A montanha mágica

sexta-feira, maio 23, 2003

LITERATURA

“Quando, de um momento para o outro, se sente o desejo do incomparável, do fabuloso, do inovador, para onde se vai? Mas era claro! O que estava ele ali a fazer? Que erro o seu! Era para lá que queria ter ido! Não demorou a corrigir esse erro e anunciou imediatamente no hotel que partia. Semana e meia depois após a sua chegada à ilha, um veloz barco a motor levava-o de novo, juntamente com a sua bagagem, por entre a neblina matinal e através das águas, até à base naval, onde só desembarcou para atravessar o pontão, que o conduziu ao convés húmido de um navio que se preparava a todo o vapor para largar rumo a Veneza. (…)

Que escolha feliz para a sua viagem! - aventurou entretanto – Ah! Veneza! Que cidade maravilhosa!! É fonte de atracção irresistível para a pessoa instruída, tanto pela sua história como pelos seus encantos de hoje. (…)

E ali estava de novo diante dos seus olhos, a acolhê-lo ao desembarque, aquela praça de maravilha indiscutível e única, aquela brilhante combinação de obras arquitectónicas fantásticas que a república oferecia ao olhar rendido do navegante que se aproximava: o esplendor delicado do Palácio e a Ponte dos Suspiros, as colunas do leão e do santo à beira da água, o flanco em relevo do fabuloso templo, a perspectiva do portal e do gigantesco relógio. Observando tudo isto, pensava para consigo que entrar em Veneza por terra, pela estação de caminho-de-ferro, é como entrar num palácio pela porta de trás e que jamais alguém se deveria abeirar da mais inacreditável das cidades de outro modo que não fosse, por barco, mar alto. (…)

Haverá alguém que não tenha de reprimir um assomo de frémito, um secreto alvoroço, ao pôr o pé numa gôndola veneziana pela primeira vez ou após uma longa ausência? O curioso veículo, dádiva intacta de tempos boladescos, de um preto apenas igualável no mundo ao de um caixão, lembra aventuras mudas e proibidas na noite suspensa, apenas cortada pelo sulco do remo na água, e lembra ainda mais a própria morte, o ataúde, rituais sombrios e a última viagem silenciosa. E ter-se-á reparado que o assento de uma dessas barcas, aquela cadeira de braços envernizada numa laca funerária e estofada num preto baço e apagado, é o assento mais macio, mais requintado, mais embalador do mundo? (…)

Como redobrava o silêncio em sua volta! Não se distinguia senão o chapinhar dos remos sulcando a água, o marulhar das ondas embatendo contra a ponta arqueada da barca, que emergia e se elevava, rígida, negra e talhada em alabarda na extremidade, e ainda se fazia ouvir mais qualquer coisa, uma voz, um sussurro – era o gondoleiro que murmurava, falando entre dentes, de si para si, palavras entrecortadas pelo movimento dos seus braços. (…)

Isso é verdade, pensou Aschenbach, distendendo-se de novo. Isso é verdade, és um bom remador. Mesmo que estejas na mira de me roubar e me lances com uma remada pelas costas no reino do Hades, terás sempre sido um bom remador. (…)

As observações e as vivências do solitário que só fala consigo próprio são simultaneamente mais indistintas e intensas do que as do homem social e os seus pensamentos são mais graves, mais fantasiosos e nunca sem uma coloração de melancolia. Imagens e impressões que outros poriam naturalmente de lado após um olhar, um sorriso, um comentário, ocupam-no mais do que é devido, tornam-se em acontecimento, aventura, emoção. A solidão cria o original, o belo ousado e estranho cria a poesia. Mas cria também o distorcido, o desproporcionado, o absurdo e o proibido. (…)

Cansado, mas mentalmente desperto, dedicou a hora arrastada da refeição a assuntos abstractos, mesmo transcendentes: reflectiu sobre a misteriosa ligação que deve criar-se entre o indivíduo e a ordem universal para que daí nasça a beleza humana, daí passou a problemas gerais da forma e da arte e acabou por concluir que os seus pensamentos, as suas descobertas, se assemelhavam a certas inspirações do sonho, aparentemente felizes, mas que, com a realidade do despertar, se revelam totalmente vazias e sem valor. (…)

O cenário da praia, aquela amostra de entrega descuidada e sensual do civilizado à vida simples nos limites do elemento, interessava-o e divertia-o mais que nunca. (…)

Amava o mar por razões profundas: pela ânsia de repouso do artista extenuado de trabalho, que perante o tropel de solicitações da sua fantasia, procura refúgio no seio da simplicidade, da grandeza infinita; por um pendor proibido, diametralmente oposto à sua tarefa e, por isso mesmo, sedutor, para o indiviso, o incomensurável, o eterno, o nada. Encontrar repouso na perfeição é o sonho daquele que se esforça por atingir a excelência; e o nada não é também uma forma de perfeição? (…)

A beleza gera constrangimento, pensou Aschenbach, que se meteu a aprofundar este pensamento, buscando o porquê. (…)

Passou duas horas no quarto e à tarde embarcou no vaporetto que fazia a travessia da laguna fétida até Veneza. (…)

Reinava pelas ruelas um calor sufocante e pestilento; o ar era tão pesado que os odores emanados de habitações, lojas e tascas, vapores de óleo, revoadas de perfume e muitos outros pairavam baixo, sem se dissipar. O fumo do cigarro ficava suspenso no local da exaltação, esvaindo-se depois com extrema lentidão. O vaivém da multidão nas travessas estreitas incomodava o passeante em vez de o distrair. Quanto mais avançava, mais tormentosamente se insinuava nele o estado abominável que a conjugação do ar do mar com o siroco pode provocar, traduzida num misto de excitação e abatimento. (…)

Não esteva escrito que o sol diverte a nossa atenção das coisas do intelecto para as coisas dos sentidos? Segundo se dizia, ele atordoa e enfeitiça a razão e a memória, ao ponto de a alma, afundada em prazer, esquecer totalmente o seu estado real ficando presa em êxtase ao mais belo dos objectos iluminados pelo Sol, e então é só com a ajuda de um corpo que ela encontra forças para se elevar a contemplações mais altas. Na verdade, Amor fazia o mesmo que os matemáticos, apresentando às crianças não dotadas imagens tangíveis das formas puras: assim o deus se comprazia em servir-se também, para nos tornar visível o espiritual, da forma e cor da juventude humana, que enfeitava com todo o esplendor da beleza, para instrumento da lembrança, fazendo-nos inflamar, ao vê-la, de dor e esperança.
Assim pensava o espírito exaltado de Aschenbach; assim se revelava o poder dos seus sentimentos. E o marulhar das águas e o brilho do Sol teceram a seus olhos uma imagem encantadora. Era o velho plátano não distante das muralhas de Atenas – aquele local divinamente sombrio, cheio de fragrância das flores de agnocasto, ornado de imagens sagradas e oferendas piedosas em honra das ninfas e de Acheloo. O ribeiro caía límpido aos pés da árvore frondosa, sobre o cascalho liso: os grilos cantavam. Sobre a relva, porém, que descia em declive ligeiro, onde se podia, estando deitado, manter a cabeça mais alta, estavam dois homens estendidos, ali protegidos do calor intenso do dia: um velho e um rapaz, um feio, o outro belo, a sapiência a par da graça. E, entre graças e brincadeiras espirituosas, Sócrates ilustrava Fedro acerca do desejo e da virtude. Falava-lhe do sobressalto ardente sofrido pela pessoa sensível quando esta vislumbra uma imagem da beleza eterna; falava-lhe do apetite do impuro e do mau, que não pode conceber a beleza, ao ver a sua imagem, e é incapaz de veneração; falava-lhe do temor sagrado que assalta o virtuoso à aparição de um semblante divino, um corpo perfeito – como ele estremece e se transporta, mal ousando olhar, venerando aquele que possui a beleza, sim, estando disposto a oferecer-lhe sacrifícios como a uma estátua, senão receasse passar por louco. Pois que a beleza, meu Fedro, e só ela, é digna de ser amada e visível ao mesmo tempo: ela é – nota bem! – a única forma do espiritual que recebemos através dos sentidos e que podemos suportar pelos sentidos. Ou então o que seria de nós se, por outro lado, o divino, a razão, a virtude e a verdade se nos quisessem revelar através dos sentidos? Acaso não morreríamos e nos consumiríamos de amor, como outrora Sémele perante Zeus? Assim, a beleza é o caminho do homem sensível para o espírito – só caminho, um meio apenas, pequeno Fedro… E em seguida proferiu o mais subtil, aquele cortejador astuto: ou seja, que o amante é mais digno que o amado, visto que naquele existe o deus e nestoutro não – ideia que talvez seja a mais terna e a mais irónica que jamais foi pensada e da qual nasce toda a malícia e amais secreta volúpia do desejo. (…)

Mas, assim que despontava a madrugada, era acordado por um sobressalto tenuemente penetrante, o coração recordava a sua aventura, já não conseguia suportar as almofadas, levantava-se e, levemente agasalhado contra o frio da madrugada, sentava-se junto à janela aberta, esperando o nascer do Sol. O maravilhoso acontecimento enchia-lhe de devoção a alma repousada pelo sono. O céu, a terra e o mar ainda jaziam na palidez fantasticamente vítrea da madrugada; ainda pairava uma estrela desvanecente no vazio. Mas chegava uma brisa, mensageira alada de paragens inacessíveis, a anunciar que Éos se levantara de junto do esposo, e nascia aquele primeiro rubor doce das mais longínquas regiões do céu e do mar, através do qual a criação se revela acessível aos sentimentos. A deusa aproximava-se, essa sedutora de jovens que arrebatou consigo Clito e Cégalo e, desafiando a inveja de todo o Olimpo, desfrutou do amor do belo Oríon. Um polvilhado róseo começava ali na orla do mundo, um brilho e um florescer de encanto indescritível, nuvens-criança, transfiguradas, iluminadas, pairavam como Amores servis no ar perfumado róseo-azulado, caía púrpura sobre o mar, que parecia transporta-la nas vagas ondulantes, lanças douradas erguiam-se oscilantes de baixo e lançavam-lhe nas alturas do céu, o brilho tornou-se incêndio, silenciosamente, num poderio divino, subiam em turbilhão brasa avermelhada, clarão e labaredas chamejantes, e os corcéis sagrados de Apolo elevavam-se na orbe terrestre no passo lesto dos seus cascos impacientes. Iluminados pelo esplendor do deus, o vigilante solitário ali sentado fechava os olhos e deixava que a glória lhe beijasse as pálpebras. (…)

«Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (e és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser heróis à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor – é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo? Nós bem gostaríamos de o renegar para ganharmos dignidade, mas, sempre que queremos desviar-nos, ele aí está a atrair-nos. É por isso que renegamos o conhecimento desintegrador, porque o conhecimento, Fedro, não tem qualquer dignidade ou severidade; é sabedor, compreensivo, indulgente, não tem posição nem forma; tem simpatia pelo abismo, ele é o abismo. Por isso o rejeitamos energicamente, e desde então a nossa ambição é só beleza, o que quer dizer simplicidade, a grandeza, uma nova severidade, um incondicionalismo renovado, a forma. Mas a forma e o incondicionalismo, Fedro, levam à embriagues e ao desejo, podem levar a criatura mais nobre a terríveis sacrilégios do sentimento, que a sua própria severidade pelo belo repudia por infames, levam ao abismo, também elas levam ao abismo. A nós, poetas, digo-to eu, é aí que elas nos levam, pois não somos capazes de elevação, mas de excesso. E agora, Fedro, vou-te deixar, fica tu aqui e parte só quando já não me vires.»” (…)

MANN, Thomas, (trad. Sara Seruya), “Morte em Veneza”, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1990.

posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, maio 23, 2003

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