A montanha mágica

domingo, janeiro 20, 2013

“O que fora feito das lições, das memórias e das realizações do século XX?”




Helena Almeida, Saída Negra


1. Tão bons livros e assim em 2012… em Espanha, por exemplo, os críticos e os leitores do jornal El País escolheu o livro “Pensar o Século XX” de Tony Judt com Timothy Snyder como um dos melhores do ano, mesmo o melhor, em primeiro lugar. Malucos.

Por cá, fizeram-se algumas listas e deste livro nem nada,

 “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja,”

 começa assim o “Grande Sertão Veredas”, do magistral João Guimarães Rosa.

Houve uma crónica de um historiador português publicada no jornal público a dizer que Tony Judt está a ser colocado no lugar dos imortais e que isso não pode ser, ainda que tenha escrito “Pós-Guerra História da Europa desde 1945”, que não merece, que este livro não. Que não deve marcar a história das ideias e da cultura.

Comecemos então por uma frase do posfácio do próprio Tony Judt, página 389: “O que fora feito das lições, das memórias e das realizações do século XX?”

É não é? É a vida.

Continuemos pelas páginas finais dentro e adaptemo-las o melhor possível ao que somos e ao que damos ao outro, página 368:

Tony Judt: “Mas mesmo uma cidadania bem educada não basta para nos proteger de uma economia política abusiva. É preciso um terceiro ator aqui, além do cidadão e da economia, que é o Estado. E o Estado tem de ser legítimo, no sentido de corresponder à compreensão das pessoas dos fundamentos com que escolhem os seus governantes e no sentido de as suas ações corresponderem às suas palavras. Existindo esse Estado legítimo, parece então não somente apropriado como realmente possível que ele diga às pessoas: se fizessem as contas, veriam que vos estão a vender uma lista de produtos. Mas mesmo que não saibam fazer as contas, vamos dizer-vos que é essi o caso. E vamos proibir-vos de certo tipo de transações financeiras, tal como vos proibimos de conduzir na direção da Quinta Avenida de Nova Iorque, no vosso interess e para o bem de todos.”

Muitas vezes achei estranho ver empresas financeiras a vender créditos e a publicitá-los nas tvs e a dizer que os juros cobrados rondavam aí os vinte e tal por cento.
E ninguém dizia nada.
E ninguém disse nada.
E comecei a achar, uma vez mais, que estava a fazer figurinha de asno, que não percebia as coisas.
 E também a terem o direito de o dizer muito rapidamente na rádio e na tv e ou em letras muito pequeninas sem ninguém dizer nada; e a continuarem sem dizer nada.
 E as publicidades com ronaldos e assim a vender publicidade a bancos com cobranças assustadoras. Sim, em Portugal.
País 48 anos de ditadura no século XX e um século XIX desgraçado. Onde milhares, milhões de pessoas não puderam estudar ir mais além do que a terceira ou quarta classe, ou nem isso.
 E ninguém veio dizer nada.
E ninguém veio proibir.
E continua a não haver ninguém.
 Não se vê.
Não se ouve.
O que se viu e se vê é os reguladores a serem promovidos e os cães de fila deles, novitos e cheios de ambição, a continuar a defendê-los nas tvs, nas rádios, nos jornais diários e nos semanários, e o Expresso então… um antro.

2. Continuemos pois pelas páginas finais dentro, páginas 293 e 294:

“Tony Judt: Os intelectuais que Julien Benda ataca nos anos de 1920, na sua Trahison des clercs [A Traição dos Clérigos], pela abstração e raciocínio excessivamente teórico, não viam qualquer traição na sua posição – para eles a abstração era a verdade.

No século XIX o compromisso intelectual tinha que ver com revelar que algo era falso. Após uma geração, o compromisso intelectual consistia em proclamar verdades abstractas.

(…)

Timothy Snyder: Há então esse momento, no fim dos anos 1940, em que Camus diz muito honestamente: e se estivéssemos todos simplesmente errados? E se Nietzsche e Hegel nos enganaram e realmente houver valores morais? E se durante este tempo todo devíamos ter estado a falar deles?

(…)

Tony Judt: Isto é, se a vocação de um intelectual é mais do que procurar a veracidade enquanto contrário da falsidade e algo distinto da verdade maior, que mais é que ele ou ela devia fazer? Se os intelectuais já não defendem uma verdade maior ou devem evitar o tipo de postura que dê a entender que o fazem, então o que defendem exatamente? Para citar Thomas Nagel: «Que tal é a vista a partir de nenhures? Acho que, de uma forma ou de outra, é esse o desafio que qualquer intelectual sério efrenta hoje: como ser um universalista coerente.”

Custa muito, não é?, e quando se pertence a uma ou mais capelinhas (organizações secretas e assim, maçonarias e opus dei e outras que minam a sociedade por dentro --"a ocultação das pessoas e dos meios de acção favorece a ambição pessoal e a conquista do poder económico e político por meio de processos ilícitos") que nos colocam na crista da onda, vir defender o que podia ser melhor e/ou denunciar o aproveitamento sem vergonha de quem mais tem contra os que menos têm. Enfim.

Citando José Mattoso: “Se teoricamente não existe contradição entre fraternidade maçónica e fraternidade cristã, também não se pode negar em muitos casos concretos que o que prevalece é a oposição. Assim acontece nas lojas que continuam o ateísmo e cujos membros se associam para beneficiar da troca de favores pessoais. O carácter secreto da fraternidade maçónica, em si mesma, também não é incompatível com o ideal cristão, mas a ocultação das pessoas e dos meios de acção favorece a ambição pessoal e a conquista do poder económico e político por meio de processos ilícitos. A sabedoria cristã não acusa a fraternidade maçónica como tal mas também não pode deixar de apontar os riscos, a perda dos critérios morais quando o objectivo é favorecer um grupo secreto e excluir os seus concorrentes.”

Nos últimos meses tem sido um deserto, gente que não tem nem teve coragem de vir dizer por exemplo que quem mais tem já devia estar a pagar há muito mais tempo.
 Já só aparecessem, cheios de gravitas, quando quase todos já o disseram.
 E como diz Judt mais lá à frente, e depois deixa-se esse ofício aos jornalistas que passam por ser os intelectuais, não diz no jornal?
Não passou na tv?
Não…
 É que momentos de excepção são momentos de excepção são momentos de excepção, fica-se mais nítido.

E os mais lúcidos e sem medo de perder aparecem:

Herberto Helder, de a “A faca não corta o fogo”:


(…) e escrever poemas cheios de honestidades várias e pequenas digitações
gramaticais
com piscadelas de olho ao «real quotidiano»,
aqui o autor diz: desculpe, sr. dr., mas:
merda!, 1971 – e agora,
mais de trinta anos na cabeça e no mundo,
e não,
não um dr. mas mil drs. de um só reino,
 e não se tem paciência para mandar tantas vezes à merda,
oh afastem de mim o reino,
afastem-nos a eles todos,
atirem-lhes aos focinhos o que puderem dela,
sim até se acabar a mirífica montanha,
ó stôr não me foda com essa de história literária,
o stôr passou-se da puta da mona,
a terra extrvaza do real feito à imagem da merda,
e então vou-me embora,
quer dizer que falo para outras pessoas,
falo em nome de outra ferida, outra
dor, outra interpretação do mundo, outro amor do mundo,
outro tremor
(…)


3. Continuemos ainda pelas páginas finais dentro em sentido inverso, página 270:

“Timothy Snyder: Por falar em Gibbon e na queda de impérios, queria que me falasses da relação entre conhecimento histórico e sentido da política contemporânea. Um argumento para se conhecer a história é a possibilidade de evitar certos erros.

Judt: Por acaso, não acho que negligenciar o passado seja o nosso maior risco; o erro característico do presente é citá-lo na ignorância. Condoleeza Rice, que tem um doutoramento em ciências políticas e foi directora da Universidade de Stanford, evocou a ocupação americana da Alemanha no pós-guerra para justificar a Guerra do Iraque. Quanto analfabetismo histórico se pode identificar só nessa analogia? Visto que nos inclinamos a explorar o passado a fim de justificar o comportamento presente, o argumento em prol de um conhecimento aprofundado da história é irrefutável. É menos provável que cidadãos mais bem informados sejam intrujados com aproveitamentos abusivos do passado em nome de erros presentes.”

E se os intelectuais estão que nem ratos o que é que se pode esperar, a não ser aquilo que se vê em quase todas as tvs e jornais?
A venda da banha da cobra, mais disfarçada ou menos disfarçada.
 Parecem parolos.
Parolos.
 Ai a minha vidinha, ai a minha vidinha.
 Ou, o que será bem pior, os critérios de orientação e de regulação e de avaliação são é outros que não o Bem Comum, a responsabilidade coletiva, a ética, o respeito.
E então está tudo certo.
E então.
Então é a maior das farsas.
 E aquele olhar de soslaio com o músculo quase em riso do “eu sou bom” é cá duma parolice… 
Jasus.
 Podia ficar assim, mas não seria justo.
 Por exemplo. Os que não aparecem ou aparecem pouco quando falam arrasam e os que estão sempre a falar nada dizem, um clássico claro.
 Manoel de Oliveira e Herberto Helder, por exemplo, são exemplos. Leia-se e veja-se os seus últimos trabalhos. Contundentes. José Gil, a partir da revista Visão, também. Vasco Pulido Valente. Eduardo Lourenço, ainda que mais sistematizador. Miguel Esteves Cardoso. Por exemplo.

4. Continuemos agora para o fim que é quase no princípio, página 106:

“Outra distinção importante respeita aos que fazem cálculos dependentes do futuro, ou em nome de outros, e aos que fazem esses cálculos sentindo-se na liberdade de os impor aos outros. Uma coisa é dizer que estou disposto a sofrer agora por um futuro insondável mas possivelmente melhor. Outra, muito diferente, é autorizar o sofrimento dos outros em nome dessa mesma hipótese indemonstrável. Este, na minha opinião, é o pecado intelectual do século: decidir o destino dos outros em nome do futuro deles, tal como o vemos, um futuro no qual podemos não ter palavra, mas relativamente ao qual nos arrogamos informação exclusiva e perfeita.”

Vamo-nos apercebendo muitas ou poucas vezes das figurinhas ridículas que vamos fazendo quando dizemos isto aquilo aqueloutro. Patacoadas.
E vamos vendo também os outros a fazer isso.
Com insistência e cheios de gravitas, cronistas e comentadores um circo.
Discutem Bem comum, interesse público, bem colectivo, isto e aquilo. Mas são pressupostos ou indicadores errados para Portugal.
A vidinha, a vidinha sim.
Para país é preciso muito mais.
E vê-los depois já com 60s e setentas anos a defender o Bem Comum uma pessoa fica a pensar o que será a vergonha na cara e a parolice sem limites.
E mesmo ao lado deles os de trinta e assim já cheios de sabedoria e razão e que os devemos seguir.
E assim.


posted by Luís Miguel Dias domingo, janeiro 20, 2013

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