sábado, maio 31, 2003
ANTÓNIO RIBEIRO SANCHES
O médico dos "males de amor"
José Milhazes e Rachid Kaplanov
Portugal e a Rússia foram as suas duas pátrias, mesmo se fugiu delas e aceitou o asilo francês em Paris. Em Portugal, escapou-se da vigilância da Santa Inquisição e, na Rússia, às intrigas da corte czarista. Nos dois casos, poderes absolutos que intelectualmente execrava e de que foi unicamente vítima, pois a política não era a sua esfera de intervenção. Foi graças a ele que estes dois países, colocados nos extremos opostos da Europa, estabeleceram ligações culturais, para lá dos regimes políticos que neles vigoraram.
António Nunes Ribeiro Sanches, por indicação de Boerhaave, seu mestre holandês e um dos mais eminentes médicos do seu tempo, foi trabalhar para a Rússia, onde passou dezassete anos (1731-1749). Aí deixou um rasto relevante na ciência e na cultura deste longínquo país.
Ribeiro Sanches deixou as melhores recordações na Rússia principalmente graças à sua actividade no campo da medicina. Quando já exercia as funções de médico da corte de São Petersburgo, o iluminista luso salvou da morte a noiva do grão-príncipe Pedro e futura imperatriz da Rússia, Catarina II, a Grande. Por isso, em 1782, o seu filho e sucessor no trono, Pavel I, exprimiu-lhe publicamente gratidão em Paris. Isso valeu-lhe também uma pensão vitalícia da corte russa.
Já depois de ter abandonado a Rússia, por ter sido acusado de não ter renunciado ao judaísmo, ele nunca se recusou a prestar assistência médica aos nobres russos que o procuravam na capital francesa. É de sublinhar que Ribeiro Sanches era, na época, considerado um mestre incomparável no tratamento de doenças venéreas, o que vinha muito a propósito: os jovens nobres russos (e não só jovens) que visitavam Paris sofriam frequentemente desses "males do amor".
O cientista luso continuou a corresponder-se com colegas seus na Rússia, bem como a dar por correspondência consultas a altos dignatários russos. Mas claro que, tanto na Rússia como em França, os contactos entre Ribeiro Sanches e os russos não se limitavam a temas de medicina. Por exemplo, quando se encontrava a viver em São Petersburgo, ele não só tratava da família real, como também fornecia livros para leitura aos seus membros, incluindo a duquesa Ana de Macklenburgo, futura regente do trono russo.
O enciclopedista português mantinha contactos estreitos com o mundo científico russo, contribuindo para o estabelecimento de relações entre cientistas russos e sábios de outros países da Europa e do mundo. Por sua iniciativa, em 1735, dá-se início à troca de cartas e de livros entre a Academia de Ciências de São Petersburgo (de que Ribeiro Sanches se tornou mais tarde membro) e a Academia Portuguesa de História.
É também ele que está na origem dos contactos entre São Petersburgo e Pequim, onde as sociedades científicas eram dirigidas por jesuítas portugueses. A propósito, é curioso assinalar que a troca de cartas entre os orientalistas russos e os missionários portugueses na China continuaram até meados do séc. XIX, o que fez com que várias dezenas de livros, incluindo alguns em língua portuguesa, transitassem das missões católicas na China para diversas bibliotecas russas, entre elas a Biblioteca Universitária de Irkutsk, na Sibéria, e a Biblioteca da Universidade Estatal de Moscovo.
Correspondia-se com a elite europeia
Outros estrangeirados portugueses, que haviam fugido da Inquisição e se instalaram noutras capitais estrangeiras, estabeleceram também contactos científicos - e não só - com a Rússia. O exemplo mais relevante é o de Jacob de Castro Sarmento, médico judeu de origem portuguesa que residia em Londres. Alguns meses antes da morte de Ribeiro Sanches, João Jacinto de Magalhães, outro estrangeirado português residente também em Londres, físico e popularizador da ciência, torna-se, tal como o seu amigo Sanches, membro correspondente da Academia de Ciências de São Petersburgo.
Os contactos de Ribeiro Sanches não se restringiram a Portugal e à diáspora portuguesa no estrangeiro. Quando se encontrava na Rússia e mesmo depois de partir para Paris, correspondeu-se com cientistas de quase todo o mundo civilizado de então. Entre os seus interlocutores havia ingleses, holandeses, espanhóis, italianos, suíços, latino-americanos, etc. Respondia com prazer e saber aos seus colegas europeus a perguntas que lhes interessavam da história da Rússia. Por exemplo, as informações sobre os peixes da Rússia por ele concedidas ao famoso naturalista francês Buffon foram por este incluídas nas suas obras.
Um espantoso conhecimento da Rússia
Os dirigentes da Academia de Ciências de São Petersburgo tinham em linha de conta a opinião de Sanches quando da eleição de novos membros estrangeiros. O iluminista português dava a conhecer aos seus interlocutores à situação sócio-política e económica na Rússia. Nos anos 70 do séc. XVIII, informava-os das reformas da imperatriz Catarina II, a Grande. Por outro lado, ele comunicava de Paris para a capital russa as transformações que ocorriam nos vários Estados europeus.
Da pena deste ilustre sábio luso saíram numerosas obras sobre a Rússia, muitas das quais continuam nos arquivos à espera de publicação. Alguns manuscritos de Ribeiro Sanches sobre este tema eram considerados perdidos e só foram descobertos em Moscovo, São Petersburgo e Lisboa nos anos 80 do nosso século.
É impressionante a amplitude de interesses científicos de Ribeiro Sanches. Entre os seus tratados e cartas manuscritas, há escritos etnográficos sobre alguns povos do Sul da Rússia, que ele conheceu durante a campanha militar da Crimeia (anos 30 do séc. XVIII), onde exercia funções de médico militar. Nomeadamente, redigiu em manuscrito o único dicionário da língua dos tártaros de Kuban, povo hoje desaparecido. Ribeiro Sanches deixou igualmente escritos sobre os cossacos, ucranianos, povos do Báltico, etc.
Todavia, ele dedicou maior atenção aos russos, suas tradições, costumes, vida económica e agricultura. Na sua conhecida obra "Dos banhos a vapor russos", a única traduzida do francês para russo durante a vida do autor, Ribeiro Sanches analisa o tema não só enquanto médico, mas também como economista.
Ele via nos populares banhos russos um meio universal de tratamento de doenças quando não era possível o acesso a outros tratamentos e recomendou-o aos seus leitores ocidentais.
Quando se encontrava já há vários anos na capital francesa, Ribeiro Sanches tornou-se conselheiro de vários estadistas russos, principalmente no campo da pedagogia e da economia. Ivan Betskoi, um dos grandes reformadores russos do sistema de ensino no reino de Catarina II, reconheceu que frequentemente se orientava pelas recomendações enviadas pelo sábio luso.
Nos seus conselhos aos altos dignitários russos, Ribeiro Sanches não poupava críticas à Igreja Católica, embora fosse muito cauteloso ao abordar temas religiosos. Por exemplo, recomendava não exagerar no ensino do latim nas escolas da Igreja Ortodoxa Russa, considerando que isso poderia conduzir ao aumento da influência do papado romano na Rússia, que transportava em si uma ameaça constante à independência política do país.
Pondo de parte semelhantes exageros ideológicos, raros em Ribeiro Sanches, as suas recomendações são de um saudável realismo. Ao abordar, por exemplo, as reformas no campo agrário na Rússia, ele não ia ao ponto de proibir a liquidação da servidão da gleba neste país (que só ocorreu em Fevereiro de 1861), mas defendia mudanças significativas nesse sistema.
Baseando-se nas reformas do czar Pedro I, "o Grande", o ilustre estrangeirado português aconselhou o marquês de Pombal na sua tarefa de modernização de Portugal.
As belas artes e a agricultura
RIBEIRO SANCHES, que fez parte dos enciclopedistas franceses, tinha uma visão filosófica das ciências sociais e considerava que a auto-subsistência agrícola era fundamental para qualquer país, insistindo, para isso, no incremento das culturas cerealíferas. Nesse aspecto tinha uma visão proteccionista e gostava de discorrer sobre os problemas da agricultura, mesmo quando lhe colocavam questões completamente diferentes.
Quando um seu interlocutor russo lhe perguntou: "Como introduzir as belas-artes na Rússia?", ele respondeu que, primeiramente, era preciso ter camponeses minimamente alimentados e com algum nível de autonomia na sua actividade económica. As belas artes vinham depois.
As recomendações no campo agrário feitas pelo cientista português foram entusiasticamente recebidas pelo seu jovem amigo e admirador, príncipe Dimitri Golitsin, encarregado de negócios da Rússia em Paris, mas, infelizmente, rejeitadas pela imperatriz Catarina II.
Convém dizer que depois de 200 anos de reformas e revoluções, o problema agrário continua por resolver. Mas Ribeiro Sanches enganou-se numa previsão: não obstante a permanente crise agrária, as belas-artes floresceram na Rússia.
Defensor do ensino laico e separação da religião o Estado
Um iluminista para déspotas iluminados
O ESBOÇO de polémica entre António Barreto e frei Bento Domingues (PÚBLICO de 3/1/99 e 17/1/99) sobre a "terceira via" e as inclinações religiosas do governo socialista faria sorrir António Nunes Ribeiro Sanches, se o ilustre físico ainda estivesse entre nós. O médico dos czares, nascido em Penamacor no dia 7 de Março de 1699, foi, ao longo dos seus 84 anos, um paradigma vivo desta discussão que se renova, felizmente noutro contexto, três séculos depois.
A terra beirã onde Ribeiro Sanches nasceu era, ao tempo, uma vila relativamente próspera, com guarnição militar e um castelo fernandino a recordar a sua importância de fortaleza fronteiriça. Os dez anos de idade que distanciam o futuro D. João V do nosso médico vão pesar na vida de Ribeiro Sanches. Quando este nasceu já a fogueira da Santa Inquisição fazia arder corpos e almas no Rossio Lisboeta e de Évora, assim como nos passos de Coimbra e Goa. Os cristãos-novos, grupo a que pertencia Ribeiro Sanches, tinham alimentado a esperança de ver afastados destes reinos o terrível tribunal do Santo Ofício, umas quatro décadas antes. Tarefa vã, apesar de nela se ter esforçado o padre António Vieira, que com esse objectivo deixou as suas terras do Brasil e veio a Lisboa e foi a Roma.
Quando Ribeiro Sanches nasceu já a corte portuguesa recaíra na órbita escolástica, que chegou a ameaçar com um cisma à inglesa caso o Vaticano extinguisse o tribunal inquisitorial. Apesar disso, a infância de António Nunes Ribeiro Sanches foi tranquila. Viveu num ambiente burguês onde a cultura, em especial a leitura, eram prezadas. A conselho do pai iniciou-se na leitura dos clássicos (Plutarco) e dos modernos (Montaigne), mas desobedeceu-lhe secretamente quando este tentou fazer dele um bacharel, entregando-o a um tio advogado.
Aos 15/16 anos foi cursar cânones para Coimbra, mas, às escondidas, estudava medicina. O facto despertou a atenção de um outro tio, este físico, Diogo Nunes Ribeiro, que lhe deu hospedagem e o pôs em contacto com um mestre, Bernardo Lopes do Pinho.
Ribeiro Sanches utilizava o seu próprio corpo como instrumento de análise e procurava ser ele fazer o diagnóstico e a medicar-se. Insatisfeito com o ensino ministrado em Coimbra em 1720 decidiu ir para Salamanca. Aí se doutorou, regressando em 1723 ao país natal, obtendo o partido de médico municipal em Benavente.
Quatro anos depois sentindo os ventos da Inquisição a passarem-lhe pela porta, fez as malas e seguiu para Itália. Saltitou de escola em escola até que em 1728 chegou a Leyden, cidade holandesa onde ensinava Boerhaave, grande mestre do tempo. Admirado com o seu saber, este aconselhou a czarina russa a tomá-lo como médico, quando em 1731 esta lhe pediu o nome de um físico capaz.
Foi uma longa estadia, a que só pôs termo quando temeu que o envolvessem nas intrigas da corte russa, refugiando-se em 1747 em Paris de onde não mais saiu, nem mesmo quando o marquês de Pombal, que prezava o seu conselho lhe garantiu que com ele estaria em segurança em Portugal.
Não quis regressar, disse, porque sem profundas reformas este era "um reino cadaveroso" - qualificativo que António Sérgio recuperou durante o regime salazarista. Mas, por carta, enviou ao ministro absoluto de D. José I os seus pareceres sobre os diversos assuntos de Estado em que é consultado.
Maximiliano Lemos, seu biógrafo ("Ribeiro Sanches – A Sua Vida e a Sua Obra", 1911) diz que a propósito da criação do Real Colégio dos Nobres, foi muito explícito sobre as suas concepções pedagógicas: separação absoluta do sagrado e do profano. O ensino devia ser exclusivamente laico e, sob a direcção de um oficial português, ministrado inteiramente por um oficial português, ministrado inteiramente por professores contratados no estrangeiro.
Com estas orientações não surpreende que morto D. José I e demitido o marquês do Pombal (1777), os seus contemporâneos o tenham apelidado de "estrangeirado", cognome que lhe ficou para além da morte (14/10/1783).
António Melo
"Público" de 07 de Março de 1999.
posted by Luís Miguel Dias sábado, maio 31, 2003