sexta-feira, fevereiro 24, 2012
9. continuando,
Carta aberta a Bento XVI
No mais recente filme de Aki Kaurismäki, Le Havre, a dado passo da tormenta feliz aparecem dois padres no exterior de uma igreja a trocar dúvidas se S. Lucas isto se S. Mateus aquilo. De quem me lembrei logo foi de S. João, meus filhinhos...
Não saem bem tratados, e acho que seria bom olharmos bem para o que Kaurismäki resume naqueles breves instantes.
Por exemplo, no site da pastoral da cultura não vi pelos responsáveis da secção de cinema uma abordagem a este filme mas em relação ao novo Spielberg ou aquando do filme sobre o fundador da opus dei foi um instante, logo. Para onde olhamos? Melhor: para onde continuamos a olhar?
Pede Vossa Santidade para “observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade”. Pois. Um exemplo, um sintoma, uma persistência: as declarações do novo cardeal português sobre o papel das mulheres. Pede Vossa Santidade para observar bem? Aonde é que estas pessoas estão? Com quem falam? Quem querem ouvir? Onde é que se colocam? Já reparou viu e não gostou, certamente, do espaço que muitos padres, bispos, cardeais e até leigos se situam, não é verdade? Claro que são homens e mulheres mas parecem anestesiados, de olhos toldados.
Olhe, inclinando-me, para mim tem sido uma desilusão, nestes tempos ouvir as pessoas que tenho ouvido de dentro da igreja sobre a riqueza e a sua redistribuição. Parecem as posições adotadas durante o século XX com os regimes ditatoriais, sim.
Parecem tudo menos vermos no outro um verdadeiro alter-ego, infinitamente amado pelo Senhor, como vossa santidade escreve.
Ah, sim, o bem existe, sim, as pessoas sabem-no bem mas veem a riqueza material antepor-se a tudo, as declarações de um bispo português a negar na tv que a criação de um novo imposto para os mais ricos se calhar não era a melhor opção, que tínhamos de estudar o assunto. Enfim.
Já o sabe há muito tempo, mas o dinheiro e a conquista da imortalidade são faces do diabo, do mal. Vê-se muita comodidade e silêncios para a conquista de simpatias, é o saber viver. Oh, a tragédia grega fala dele tão bem, e dá tão bons conselhos...
Vossa Santidade diz entre todas as outras coisas, só estou a olhar para as menos importantes, melhor, vossa santidade pede para os membros terem a mesma solicitude uns para com os outros. É outra, também, das doenças das mais cínicas mais fatais do nosso tempo, de todos os tempos : a matança do sonho, o assassínio do sonho. Tão visível. Tão exposto.
Na curta-metragem de Jacques Tati intitulada Aulas Nocturnas (que tenho aproveitado para trabalhar juntamente com alunos do ensino secundário), o professor trabalha naquela aula, com os seus alunos, o tema da observação. Entre a meia dúzia de exemplos que mostra pede-lhes por fim para serem eles a fazer uma experiência. Primeiro observam como se tropeça e depois teem de tropeçar. Aprender a tropeçar. Aprender a tropeçar nuns degraus. Aprender a tropeçar bem, apender a tropeçar melhor, aprender a tropeçar cada vez melhor.
Nas mesmas folhas da paróquia onde vinha a sua mensagem para esta Quaresma vinha também a de Sua Eminência Reverendíssima O Cardeal-Patriarca de Lisboa que aproveitei para não ler. Ainda tenho bem presentes as declarações desta mesma Eminência a responder aos jornalistas sobre a maçonaria, de olhos esbugalhados, a dizer que sobre o sporting ou sobre o benfica não queria saber.
Pequei, fui contra aquilo que nos pede. Pequei. Peco muito.
Termino com uma confissão e uma sugestão, tem-me assolado e assim desabafo: teria doze ou treze anos (aí por volta de 1985) quando fiz a comunhão solene. E nos ensaios preparatórios sabe o que nos deu o pároco responsável por esse trabalho: um flyer sobre José Maria Escrivá, ainda o tenho ali.
A sugestão, rever/ver Le Havre, de Aki Kaurismäki.
Termino, agora sim, com as palavras de José Augusto Mourão: “Um cristianismo corrompido varre o mundo –isso nota-se no facto de a palavra «sacrifício» acabar por definir o sacrifício de si mesmo. Quando o poderoso humilha o outro, incita-o a instalar-se no estatuto cómodo de vítima e toda a negociação se torna impossível. Ora, há passos a registar, que não são de somenos: da luta de classes passou-se à concertação social, a retórica vitimária deu lugar às negociações salariais.”
Com todo o respeito,
Luís Miguel Dias, docente do ensino básico e secundário neste momento a lecionar a cursos das Novas Oportunidades e que ainda não sabe muito bem respeitar ou desrespeitar o acordo ortográfico, ainda me sinto confuso.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, fevereiro 24, 2012