A montanha mágica

quarta-feira, junho 15, 2011

Alterando o ângulo de visão (7)


VIIos manuais asseguram que globos ocos pintados/em vez de olhos de vidro


Sou daqueles que acha que os mais recentes livros de Tolentino Mendonça, O Hipopótamo de Deus e outros textos e o Tesouro Escondido são como que traduções de matérias/assuntos de mais difícil abordagem/justificação, teológicas e não só.

As crónicas ao domingo no Diário de Notícias da Madeira cumprem também muito bem essa função, esse papel, acho.

Em A Leitura Infinita Tolentino Mendonça, a respeito de uma leitura da parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14), faz uma distinção entre linguagem de mudança e linguagem de reforço, dizendo que esta última se entende por "uma linguagem didáctica que tem por finalidade explicitar, explicar e clarificar". E diz ainda que "a função deste tipo de linguagem não é a de desafiar o destinatário/leitor a uma mudança de perspectiva, mas a de evidenciar as relações e as consequências de uma determinada problemática." Tolentino citando J. Zumstein "«a compreensão tradicional da parábola onde a imagem está ao serviço de um tema remonta a este modelo»."

Por linguagem de mudança diz o autor que "tem por finalidade não apenas explicitar ou aprofundar uma questão, mas sobretudo [J. Zumstein] «abalar e modificar a concepção que o destinatário potencial tem da realidade»".

Umas linhas mais à frente, pergunta o autor: "De que maneira realiza a parábola esta radical transformação no leitor?"

E dá um exemplo: "por exemplo, a parábola do tesouro escondido (Mt 13,44) prefigura este processo de reenquadramento na medida em que mostra como a descoberta de uma nova realidade leva a reavaliar completamente a vida".

Enlaçando os dois versos que dão título a este ponto sete, e mesmo todo o poema, com aquilo que Tolentino Mendonça diz sobre a semântica da parábola "a semântica é normalmente apresentada como a relação entre os sinais e os objectos aos quais eles são aplicados. Trata-se de buscar o significado, o «querer dizer» escondido na pluralidade de referentes e matizes do tecido narrativo. Inútil, porém, seria o intento de esgotar o «sentido» em explicitações que, muitas vezes, tocam simplesmente o seu limiar, o umbral ainda distante da intimidade e do autêntico (do nupcial!) (...) Porque ordenar essa vital «desordem» que propicia a vida do texto é, avisa o poeta, tornar-se «o polícia do texto», não o seu afectuoso e atento leitor."

Voltando atrás, dois pontos: descobrir e reavaliar completamente a vida e, segundo, não ser, por e para isso, polícia de nenhum texto pois

e quando, por fim, dispõe a pele e a costura
alguma coisa infinita morre às suas mãos



Creio que a leitura de Tolentino Mendonça tomou, nos últimos anos, dois, três, talvez, estes dois caminhos: a de explicitar, a mais recente e uma possível porta de entrada, e depois a essencial e primordial o abalo e a mudança, que já vem de trás, da sua poesia, em prosa e em verso, que não se separa do/da explicitação, são a mesma. Inteireza.

Só recentemente tive a oportunidade de ler o texto que José Augusto Mourão escreveu e leu na apresentação da, digamos assim, segunda edição de A noite abre meus olhos. A minha edição é a da capa com pintura de Ilda David, 2006, com posfácio de Silvina Rodrigues Lopes.

E só recentemente, então, ao ler o texto de José Augusto Mourão li e concordei veementemente com o que diz sobre a contagem de palavras que alguns dos críticos fazem para escrever/criticar/recensear/apresentar os trabalhos de poetas e escritores. Concordo mas fiz o oposto, também dei comigo a contar e a separar palavras; ainda que isso seja de longe o mais secundário ou terciário, é ainda assim importante, foi a conclusão a que consegui chegar.

Não é contradição concordar e assinar as palavras que se seguem, de Mourão, é, antes sim, procura em estado atrasado:

"Estou para perguntar em que direcção caminham estes versos. Também para contrariar aquilo a que a linguagem académica chama o “estado da questão” e que é, muito frequentemente, a constatação da morte clínica do apelo. “Há críticos que examinam as palavras mais frequentes num livro e as contam! Procurai antes as palavras que o autor evitou, de que estava muito perto, ou claramente afastado, estranho, ou de que tinha pudor, enquanto outras faltam.” [2] Não farei lexicometria: o sentido não está nas palavras, mas no seu curso (no discurso)."


Mas antes de chegarmos a algumas dessas palavras e a um poema em particular e a um autor também em particular, trazer para aqui um excerto da conversa entre Maria Filomena Molder e Anabela Mota Ribeiro, publicadas no ípsilon do passado dia vinte de Maio:








Antes de prosseguirmos, voltemos a José Augusto Mourão:

"O acto de leitura dos textos literários supõe, antes de mais, o reconhecimento obrigatório, mas tantas vezes abandonado, que um texto é um texto, isto é uma construção de linguagem – lugar da emergência e da articulação do sentido. A significação ganha na linguagem uma consistência própria, irredutível à de um simulacro da realidade. Porque a ultrapassa, a excede. Não se aborda um texto para perguntar que ideias o autor desenvolve, mas para inquirir de que experiência particular ele fala, de que relação ao mundo, à phusis ele trata. Não há apenas o logos, anterior a nós, as coisas são os nossos interlocutores. Sem o corpo que regista ou transcreve, que ficaria a assinalar a nossa passagem? Sem um corpo “paciente” (que faz a experiência dos afectos) e um corpo “agente”, que indícios restariam da autobiografia camuflada que cada um escreve? [4 - Jean Claude Coquet, Phusis et Logos. Une phénomenologie du langage, Presses Univ. de Vincennes, 2007, p. 197].


Um poema em particular, de A noite abre meus olhos


A última corrida

Era um rapaz que partiu
para conhecer o medo
o seu coração arranhado pelas chamas
tropeções de um cego que foge da aldeia
nessa noite
quem conseguiria contar

de comboio em pensamento seguiu para Bréscia
a última corrida de aeroplanos do século
andava à roda de trinta mil libras
e ele queria muito voar sozinho
sobre florestas

ninguém soube mas a sua vida
vista daquele aeroplano maravilhara-o
chegariam os nevões é verdade
novas e novas sombras sobre a terra
mas a sua vida vista do aeroplano era tão grande
como nenhuma outra coisa que conheceu

cá em baixo diziam:
«o seu voo prolonga-se sobre cada floresta
e desaparece
nós vemos as florestas
mas não o vemos a ele»


Poema originalmente publicado, creio, pelo menos, em Longe não sabia. Já lá iremos.

Um autor também em particular: Franz Kafka e o livro Os aeroplanos em Brescia e outros textos. Brescia (sic).

Se bem me lembro, o primeiro livro de kafka que li e comprei foi este. E sei que gostei muito. Outro desses textos que me marcou foi, lembro-me, Recordações da estação dos caminhos-de-ferro de Kalda.

Quando li, pela primeira vez, A última corrida e em especial os versos

de comboio em pensamento seguiu para Bréscia
a última corrida de aeroplanos do século
andava à roda de trinta mil libras


levantei os olhos e foi em Kafka que parei. E foi como uma madalena de Proust, de me ter lembrado de como gostara daquele conto de Bréscia (como dizia alto pronunciava assim), daquele movimento, daquela procura, daquele querer ver, daquela multidão, daquele olhar mais ao pormenor, daquele querer ir, daquele barulho, daquela entoação. Daquela série sobre os pioneiros da aviação que vi na tv e que ainda trago guardada, qual cromo que também colecionei de asas de madeira compridas.






Os dias contados é o primeiro livro de Tolentino Mendonça; dias, poemas, vento, fogo, olhar/olhos, anjo, águas, face/rosto, folhas, palavra, medo, tempo. OLHAR/OLHOS. FOGO.

Longe não sabia é o segundo; anjo, fogo, olhos/olhar, vento, iluminação, tempo, sombra, casa, poemas/versos, incêndios/labaredas/chamas, campos, carreiros/atalhos, luz, medo, palavra, noite, dias. OLHAR/OLHOS. NOITE.

Numa nota do editor da versão de Os aeroplanos em Brescia e outros contos que tenho, edição dos livros do Brasil, 1988, diz, citando Reinhard Lettau, que "em Kafka o acto de ver teve lugar antes do acto de escrever. O crítico chega mesmo a afirmar que o acto de escrever é apenas uma curta interrupção num ver permanente (...) Os fragmentos reunido em Os Aeroplanos em Brescia e Outros Textos não são «fracassos», como nos diz Reinhard Lettau, ou só o são se com isso significasse Kafka uma referência à singularidade da forma de descrever a verdade, não o real."

O que é difícil não é a contagem das palavras e da sua importância, o que é difícil é conseguir arranjar ou forjar uma escala que nos mostre que a utlização de uma palavra num determinado livro ainda que utilizada menos vezes é superlativamente maior em relação a outra que seja utilizada mais vezes.
Onde é que há uma escala dessas?
É também por isso que assino o que José Augusto Mourão escreveu.


No terceiro livro, A que distância deixaste o coração: águas, estações, palavra, olhar/olhos, casas, vida, noite, mundo. NOITE. MUNDO.

Baldios, o quarto livro: estações, palavra, olhar/olhos, silêncio, tempo, sombra, casas, vida, luz, noite, carreiros/atalhos, chamas/labaredas, amor. TEMPO. PALAVRA. VIDA. NOITE.

De igual para igual, quinto livro: estações, flor, palavra, olhos/olhar, vento, silêncio, tempo, casas, vida, noite, mundo, dias, amor, mãos. OLHOS/OLHAR. PALAVRA. TEMPO. VIDA. AMOR. MÃOS.


Voltando a uma escala de medir palavras, ideia trôpega, dar o exemplo de um dos outros textos de O hipopótamo de Deus, o texto Uma palavra lida em Herberto Helder. O que pode uma palavra! "«És tu o redivivo?» Não sei de pergunta mais bela que um homem tenha feito a outro homem."

Aliás, adentrando-nos mais, uma conversa à volta de uma ou da palavra, José Tolentino Mendonça e Manuel António Pina. Tolentino já havia escrito, há poucos dias, uma crónica para o Diário de Notícias da Madeira, intitulada Todas as palavras são cartas de amor, dois excertos:

"E volto, mais uma vez, a um ensaio da antropóloga Dean Falk, “Língua mãe. Cuidados maternos e origens da linguagem”. Dão-se hoje, praticamente como adquiridas, duas teorias sobre a origem da linguagem: uma que podemos designar “comunicativa” (aí se defende que falamos para fazer circular os nossos pensamentos de uma cabeça para outra) e outra chamada “cognitiva” (que sustenta que falamos para articular de forma mais sistemática os nossos próprios pensamentos). Ambas as teses consideram a linguagem como realidade mental, isto é, um dado que tem mais a ver com o pensamento do que com o corpo, mais com o trânsito dos raciocínios do que com o afloramento das emoções. É aqui que entra Dean Falk. A antropóloga propõe que cada um de nós, pelo contrário, começa a utilizar os sons linguísticos não propriamente para comunicar ou pensar, mas sim para permanecer em contacto com aquelas e aqueles que tomam conta de nós.

A linguagem humana é muito complexa. Por exemplo: para a definição do sentido global da comunicação interessa não apenas o que se diz, mas também a forma como se diz. A linguagem não é apenas composta por aquilo que acordamos serem sons significativos ou simbólicos. Não raras vezes, o próprio tom da voz veicula uma ampla quantidade de informação acerca das intenções de quem fala; há uma musicalidade inerente, encantatória, que se capta de ouvido; e, do mesmo modo, é necessário valorizar os traços da emotividade ou as manifestações da linguagem corporal que acompanham as palavras. O que se aprende com Dean Falk, mas também com Fernando Pessoa, é que as palavras são, mais do que tudo, a verbalização do desejo que sentimos do outro. No fundo, o que quer que digamos dizemo-lo para avizinhar ou reter o outro perto de nós, para retardar ou desmentir a sua ausência, para dizer que ele é demasiado importante para nós. Mesmo com áridos discursos ou frases friamente impessoais, o que dizemos não é tão diferente do que dizem os nascituros ou os enamorados. A linguagem humana é uma forma espantosa que encontramos para nos fazermos companhia."


Sexto livro, Estrada Branca: olhos/olhar, casas, sombra, cores, folhas, animais, Deus, tempo, carreiros atalhos caminhos escarpas..., vida, noite, mundo, corpo, instante fugidio gesto... OLHOS/OLHAR. FOLHAS. NOITE. CARREIROS ATALHOS CAMINHOS ESCARPAS... VIDA. CASAS. ANIMAIS.

Sete, Tábuas de Pedra: água, folhas, olhos/olhar, viajantes, carreiros atalhos caminhos escarpas. OLHOS/OLHAR. CARREIROS ATALHOS CAMINHOS ESARPAS...

O Viajante sem Sono: iluminação/brilho, tempo, casas, carreiros atalho canal enseadas corredor túneis trilhos declive, vida, noite, olhos/olhar, mundo, animais, cores, habitas, vstidão, atravessar. MUNDO. NOITE. CANAL CAMINHOS CORREDOR TÚNEIS TRILHOS.


Esta selecção de palavras é uma selecção pequena/curta e está muito longe de ser de alguma forma uma representação lexical, colhida por mim, são tantas as outras... pois "O mundo do poema é um mundo mineral:/com jaspe e o nácar, o coral e o osso"


Lembro-me de ter pensado quando li pela primeira vez o poema A última corrida da excelência do autor, do que contava, do que conta. Do como escolheu contar assim naquele tempo. Aquilo.

Na introdução ao belo e precioso livro Um Deus que Dança itinerários para a oração, Maio 2011, Tolentino Mendonça escreve: "As palavras são apenas o assobio que anuncia os passos do viandante que chega ou que parte."





E no prefácio do mesmo Luís Miguel Cintra: "Conta S. Mateus que Cristo terá dito no Sermão da Montanha: «se quiseres rezar entra no teu quarto e fecha a porta». Rezar é estar sozinho, sozinho diante de Deus. E foi aí que ensinou palavras comuns para os que não sabem que palavras ter para falar com Deus, que não precisa de palavras porque tudo sabe" e ainda citando Sophia, dirigindo-se à Musa "«Musa ensina-me o canto/Que me corta a garganta»."


Terminar este ponto sete com um excerto da entrada Oral/Escrito de Roland Barthes para a Enciclopédia Einaudi, volume 11, comprado na feira do livro por cinco euros, excerto esse que será o elemento de ligação com o ponto oito, sobre o nascimento da escrita:




"No fundo, o que quer que digamos dizemo-lo para avizinhar ou reter o outro perto de nós, para retardar ou desmentir a sua ausência, para dizer que ele é demasiado importante para nós."

posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, junho 15, 2011

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