quarta-feira, janeiro 18, 2012
Pedro Costa, Manoel de Oliveira + Tom Waits
Há uns bons anos ouvindo outros e descobrindo uma descoberta percebi que havia livros perigosos, Niebla, por exemplo, de Unamuno, Regresso ao Paraíso, de Teixeira de Pascoaes, outro exemplo.
E depois fui ouvindo, aqui ali acolá, que havia filmes perigosos. Que substituiam o mundo de cá de fora por outro mais, digamos, mais justo mais justificado mais belo. John Ford, por exemplo. Rio Bravo, outro exemplo.
Os dias iam/foram passando e mais tarde fui conhecendo mais obras, esculturas, perigosas: Soares dos Reis. Bernini. Rui Chafes.
A bíblia ilustrada. Caravaggio. Flannery O`Connor. Carson McCullers. Herberto Helder. Adília Lopes. Eurípides. Pina Bausch.
Perigosos porque, também, mostram que outro mundo é possível, e que é possível falar para quem não quer ouvir, ou para poucos, ou para peixes. Mais justo mais justificado mais belo. Perigoso.
Olhemos para um excerto da Cidade de Deus de Santo Agostinho:
"Como é que parece que se deve entender o que está escrito Deus separou a luz das trevas
A própria obscuridade da palavra divina tem esta vantagem: suscita e esclarece várias explicações verdadeiras quando uns a entendem de uma forma e outros de outra forma (contanto que o que numa passagem se entende com dificuldade se confirme com o testemunho de factos manifestos ou com outras passagens bem claras; --quer se acabe, enquanto se esclarecem muitas questões, por encontrar o pensamento do escritor, quer, embora continue oculto, se manifestem outras verdades durante o aprofundar dessa obscuridade)."
E a falar em vez de escrever às vezes é melhor. Os riscos também maiores.
Neste excerto Pedro Costa manifesta poderosamente as suas reflexões sobre Portugal.
Ficamos sem saber o que dizer porque é mesmo assim.
O fotograma de Ventura no museu vai no mesmo sentido do fotograma de Oliveira mas ao contrário porque... Jacques Rancière: "Se exclui o trabalhador que o construiu, é porque exclui o que vive de deslocações e de trocas: a luz, as formas e as cores cambiantes ou o rumor do mundo, da mesma maneira que os trabalhadores vindos das ilhas de Cabo Verde. É talvez por isso que o olhar de Ventura se perde algures na direcção do tecto." O de Oliveira perde-se não no teto mas... Vasco Pulido Valente mais Pacheco Pereira, num jornal diário português. O ciclope, Eurípides, claro: alto e pára o baile! O que é isto? Que festança é esta?
A excelência do trabalho de Pedro Costa é comovedora.
Manoel de Oliveira, apontemos a agulha para o terreno. Este filme é uma crítica corrosiva a Portugal, de agora e de outrora, mas mais de agora, que é uma continuidade do antes, a castração, a exploração, o aproveitamento, a corrupção, a vontade, a desilusão...
Neste momento, como noutros, de pernas abertas e cabisbaixos. No secundário um professor disse-nos que, como portugueses, fomos/somos sempre muito interesseiros, sempre do lado de quem nos dá dinheiro, sempre à espreita. Sempre, sempre, talvez não, mas a partir de 1578... excetuando...
Oliveira não deixa nenhum pormenor ao acaso, é de uma excelência...
Pina Bausch mostra, de e neste outro ângulo, de forma comovedora e maravilhosa, o mundo português dentro do mundo. mostra-o de forma muito diferente, mais geral, do de Pedro Costa mas o sentido é o mesmo. em masurka fogo durante três horas temos a agulha virada para aquilo que fomos somos seremos ou podíamos vir a ser, connosco e com os outros. Cabo Verde. Ah, Cabo Verde.
e fala-nos de e com amor.
nós, cegos, é que não quisemos queremos e não quereremos ver. é que enquanto cada um de nós pensar que só vive uma vez logo blá, blá, bla...
ainda somos, e cada vez mais, como os brasileiros nos viam: de chapéu, bengala, e muito respeitinho. Nunca soubemos nem quisemos nem queremos ser diferentes. Somos de granito. O mundo português de Pina Bausch é a utopia. O de Pedro Costa a realidade.
O que José Marttoso denunciou e trouxe à conversa é também o que Pedro Costa mostra e diz, uma sociedade amordaçada e com ares de príncipes quando não somos mais do que indivíduos ou pessoas em luta, mais ou menos acesa, pela imortalidade e vaidade, atropelando outros, olhando pouco para o lado.
Daí Eurípides, e a falta de vergonha como a maior de todas as enfermidades humanas, espelhada em quase tudo o que é sítio, naquele nosso ar de quem és tu? quem te julgas? fala baixinho senão... de que família és? tens carta de condução?
E Heródoto, claro, também: "uma das suas atitudes é o que há de mais absurdo: se se é comedido na admiração que se lhe manifesta, ele fica zangado por não ser lisonjeado com mais entusiasmo; se se lisonjeia com mais entusiasmo, fica zangado por se julgar adulado."
Eu, que lutei tanto para aqui chegar? Quem? Eurípides. claro. eu que abandonei a lançadeira junto do tear e me elevei a mais altos feitos.
E Santo Agostinho e Simone Weil e nós: o que somos, quando somos? Aptos a confundirmo-nos, não importa em que momento, com a massa comum da humanidade?
Também por isso a simpatia de Moretti?
Apetece-me terminar esta série com uma música que ouvi hoje: San Diego Serenade, Tom Waits:
A letra é de sempre mas para Tom Waits disco The Heart of Saturday Night é de 1974.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, janeiro 18, 2012