terça-feira, outubro 18, 2011
Cruzaram-se nas minhas leituras destes dias o excelente Deus e Caravaggio, Carlos Vidal 2011, Edições Vendaval e Carlos Vidal, e o excelente Vós aqui, Sr. Brunetto?, de Paulo Pires do Vale, texto do catálogo da exposição de Rui Chafes INFERNO (a minha fraqueza é muito forte), galeria arte moderna e contemporânea João Esteves de Oliveira.
E como lhes segui algumas ligações vou ver se as consigo organizar, afinal anda tudo ligado.
I
1) No capítulo segundo, O desenho sem desenho, Carlos Vidal escreve: “intentam alguns destes autores – sobretudo Venturi, Friedlander ou Wittkower – sublinhar o carácter anticlássico e mesmo revolucionário da pintura de Caravaggio (uma pintura sempre atacada sem desenho, e realmente não se conhece nenhum desenho de Caravaggio, uma pintura que é um pensamento exterior ao desenho, onde o contraste luz-sombra nunca admite gradações nem valores intermédios atmosféricos…), um corte radical na história por vezes matizado por outros autores, como Wittkower que não opta pela total oposição Carraci-Caravaggio; na perspectiva do corte revolucionário com o classicismo (mas não apenas, como veremos), pode pensar-se em Caravaggio como o criador de uma sequência evenemental (utilizando os termos da reflexão filosófica de Badiou a propósito do conceito de «acontecimento», ou emergência do inédito sem precedentes e sem leitura explicativa), na qual o claro-escuro tenebrista, ou o tenebroso, se desreferencializa inclusive do habitual e característico da pintura lombarda contemporânea do artista (um tema a desenvolver, este, o da pintura do norte de Itália), tenebroso que, por exemplo, Giulio Mancini (que nas Considerazioni sulla pintura, de 1617-21, reconhece Caravaggio como protagonista de uma experiência pictórica nova) e Bellori vêem como atentatório dos cânones de beleza de Rafael, de Ticiano ou Correggio, mas também posso acrescentar dos preceitos de cor-luz-sombra e volumetria ensinados por Leonardo; tenebroso caravaggesco que consiste numa sobreexposição lumínica das formas-corpos, sempre alicerçado numa funda e absoluta obscuridade (pois todo o claro-escuro tenebrista é dialéctico, dirão Michael Fried e John Rupert Martin); tenebroso que abre, para Michael Fried, o campo da pintura até ao mundo infinito exterior, interior e exterior confundidos e sem atmosfera.”
E um pouco logo mais à frente: “O que, juntamente com as suas invenções luministas, sem precedentes nem descendência óbvia nos leva a verificarmos estar perante um autor que pensa a pintura nela própria, ou seja, no médium. Ao contrário de Poussin, Caravaggio faz da pintura o palco da sua própria gestação, porque outro não há (e, em Poussin, seja da pintura seja da escultura esse palco é o desenho, ou melhor, o desenho-encenação).”
E depois: “o «homem pintor sem hesitações» ganha forma, pois não apenas não temos desenhos preparatórios como são escassas as emendas realizadas ao longo dos trabalhos.”
E: “ou seja, o momento caravaggesco sobrepõe-se à ideia –a esse instante gravado na pintura chama Fried de «momento Caravaggio»; eu chamaria de «acontecimento Caravaggio» (a que acrescento a invenção do que denominarei uma «luz sem nome»). Recorro aqui ao termo «acontecimento» tal como proposto e definido na filosofia de Alain Badiou.”
2) No ponto quatro Repetição e Excesso, Paulo do Vale escreve: “Neste Desenho a repetição encontra-se também na cor. A ´ordem` da linha é ´sobressaltada´ pela mancha encarnada. Se já a linha era inquietante, a mancha introduz algo de caos. Sobre a perfeição, derrama-se a ameaça e o desastre. O terror que estava entre os órgãos. Testemunhamos um confronto na página, entre a precisão do traço e o inesperado, incontrolável da mancha. O efeito mais evidente é a repulsa, mesmo o nojo. Esse vermelho que pinga, como ferida aberta num corpo e deixa a marca da sua passagem, é sinal: é revelação de um interior vivo. Mas agora, já não em movimento interior, remete para violência do sangue derramado. Retomo (e adapto) a pergunta de Newman: Who`s afraid of red?
Há uma materialidade nestas manchas, que a linha não tem. Colocam o acento na matéria, desviando-nos da ideia. Contrariam e inquietam, no seu carácter excessivo. Sujam o que parecia ideal. Mas não é a história da impureza do sangue que é convocada, mas a do seu carácter salvífico. A do sacrifício redentor. Uma acção que se ultrapassa. Excedente.”
E mais à frente: "Este Desenho é, neste sentido, blakeano, infernal: o caminho do excesso, que antes apontámos como intensificação. Um perigo, mas o artista sabe que é seu dever aceitá-lo: onde maior o perigo, ´também a salvação é pródiga (Hölderlin). É falta de prudência, dirão alguns: o tema, os fragmentos, as referências, a morte, o sangue… A prudência é uma velha companheira da impotência, responderia ele.”
II
1)Voltemos a Deus e Caravaggio: “Mas é também muito pertinente o modo como Stendhal descreve as obras dedicadas a S. Mateus na Capela Contarelli de S. Luís dos Franceses: aí fala-nos Stendhal da presença de camponeses grosseiros mas plenos de energia, algo que poderia alargar-se a outras obras de Caravaggio.
Ora, esta «grosseria» cruzada com «energia», enquanto qualidade figural, não fora obviamente partilhada por Jacob Burckhardt (…) Acusava o pintor de transformar a sublimidade num lugar-comum. Radicalizando as suas considerações, dizia ainda Burkhardt que o escudo com amedusa, dos Uffizi, parecia um rosto com o ar de alguém a quem tinham extraído um dente. Portanto, enquanto Stendhal atribui carácter energético aos modelos proletarizados de Caravaggio, Burkhardt fala-nos de «vulgaridade». E aqui é Burkhardt que erra, por certo. Porque os modelos proletarizados e «sem correcção» de Caravaggio nada podem ter de transgressivo ou «vulgar» para um leitor de S. Filipe Neri, como Caravaggio o foi e outros estudiosos o confirmam (Maurizio Calvesi).
2) Voltemos também a Vós aqui, Sr. Brunetto? : Há um afã de excesso neste Desenho. Um excesso mais devedor do pórtico do gótico que da teatralidade barroca. Compor, montar, sobrepor imagens, acrescentar camadas, gordura, flores esmagadas, manchas de diferentes vermelho-sangue, emblemas-alegorias, símbolos, referências históricas, frases mais ou menos enigmáticas… Excessos de quem parece seguir como conselhos alguns dos Provérbios do Inferno de Blake:
´O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria`.
´A Prudência é uma velha solteirona rica e feia, cortejada pela Impotência.´
´O orgulho do pavão é a glória de Deus.`
´A Exuberância é a Beleza`.
Também pelo excesso, a simpatia de Blake é para com o Demónio: que está ao lado das ´forças da revolução`, da manifestação da Energia da vida –contra a Lei, a escravatura, o bom senso, a mediania e os poderes estabelecidos. Nisso Blake é um companheiro das descidas perigosas de Dante e das escaladas montanhosas de Nietzsche.”
III
1) Da nota de rodapé 104, um excerto: "Paulo [S. Paulo], como Lenine, são modelos revolucionários para Alain Badiou, na medida do seu específico «materialismo»: Lenine através de uma nova sociedade que não pré-existe à revolução, Paulo através do ensinamento de que o sujeito cristão não pré-existe ao que ele próprio, sujeito, declara e prescreve. Deste modo: «1 / O sujeito cristão não pré-existe ao acontecimento que ele próprio declara (Ressurreição de Cristo).”
2) Da nota de rodapé 101: “Kierkegaard, La reprise, p.166 – Constantius, Kierkegaard, que de si dizia que pertencia à ideia, e que quando a ideia o chamava, abandonava tudo, escreveu: ´viva a descolagem do pensamento, viva o perigo de morte ao serviço da ideia, viva o perigo do combate, viva a jubilação solene da vitória, viva a dança no turbilhão do infinito (…)”
IV
Li primeiro A Divina Comédia e só depois A Montanha Mágica e sublinhei nos dois o nome Brunneto Lattini, mas só em Mann li que ele escreveu “um livro sobre as virtudes e os vícios” e que “fora ele o primeiro a esmerilar a cultura dos florentinos e a ensinar-lhes a oratória bem como a arte de dirigir a sua República conforme as regras da política.”
Hans Castorp e o primo Joachim ouviam, num dos seus primeiros excursos, Settembrini: “havia dois princípios que disputavam a posse do mundo: a Força e o Direito, a Tirania e a Liberdade, a Superstição e a Ciência, o princípio da conservação e o do movimento: o Progresso. Podia chamar-se a um o princípio asiático e ao outro o europeu, visto ser a Europa a terra da rebelião, da crítica e da actividade transformadora, ao passo que o continente oriental encarnava a imobilidade, o repouso.”
E mais à frente: “E também deveriam ter ouvido Carducci a interpretar Dante: celebrara-o como cidadão de uma metrópole que defendia contra a ascese e a negação do mundo a força activa que revoluciona e melhora o mundo. Porque, não era a sombra enfermiça e mística de Beatriz que o poeta honrava sob o nome de «donna gentile e pietosa»; pelo contrário, designava assim a sua esposa que no poema representava o princípio do conhecimento das coisas deste Mundo e da actividade da Vida… (…) Porque a Literatura não era outra coisa senão isso: a associação de humanismo e da política, associação que se realizava tanto mais facilmente quanto o próprio Humanismo era política e a política significa humanismo (…) – Aí está! –E passou a falar do «verbo», do culto do verbo, da eloquência, que qualificou de triunfo da Humanidade. Porque a palavra era a honra dos homens, e só ela tornava digna a vida do Homem. Não somente o humanismo mas também a Humanidade em geral, toda a dignidade humana, todo o respeito pelos homens e toda a estima do homem por si mesmo, tudo isso era inseparável da palavra, estava ligado à Literatura.”
V
Por que é que os textos são excelentes?
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, outubro 18, 2011