?
Note que esta dialéctica que aqui esboçamos, entre vários mundos, é da responsabilidade de toda a humanidade. Repudiamos os conceitos de culturas e civilizações superiores. Não sabemos o que isso é. Podemos é colocar o problema nas elites dos diferentes mundos, que com excelentes condições, tinham a obrigação de fazer mais e melhor, e não apropriar-se daquilo que é de todos. Não o fazendo, aparecem sempre disponíveis e “executantes” para cometer actos loucos e horrorosos.
Aceitamos, isso sim, a diferença e o respeito mútuo. Adiante que a reflexão levar-nos-á…
O planeta é só um. O Homem, de hoje, um património de inumeráveis gerações. Deus não é culpado da acção do Homem. O Homem é que tem de responder pelos seus actos.
Condenamos retaliações vis, traiçoeiras e horrorosas, mas como podemos, hoje, compreender que dois terços da humanidade, vive com menos de um euro por dia?
O que faríamos nós, habitantes do hemisfério norte, e mundo ocidental, se estivéssemos no outro hemisfério? Faríamos o possível e o impossível para chegar ao mundo onde se deitam alimentos ao lixo. As tentativas de entrada no hemisfério norte, não são válidas? Ter comida, cuidados de saúde, habitação e momentos de lazer, não é o mínimo no século XXI, para já não falar nos séculos anteriores? “Somos todos culpados de tudo e eu mais do que todos os outros”. Dir-se-á, e as elites dos países de origem, nada fazem? Adiante que a reflexão levar-nos-á…
Qual o centro da questão então?
Sabendo que quase toda a organização de um estado, parte de um sistema político, várias questões se colocam: quem são hoje as elites políticas, tanto a nível nacional (de cada estado) como a nível das organizações internacionais? Como se orientam? Que objectivos tentam primeiramente alcançar? Como os tentam alcançar? Como tratam a diferença?
As respostas, a estas questões, levar-nos-ão à nossa condição primeira como seres humanos, e assim sendo, podemos voltar a subir à Montanha.
posted by Luís Miguel Dias sábado, maio 24, 2003
sexta-feira, maio 23, 2003
LITERATURA
“Quando, de um momento para o outro, se sente o desejo do incomparável, do fabuloso, do inovador, para onde se vai? Mas era claro! O que estava ele ali a fazer? Que erro o seu! Era para lá que queria ter ido! Não demorou a corrigir esse erro e anunciou imediatamente no hotel que partia. Semana e meia depois após a sua chegada à ilha, um veloz barco a motor levava-o de novo, juntamente com a sua bagagem, por entre a neblina matinal e através das águas, até à base naval, onde só desembarcou para atravessar o pontão, que o conduziu ao convés húmido de um navio que se preparava a todo o vapor para largar rumo a Veneza. (…)
Que escolha feliz para a sua viagem! - aventurou entretanto – Ah! Veneza! Que cidade maravilhosa!! É fonte de atracção irresistível para a pessoa instruída, tanto pela sua história como pelos seus encantos de hoje. (…)
E ali estava de novo diante dos seus olhos, a acolhê-lo ao desembarque, aquela praça de maravilha indiscutível e única, aquela brilhante combinação de obras arquitectónicas fantásticas que a república oferecia ao olhar rendido do navegante que se aproximava: o esplendor delicado do Palácio e a Ponte dos Suspiros, as colunas do leão e do santo à beira da água, o flanco em relevo do fabuloso templo, a perspectiva do portal e do gigantesco relógio. Observando tudo isto, pensava para consigo que entrar em Veneza por terra, pela estação de caminho-de-ferro, é como entrar num palácio pela porta de trás e que jamais alguém se deveria abeirar da mais inacreditável das cidades de outro modo que não fosse, por barco, mar alto. (…)
Haverá alguém que não tenha de reprimir um assomo de frémito, um secreto alvoroço, ao pôr o pé numa gôndola veneziana pela primeira vez ou após uma longa ausência? O curioso veículo, dádiva intacta de tempos boladescos, de um preto apenas igualável no mundo ao de um caixão, lembra aventuras mudas e proibidas na noite suspensa, apenas cortada pelo sulco do remo na água, e lembra ainda mais a própria morte, o ataúde, rituais sombrios e a última viagem silenciosa. E ter-se-á reparado que o assento de uma dessas barcas, aquela cadeira de braços envernizada numa laca funerária e estofada num preto baço e apagado, é o assento mais macio, mais requintado, mais embalador do mundo? (…)
Como redobrava o silêncio em sua volta! Não se distinguia senão o chapinhar dos remos sulcando a água, o marulhar das ondas embatendo contra a ponta arqueada da barca, que emergia e se elevava, rígida, negra e talhada em alabarda na extremidade, e ainda se fazia ouvir mais qualquer coisa, uma voz, um sussurro – era o gondoleiro que murmurava, falando entre dentes, de si para si, palavras entrecortadas pelo movimento dos seus braços. (…)
Isso é verdade, pensou Aschenbach, distendendo-se de novo. Isso é verdade, és um bom remador. Mesmo que estejas na mira de me roubar e me lances com uma remada pelas costas no reino do Hades, terás sempre sido um bom remador. (…)
As observações e as vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido. (…)
Cansado, mas mentalmente desperto, dedicou a hora arrastada da refeição a assuntos abstractos, mesmo transcendentes: reflectiu sobre a misteriosa ligação que deve criar-se entre o indivíduo e a ordem universal para que daí nasça a beleza humana, daí passou a problemas gerais da forma e da arte e acabou por concluir que os seus pensamentos, as suas descobertas, se assemelhavam a certas inspirações do sonho, aparentemente felizes, mas que, com a realidade do despertar, se revelam totalmente vazias e sem valor. (…)
O cenário da praia, aquela amostra de entrega descuidada e sensual do civilizado à vida simples nos limites do elemento, interessava-o e divertia-o mais que nunca. (…)
Amava o mar por razões profundas: pela ânsia de repouso do artista extenuado de trabalho, que perante o tropel de solicitações da sua fantasia, procura refúgio no seio da simplicidade, da grandeza infinita; por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa e, por isso mesmo, sedutor, para o indiviso, o incomensurável, o eterno, o nada. Encontrar repouso na perfeição é o sonho daquele que se esforça por atingir a excelência; e o nada não é também uma forma de perfeição? (…)
A beleza gera constrangimento, pensou Aschenbach, que se meteu a aprofundar este pensamento, buscando o porquê. (…)
Passou duas horas no quarto e à tarde embarcou no vaporetto que fazia a travessia da laguna fétida até Veneza. (…)
Reinava pelas ruelas um calor sufocante e pestilento; o ar era tão pesado que os odores emanados de habitações, lojas e tascas, vapores de óleo, revoadas de perfume e muitos outros pairavam baixo, sem se dissipar. O fumo do cigarro ficava suspenso no local da exaltação, esvaindo-se depois com extrema lentidão. O vaivém da multidão nas travessas estreitas incomodava o passeante em vez de o distrair. Quanto mais avançava, mais tormentosamente se insinuava nele o estado abominável que a conjugação do ar do mar com o siroco pode provocar, traduzida num misto de excitação e abatimento. (…)
Não esteva escrito que o sol diverte a nossa atenção das coisas do intelecto para as coisas dos sentidos? Segundo se dizia, ele atordoa e enfeitiça a razão e a memória, ao ponto de a alma, afundada em prazer, esquecer totalmente o seu estado real ficando presa em êxtase ao mais belo dos objectos iluminados pelo Sol, e então é só com a ajuda de um corpo que ela encontra forças para se elevar a contemplações mais altas. Na verdade, Amor fazia o mesmo que os matemáticos, apresentando às crianças não dotadas imagens tangíveis das formas puras: assim o deus se comprazia em servir-se também, para nos tornar visível o espiritual, da forma e cor da juventude humana, que enfeitava com todo o esplendor da beleza, para instrumento da lembrança, fazendo-nos inflamar, ao vê-la, de dor e esperança.
Assim pensava o espírito exaltado de Aschenbach; assim se revelava o poder dos seus sentimentos. E o marulhar das águas e o brilho do Sol teceram a seus olhos uma imagem encantadora. Era o velho plátano não distante das muralhas de Atenas – aquele local divinamente sombrio, cheio de fragrância das flores de agnocasto, ornado de imagens sagradas e oferendas piedosas em honra das ninfas e de Acheloo. O ribeiro caía límpido aos pés da árvore frondosa, sobre o cascalho liso: os grilos cantavam. Sobre a relva, porém, que descia em declive ligeiro, onde se podia, estando deitado, manter a cabeça mais alta, estavam dois homens estendidos, ali protegidos do calor intenso do dia: um velho e um rapaz, um feio, o outro belo, a sapiência a par da graça. E, entre graças e brincadeiras espirituosas, Sócrates ilustrava Fedro acerca do desejo e da virtude. Falava-lhe do sobressalto ardente sofrido pela pessoa sensível quando esta vislumbra uma imagem da beleza eterna; falava-lhe do apetite do impuro e do mau, que não pode conceber a beleza, ao ver a sua imagem, e é incapaz de veneração; falava-lhe do temor sagrado que assalta o virtuoso à aparição de um semblante divino, um corpo perfeito – como ele estremece e se transporta, mal ousando olhar, venerando aquele que possui a beleza, sim, estando disposto a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua, senão receasse passar por louco. Pois que a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é – nota bem! – a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos. Ou então o que seria de nós se, por outro lado, o divino, a razão, a virtude e a verdade se nos quisessem revelar através dos sentidos? Acaso não morreríamos e nos consumiríamos de amor, como outrora Sémele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível para o espírito – só caminho, um meio apenas, pequeno Fedro… E em seguida proferiu o mais subtil, aquele cortejador astuto: ou seja, que o amante é mais digno que o amado, visto que naquele existe o deus e nestoutro não – ideia que talvez seja a mais terna e a mais irónica que jamais foi pensada e da qual nasce toda a malícia e amais secreta volúpia do desejo. (…)
Mas, assim que despontava a madrugada, era acordado por um sobressalto tenuemente penetrante, o coração recordava a sua aventura, já não conseguia suportar as almofadas, levantava-se e, levemente agasalhado contra o frio da madrugada, sentava-se junto à janela aberta, esperando o nascer do Sol. O maravilhoso acontecimento enchia-lhe de devoção a alma repousada pelo sono. O céu, a terra e o mar ainda jaziam na palidez fantasticamente vítrea da madrugada; ainda pairava uma estrela desvanecente no vazio. Mas chegava uma brisa, mensageira alada de paragens inacessíveis, a anunciar que Éos se levantara de junto do esposo, e nascia aquele primeiro rubor doce das mais longínquas regiões do céu e do mar, através do qual a criação se revela acessível aos sentimentos. A deusa aproximava-se, essa sedutora de jovens que arrebatou consigo Clito e Cégalo e, desafiando a inveja de todo o Olimpo, desfrutou do amor do belo Oríon. Um polvilhado róseo começava ali na orla do mundo, um brilho e um florescer de encanto indescritível, nuvens-criança, transfiguradas, iluminadas, pairavam como Amores servis no ar perfumado róseo-azulado, caía púrpura sobre o mar, que parecia transporta-la nas vagas ondulantes, lanças douradas erguiam-se oscilantes de baixo e lançavam-lhe nas alturas do céu, o brilho tornou-se incêndio, silenciosamente, num poderio divino, subiam em turbilhão brasa avermelhada, clarão e labaredas chamejantes, e os corcéis sagrados de Apolo elevavam-se na orbe terrestre no passo lesto dos seus cascos impacientes. Iluminados pelo esplendor do deus, o vigilante solitário ali sentado fechava os olhos e deixava que a glória lhe beijasse as pálpebras. (…)
«Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (e és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser heróis à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor – é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo? Nós bem gostaríamos de o renegar para ganharmos dignidade, mas, sempre que queremos desviar-nos, ele aí está a atrair-nos. É por isso que renegamos o conhecimento desintegrador, porque o conhecimento, Fedro, não tem qualquer dignidade ou severidade; é sabedor, compreensivo, indulgente, não tem posição nem forma; tem simpatia pelo abismo, ele é o abismo. Por isso o rejeitamos energicamente, e desde então a nossa ambição é só beleza, o que quer dizer simplicidade, a grandeza, uma nova severidade, um incondicionalismo renovado, a forma. Mas a forma e o incondicionalismo, Fedro, levam à embriagues e ao desejo, podem levar a criatura mais nobre a terríveis sacrilégios do sentimento, que a sua própria severidade pelo belo repudia por infames, levam ao abismo, também elas levam ao abismo. A nós, poetas, digo-to eu, é aí que elas nos levam, pois não somos capazes de elevação, mas de excesso. E agora, Fedro, vou-te deixar, fica tu aqui e parte só quando já não me vires.»” (…)
MANN, Thomas, (trad. Sara Seruya), “Morte em Veneza”, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1990.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, maio 23, 2003
SONETOS
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos,
dizendo: - Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta vida.
Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.
Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas
Se acrescentaram em grande e largo rio.
Ela viu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio,
E dar descanso às almas condenadas.
Luís de Camões
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, maio 23, 2003
quinta-feira, maio 22, 2003
POESIA
“Ler Camões é abandonarmo-nos ao sabor das ondas, receber os beijos salgados do mar, cair a prumo num mergulho até aos pélagos dos oceanos. Ler Camões é ter por berço o ritmo das ondas; é ver Portugal infante ouvindo o marulhar das águas atlânticas, é vê-lo, já menino, a escutar a voz misteriosa dos búzios; é vê-lo já homem lançar seu peito, como quilha de navio, ao desfloramento das águas virgens!”
Leonardo Coimbra
BABEL E SIÃO
Sôbolos rios que vão
Por Babilónia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.
Ali o rio corrente
De meus olhos foi manado,
E tudo bem comparado,
Babilónia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
Ali lembranças contentes
Na alma se representaram,
E minhas cousas ausentes
Se fizeram tão presentes
Como nunca se passaram.
Ali, depois de acordado,
Co rosto banhado em água,
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado
Não é gosto, mas é mágoa.
E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura,
O mal quão depressa vem,
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura. (…)
Luís de Camões
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 22, 2003
PINTURA
Júlio Pomar é, no início do século XXI, um dos nomes mais importantes da arte contemporânea portuguesa, e sem dúvida alguma uma das carreiras mais paradigmáticas da segunda metade do século precedente. Nascido em Lisboa, formou-se na Escola de Artes Decorativas António Arroio, frequentando depois as escolas de Belas-Artes de Lisboa e do Porto. Foi nesta última, ainda estudante, que protagonizou a liderança do movimento neo-realista e que, simultaneamente, se tornou conhecido do público português.
Em 1942, apresentou pela primeira vez a sua obra, numa colectiva realizada no atelier onde trabalhava. No mesmo ano, participava na VII Exposição de Arte Moderna do Secretariado de Propaganda Nacional / Secretariado Nacional de Informação (SPN / SNI), realizada em Lisboa, e, no ano seguinte, iniciava colaboração polémica na imprensa, defendendo os princípios da arte neo-realista. Em 1944, organizava, no Coliseu do Porto, a primeira de uma série de Exposições Independentes, que chegariam mais tarde a Lisboa. Mais tarde, viria a participação nas Exposições Gerais de Artes Plásticas, entre 1946 e 1956. Mas cedo a sua pintura revelava transbordar os princípios doutrinários do neo-realismo, abstractizando as formas, por exemplo, e revelando uma atenção à composição que estava já muito além da norma defendida por outro membro do grupo, Vespeira: «A pintura tem de ser útil para servir os homens».
Um dos quadros de 1947, O Almoço do Trolha, actualmente pertencente à colecção do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP), é bem exemplificativo deste facto. As três figuras, em composição centrada, caracterizam-se pela vocação monumental (e podemos aqui lembrar a importância que os muralistas mexicanos e o brasileiro Portinari exerceram no movimento em Portugal); o fundo, feito de um entrecruzar de formas, é abstracto, mesmo que o seu referente imediato seja o das construções civis. Esta obra foi feita um ano depois dos frescos realizados para o Cinema Batalha no Porto (mais tarde destruídos).
Em 1953, Pomar participa na campanha para artistas plásticos organizada pelo romancista Alves Redol no Ribatejo, o «Ciclo do Arroz». Daqui resulta uma Maria da Fonte, de 1957, em que a temática revolucionária e histórica é pretexto para uma pintura onde o movimento domina. Em 1963, o pintor emigra para Paris. A partir daqui, divide a residência entre as capitais francesa e portuguesa. É, contudo, Paris que lhe permite o contacto com outras realidades plásticas, e a abertura a universos mais amplos, que lhe permitirão desenvolver uma obra pessoalíssima, já alheada de quaisquer normas didácticas.
Por esta época, Pomar desenvolve uma série de «pinturas negras», homenagem discreta a Goya, e depois, em Paris, as séries das Tauromaquias, Les Courses e Catch, entre outras, onde encena lutas entre personagens, entre homens e animais, jogos de poder que se entendem como metáforas do corpo-a-corpo que o artista mantém com a pintura. E, mais ainda, que acompanham os temas adoptados por uma jovem geração de franceses que se interessa pela nova figuração.
Ainda da mesma época (finais dos anos 60) é a série sobre os acontecimentos de Maio de 68, e um conjunto de retratos de grupo que precede outras obras do mesmo teor que Pomar realizará dez ou quinze anos depois. Tudo se passa como se, reconhecendo os limites da pintura programática que era o neo-realismo, o artista revisitasse a história da pintura e dos seus temas para deles fazer uma interpretação pessoalíssima.
A estas obras, seguir-se-á uma série de colagens eróticas, em que o corpo feminino, fragmentado por força da técnica utilizada, se reconstrói ao sabor da imaginação e do desejo do autor. Durante os anos 80, Pomar realizará séries em que trata dos mitos fundadores da Europa, de Portugal, do Brasil. Os índios, o circo, os tigres (ou as onças, na sua versão feminina), Fernando Pessoa (também em azulejo numa estação do Metropolitano de Lisboa) combinam-se com personagens de contos e histórias infantis, inocentemente perversos, em quadros onde o gesto se associa a uma euforia cromática. A série La Chasse au Snark, L’ Entrée de Frida Khalo au Paradis, Contes Moraux, por exemplo, já da década de 90, recria o conto de Lewis Carroll, num entender da pintura como puro prazer de criar.
por Luísa Soares de Oliveira in www.artlink.com
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 22, 2003