A montanha mágica

quinta-feira, maio 29, 2003

CRÓNICAS

O sal da terra

Clara Ferreira Alves

“Roma estava cheia de peregrinos. Aos bandos, como aves mansas, atrás de um guia com uma bandeirinha de cor num pau, ou uma flor, um girassol de tecido, uma rosa de nylon. (…)

Estes peregrinos não vinham apenas admirar a Basílica do Vaticano ou a Capela Sistina. Vinham celebrar os 83 anos do Papa João Paulo II. (…)

Um grande chefe espiritual é um espectáculo necessário ao mundo, e basta olhar para aquela humanidade abraçada pelas colunas de Bernini, para perceber como um mundo sem Deus, qualquer que ele seja, é um mundo desolado. A metafísica comunista deu direitos aos trabalhadores, mas não deu a beleza, o mistério do sagrado e da transcendência, sem os quais não existiria História e Arte. (…)

Na Praça de São Pedro, uma criança numa cadeira de rodas parecia uma boneca desarticulada, uma boneca de trapos a respirar, os efeitos da paralisia cerebral. Os pais olhavam em paz para o grande «écran» que transmitia a palavra e a imagem do Papa. Junto à Fontana di Trevi, o lugar onde a opulência física da Ekberg se molhava e dançava no filme de Fellini, um grupo de jovens paralíticos sorria sentado nas cadeiras de rodas, admirado de ver ali, viva, a água verde-azul da fonte dos sonhos, com aqueles pés gigantes e perfeitos, aqueles músculos de mármore mais possantes do que os seus músculos atrofiados. E havia nas caras uma felicidade grande, o dia tinha sido bom. (…)

A fé, e o Papa, juntaram em Roma uma parte da humanidade que acredita na candura e na generosidade onde outros verão o ódio. O sal da terra. Na verdade todos eles vêm por causa de Cristo, e pelos seus sinais. Uns procuram-no no Vaticano, outros numa tela de Caravaggio ou Rafael, outros na Pietà de Michelangelo, abandonado e morto nos braços da mãe. Outros bas catacumbas ou na Roma Antica. (…)

Numa esquina, uma velha, decerto albanesa, ou de um desses países do Leste que fornecem os novos pobres da Europa. Toda vestida de preto, estava de joelhos encostada a um a bengala feita de um cabo de chapéu-de-chuva sem varetas. Não se lhe via a cara, que olhava para o chão, e tremia, abanando o corpo em convulsões ritmadas. Só o chapéu sem varetas a guardava de cair. Tinha os pés descalços e sujos, pés de muita idade. E, como não olhava os que passavam apressados e estava de costas para o céu, tinha o prato das moedas vazias. Parecia estar à beira de cair. Na Via del Corso, cheia de gente, ninguém olha para ela. Os bandos de peregrinos, com a cara levantada, seguem o guia, o girassol, a rosa a bandeira. Amarela ou vermelha. Para não se perderem. A velha treme lá em baixo, por baixo da humanidade, tão perto do meu Gesù. Voltei a passar por ele na Piazza di Spagna, um menino ao colo de uma Madonna de uns dezoito anos, belíssima como a das Anunciações dos Mestres, uma Madonna de Rafael. Era uma cigana romena, quase uma criança, de mão estendida. Menos triste do que a velha tremente, mais bonita do que as mulheres caras que quase a espezinham ao passar, com aquele bronzeado perpétuo e aqueles doirados das italianas ricas. A velha e a mãe com o menino são invisíveis, rentes ao chão, porque os muito pobres nunca estão à altura do resto do mundo, acocoram-se, sentam-se, ajoelham-se, rastejam. Suplicam, num plano inferior ao dos deuses. Tanta gente em Roma à procura de Jesus e passando por ele sem o ver, foi o que eu pensei. Nós, o sal da terra. “

in Única, Expresso n.º 1595 de 24 de Maio de 2003.

posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, maio 29, 2003

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