A montanha mágica

terça-feira, setembro 27, 2011

Alterando o ângulo de visão (8)


VIIIQuando em Hilandar-Athos surgiram/os primeiros tocadores de címbalos


Enquanto via pela primeira vez Poesia (2010), Lee Chang-dong, dois nomes a ele se juntaram: Heródoto e José Tolentino Mendonça. Para mim, naquele momento, eram iguais, são iguais.


Do filme Poesia:


































De A noite abre meus olhos, José Tolentino Mendonça:


"A fonte do castelo de Brideshead
era o lugar ideal para enterrar
uma pepita de oiro
se a tivéssemos

*

Quando em Hilandar-Athos surgiram
os primeiros tocadores de címbalos
e o seu cortejo foi saudado
com pétalas perfumadas
e grinaldas
na Porta Alta do Templo
Já lá vivia o monge Rubliev
o que chamavam pintor

*

Agora tem as mãos cheias de sementes
de navios os olhos fundos que encantam Sara
e não há mar lagoa sequer
é tudo deserto

*

Ao fundo da esplanada na mesa virada para Patmos
gritei pelo anjo da revelação
«ninguém no céu na terra ou sob a terra
era capaz de abrir e ler o livro»

*

Todas as noites concedia-se reparar
a imprevisível deambulação da alma
recorria ao sortilégio de umas cartas herdadas

*

Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa

*

Se agitares tesouras numa fogueira
não esqueças que me feres
um avesso de lume é o meu único
segredo
no impreciso avanço das lâminas
um anjo o descobriria

*

Lendo os seus manuscritos
enquanto ele dormia
aprendi, em segredo, doutrinas
acerca do cânone
das Escrituras Santas

*

Em tão pouco cabe a exetensão de uma vida
os olhos perdemos no vasto norte

*

as mulheres sentavam-se á porta com os bordados
quando passavam estrangeiros
ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias

*

O doge não me recebeu na grande praça
estava então em combate
num porto longínquo do oriente

*

ao final foi tudo muito simples
essa sombra que tens
disse-me o oficial de serviço
já não és

*

Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra

*

A vida esconde-se sob uma folha trémula
mas ao removê-la cuidadosamente

*

De O viajante sem sono

O mundo do poema é um mundo mineral:
com o jaspe e o nácar, o coral e o osso
os poemas criam por séculos e séculos formas
incomparáveis

*

Se tiveres de escolher um reino
escolhe o relento
a noite tem a brancura do alabastro
ou mais extraordinária ainda

*

A vida tem inimagináveis distâncias?"



Heródoto, Histórias:


"no séquito de Dario, havia um egípcio que tinha uma voz fortíssima como não existe outra. A este homem Dario ordenou que se pusesse na margem do Istro e chamasse Histieu de Mileto. Ele assim fez, e Histieu, em resposta ao primeiro chamamento, preparou todos os navios de forma a permitirem a travessia do exército e restabeleceu a ponte"

"é quando estão tocados pelo vinho que costumam discutir os assuntos de maior importância. Aquilo que decidiram é-lhes apresentado no dia seguinte, em jejum, pelo dono da casa onde decorre a discussão; se, em jejum, o aprovarem também, fica decidido; se discordarem, põe-se a solução de lado. Decisões que tomem em jejum, voltam a apreciá-las sob o efeito do vinho"








*



Escreve Aristóteles: "que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) --diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta, o particular. Por "referir-se ao universal" entendo eu atribuir a um indivíduo de determinada natureza pensamentos e acções que, por liame de necessidade e verosimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim enetendido, visa a poesia, ainda que dê nomes aos seus personagens; particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu."

(pois bem que poderiam ser tornadas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser História (deixem lá, deixem lá), se fossem em verso o que são em prosa)

A dado passo Collingwood escreve: "A busca do eterno, por parte dos gregos, foi tão ávida, precisamente porque os próprios gregos tinham um sentido insólito e vivo do temporal. Viveram numa época em que a história evoluía com extraordinária rapidez e numa terra onde os terramotos e a erosão modificavam a superfície terrestre, com uma violência dificilmente encontrada em qualquer outra parte. Viam a natureza como um espectáculo em constante mutação e a vida humana a transformar-se mais violentamente do que qualquer outra coisa."

E logo a seguir: "sabendo que nada na vida pode persistir imutável, perguntavam-se muitas vezes que transformações se tinham produzido, exactamente, para gerar aquele presente. A sua consciência histórica era, assim, não uma consciência de tradição perene, moldando a vida duma geração após outra, segundo um modelo uniforme; era, antes, uma consciência de violentas peripécias, transformações catastróficas de um estado de coisas para o seu contrário, da pequenez para a grandeza, do orgulho para a humilhação, da felicidade para a desgraça. Foi assim que eles interpretaram o carácter geral da vida humana no seu teatro, e descreveram, na sua história, os casos particulares dessa vida."

E antes de chegarmos aqui Collingwood pergunta "o que é a história, de que trata, como procede, e para que serve" e saltemos até para que serve a história? E responde assim: "a história é para o autoconhecimento humano. Julga-se, geralmente, que é importante, para o homem, que ele se conheça a si próprio, não querendo isto dizer que ele conheça as suas particularidades meramente pessoais, aquilo que o diferencia dos outros homens, mas sim a sua natureza de homem. Conhecer-se a si mesmo significa saber, primeiramente o que será o homem; em segundo lugar, saber a espécie de homem que se é; em terceiro lugar, saber o que será o homem que se é, distinto de qualquer outra pessoa. Conhecer-se a si mesmo significa saber o que se pode fazer. E como ninguém sabe o que pode fazer antes de tentar, a única indicação para aquilo que o homem pode fazer é aquilo que já fez. O valor da história está então em ensinar-nos o que o homem tem feito e, deste modo, o que o homem é."

(mas sim a sua natureza de homem. Conhecer-se a si mesmo significa saber, primeiramente o que será o homem; em segundo lugar, saber a espécie de homem que se é; em terceiro lugar, saber o que será o homem que se é, distinto de qualquer outra pessoa. Conhecer-se a si mesmo significa saber o que se pode fazer)


Em A Leitura Infinita, José Tolentino Mendonça:

Há nestes livros bíblicos [Livros Históricos] um tratamento sofisticado das ferramentas narrativas, a começar pelo estatuto do narrador. Num relato histórico estrito, em princípio, o narrador coincide com o autor, e o ponto de vista que ele adopta é externo. O narrador bíblico, porém, não se confunde com os autores e redactores sucessivos do texto. E mais: dispõe da faculdade de omnisciência, que lhe permite variar a focalização do seu relato e penetrar o interior dos personagens, sondando o subsolo da alma. Inacessível ao historiador é também a recomposição que ele faz do tempo, com avanços e recuos. O relato histórico é constituído preferencialmente por sumários. O relato bíblico por cenas."

Heródoto antes de ser historiador é poeta, um stalker poeta historiador.

Tolentino: "Tolstoi trazia a convicção de que este tipo misto de narrativa consegue uma aproximação à verdade mais significativa do que aquela obtida pelo relato historiográfico estrito, pois permite apresentar os acontecimentos sob a forma de experiência pessoal e imediata. Enquanto o discurso histórico esbarra com a inultrapassável opacidade de factos e personagens, o autor bíblico até mesmo dessa opacidade tira partido: é precisamente nesses territórios obscuros que a ficção revela o seu poder de verdade."

E voltando um pouco atrás, "como nas novelas de Conrad, somos levados a um impressivo contacto com os personagens, mas a partir de dados fragmentários, de motivações aleatórias, hipotéticas, que parecem mesmo subtrair-nos perigosamente a toda a compreensão..."

Voltemos a Collingwood, p. 42, sobre a obra de Heródoto: "foi escrita para preservar do esquecimento pelo tempo acções gloriosas, precisamente porque --quando a sua geração tivesse desaparecido -- esse trabalho nunca poderia voltar a ser realizado".

Acções gloriosas? Muito, tanto, mais diz do que isso, mas tanto mais. Exemplos?

Termino com outro excerto de A leitura infinita:


posted by Luís Miguel Dias terça-feira, setembro 27, 2011

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