terça-feira, maio 24, 2011
Do excelente leitor e escritor que Gonçalo M. Tavares é, embora, no que me diz respeito, defenda pontos de vista diferentes daquilo que é o magma a que os seus livros chegam, de personagem em personagem a, ainda só li meia dúzia e por isso quase me devia remeter ao silêncio, mas... houve algo + uma personagem que não deixou que isso acontecesse, e ainda bem. Da tetralogia O Reino.
Numa entrevista datada de 30 de Janeiro de 2008, ao blog Orgia Literária [16/5/2011], Gonçalo Tavares a certa altura diz "os nomes das personagens surgiram naturalmente. Quando comecei a escrever o primeiro, Um homem: Klaus Klump, naturalmente, ao começar a escrever com aquele ambiente, apareceram aqueles nomes. Portanto, os nomes das personagens são coisas muito pouco explicáveis. A certa altura, quase que tinham de ser aqueles nomes e não outros, embora por vezes eu hesite em dar um nome ou outro a uma personagem."
Reter naturalmente e apareceram aqueles nomes e coisas pouco explicáveis e quase que tinham de ser aqueles nomes.
Cada pessoa ao ler livros sublinha ou o texto ilumina-se-lhe num qualquer ponto frase ou canto; normal. Do primeiro ao quarto o que se sublinhou, no primeiro temos um início?
Quando Klump chega a casa e vê que Johana foi violada e sai vai-se embora para voltar muito tempo depois e ver em cima do móvel ou da tv uma fotografia dela com outro homem e deixar ______entrar no quarto e deitar-se ao lado da sua mãe já louca que diz que aquele homem está apaixonado por ela e que a fez feliz, Johana já louca também no hospício, e ver depois Klump a dizer o que diz na penúltima e última frases do livro... Início.
E depois Walser até dar com uma mulher de cabeça coberta a sua mulher a sair de uma casa que não a deles e depois mais tarde ao reparar nas mamas de ______ e também em busca de mais uma peça metálica.
E Jerusalém: aqui estou num impasse: porque só falta este ponto, tudo o que está antes e depois já está pronto, a mancha preenchida, e o impasse é que acho que devia ler outra vez Jerusalém para poder tentar ver/fazer/apanhar melhor o que não está tão explícito, aquilo que fica da voz que fala, alto, que diz. E neste momento não o consigo fazer. Continua-se? Pois. Continua.
Em Jerusalém apanhei, então, dados positivos/factos/pistas:
- "Guardou o bisturi estético e pegou na sua pequena mala preta. Estava, juntamente com seis outras mulheres, num rés-do-chão da Rua Georg-Lenz. - Vou sair --disse. - São três da manhã, se não chegar até às seis é porque alguém me matou. --E dando uma risada, bateu com a porta";
- "Lanz";
- "Quando o correio chegava, os homens interrompiam os seus percursos mais ou menos descontrolados, e rapidamente tentavam chegar aos envelopes, provocando depois os que nada haviam recebido, numa crueldade que lá dentro era aceite como normal. Havia, no fundo, uma moralidade própria, uma moral sobressaltada, nunca estável, uma moral inquieta, momentânea, que se transfigurava de um dia para o outro, de uma hora para a seguinte, de uma circunstância para a oposta; esta moral do instante, esta ética directa, imediata, tornara-se uma das aprendizagens dos homens e das mulheres que frequentavam Georg Rosenberg: a navalha corta, dizia Lanz, um homem obcecado pelo trabalho, e a enfermeira Stonia respondia-lhe: claro que a navalha corta";
- "O aniversário dos doentes era utilizado como arma de pacificação, o sentido normal dos dias era interrompido e um objecto perfeitamente inesperado como um carrinho de mão poderia surgir, de repente, no jardim do Georg Rosenberg. É o teu presente, Lanz".
E Aprender a Rezar na Era da Técnica e a Lenz. Chegamos. Voilà. Lenz.
"Ele prosseguiu com indiferença, de nada lhe importava o caminho, ora subia ora descia.
"Não sentia nenhum cansaço, era-lhe apenas por vezes desagradável não poder andar de cabeça para baixo.
A princípio sentia-se oprimido no peito, sempre que as pedras desabavam assim, e a floresta se agitava debaixo dele, e logo em seguida o nevoeiro ora consumia as formas ora revelava em parte as enormes formações; algo o oprimia, procurava alguma coisa, como sonhos perdidos, mas nada encontrava.
[..]
Na manhã seguinte, com um tempo enevoado e chuvoso, chegou a Estrasburgo. Parecia estar no uso da razão, falou com toda a gente; agiu tal como os outros, mas havia nele um vazio aterrador, já não sentia nenhum medo, nenhum desejo; a sua existência era para ele um fardo inelutável. - Assim continuou a viver."
Excerto de Lenz, de Georg Büchner, edições vendaval, 2006, tradução posfácio e notas de Bruno Duarte.
Lenz: "«Um amigo de Goethe»": Jakob Michael Reinhold Lenz, 1751-1792
Lenz: Lenz, de Büchner
Lenz: Lenz Buchmman, de Gonçalo Tavares.
Lenz: «Um amigo de goethe»:
Bruno Duarte: "Goethe permaneceu para Lenz uma espécie de eminência incontornável, capaz de determinar ao mesdmo tempo a sua ascensão e a sua queda, algo que se abate sobre ele para o subjugar no limite do seu fascínio, e para o fazer caminhar arduamente na sua sombra.
O texto que Goethe escreveu sobre Lenz, nas suas memórias, consegue incorporar tudo aquilo que pretende ser, um acto mnemónico de criação e uma palavra de autoridade cujo fim está em determinar não só a sua própria posteridade mas a de toda uma época que ele grava no seu nome e faz girar á sua volta. É neste quadro que o retrato de Lenz fica traçado de uma vez por todas, mas também, e de igual modo, por uma única vez isolada, que também ela fará uma espiral regressando sem fim ao mesmo nome. No seu sentido puramente formal, no modo como exibe o seu calculismo, a construção de Goethe é exemplar:
Ainda Bruno Duarte, "Lenz, dizem as crónicas e as biografias, desapareceu a partir de 1780, perdeu-se-lhe o rasto, foi dado como morto ou desaparecido (...) Celan não podia deixar esse passo sinistro e grave da biografia de Romanov --publicada na Rússia em 1901, na Alemanha em 1909--, no qual o fim de Lenz aparece descrito na sua maior crueza e no entanto sob o signo do mistério absoluto. Lenz, votado à miséria e à vagabundagem, morre na noite de 3 para 4 de Junho de 1792 numa rua em Moscovo, é enterrado por meios e por mãos anónimos, e o seu túmulo permanece até hoje desconhecido."
Lenz, de Büchner:
Ludwig Scheidl em A transmissão e fixação do texto Woyzeck de Georg Büchner, edições colibri, escreve "Georg Büchner nasceu em 1813, em Goddelau, próximo de Darmstadt do Principado de Hessen: começa a escrever em princípios dos anos 30, num tom claramente anti-romântico. É exemplo da nova orientação literária o texto político-social, mais propriamente um panfleto, que designou de ´Mensageiro de Hessen` em que se apela à revolta dos mais desfavorecidos, --os camponeses (...) Muito jovem, lê atentamente as notícia vindas de Paris, onde, em Julho de 1830, eclodiu a revolução que pões fim à política da Restauração, ou seja, ao período neo-absolutista em França. Esta geração pós-romântica conhece reclama novos modelos e programas lietrários que haverão de ser conhecidos por Realismo (...) É, de resto, este aspecto social da literatura que atrai Georg Büchner, como expressa no texto dramático Woyzeck. Numa carta à família, escrita em Fevereiro de 1834, pode ler-se:
`O aristocratismo é a forma mais vergonhosa do Espírito Santo no Homem; contra ele volto as suas próprias armas: altivez contra altivez, troça contra troça. Seria melhor saberdes de mim junto do meu polidor das botas, a minha altivez e o desprezo pelos pobres de espírito e pelos analfabetos encontrariam nele o seu melhor alvo. Peço-vos, perguntai-lhe... Não me ireis atribuir o ridículo da condescendência. Continuo a ter esperança de ter lançado mais olhares de compaixão a estas figuras sofredoras, oprimidas, do que disse palavras amargas a corações frios...`
É este o pensamento social que marca a literatura da ´Jovem Alemanha` --que precede a geração mais politizada/política dos anos 40, já num período de plena industrialização e que culmina com a Revolução liberal de Março de 1848. Esta geração virá a ser conhecida por geração de Pré-Março (Vomärz) e tem em Karl Marx um dos seus mentores.
O Realismo dos anos 50 retoma aspectos da ´Jovem Alemanha` e o drama social de Georg Buchner --Woyzeck-- será o modelo do novo teatro-naturalista de base social."
De um texto do Teatro da Cornucópia, de 18/7/78 [16/5/2011]:
"Aquilo que Büchner propõe no seu texto woyzeck, para o dizer muito simplesmente, não é um (ou vinte) espectáculos. Ele pouco tem a ver com o “teatro” e quer em 1836 quer agora a sua escrita (bem sabemos, baseada em Shakespeare, baseada no jovem Goethe, baseada em Lenz) não tem regras de cena algumas. O que Büchner propõe é um trabalho – um trabalho sobre o estar no mundo. O que Büchner propõe é o cingir a realidade até ao fantástico. Não se trata de um espectáculo poder ou não poder dar conta da “riqueza” do texto, como tantas vezes se fala a propósito dos clássicos (e nunca dos contemporâneos, os mal-amados!). Trata-se de que aquilo que Buchner propõe se não pode cumprir num espectáculo enquanto os espectáculos foram entendidos (e comprados) por aquilo que não podem deixar de ser: espectáculos que ali estão, que nos entram pelos sentidos e de que guardamos na memória tal ou tal ideia. O que Büchner propõe é radical: é transformar a história vivendo-a não do lado de fora, das “ideologias”, mas do lado de dentro, e do lado de dentro também das “ideologias”. Isso não é um espectáculo: é um programa de trabalho.
Dizia Jean Jourdheuil, depois de ter feito um espectáculo com woyzeck: “Sentimos a necessidade de voltar a pôr algumas questões abordadas à pressa aquando do nosso primeiro trabalho sobre o woyzeck de Büchner: em que é que o romantismo alemão, e particularmente Büchner, é irredutível ao trajecto de Brecht? Em que medida o onirismo e o sonho (no sentido do romantismo alemão) podem ser considerados como uma resposta, evidentemente prémarxista e préfreudiana, a uma exigência de compreensão da realidade social e da natureza humana? Em que modalidades o romantismo alemão (o passado) é susceptível de servir um trabalho artístico e político contemporâneo (o presente)? Estas perguntas baseiam-se num pressentimento: pressentimos com efeito que o romantismo alemão, desleixado quer por Brecht quer por Luckács na controvérsia dos anos 1936-1938 sobre o realismo, pode construir um elemento vivaz de tradição produtiva para os artistas contemporâneos. Assim, com Büchner, fomos levados a interrogar-nos sobre a natureza da opressão interiorizada (em que consiste? será apenas a interiorização de uma opressão exterior?), sobre as modalidades daquilo a que se poderia chamar “libertação pelo imaginário”, sobre a distância que separa a libertação no imaginário da libertação real ... Todas estas questões, sentimos a necessidade de as ruminar de novo.”"
Da cronologia que Ludwig Scheidl apresenta:
"1836 (Outono/Inverno): Büchner trabalha no Woyzeck (começa em Setembro; por altura da morte falta-lhe manisfestamente pouco para concluir o drama)
1835 (Outubro): Ocupa-se com a figura histórica de Lenz e os apontamentos de Oberlin. Escreve a novela."
Bruno Duarte: "Büchner redigiu «Lenz» provavelmente entre a Primavera e o Inverno de 1835 (...) O texto refere-se à passagem de Lenz pelos Vosges, e à sua estadia com o pastor Johann Friedrich Oberlin, de 20 de Janeiro até 8 de Fevereiro de 1778, em Waldbach (Waldersbach), uma pequena aldeia perto de Estrasburgo (...)Büchner conhecia certamente de Lenz a edição das suas obras organizadas por Tieck em 1828, mas a fonte primária para o seu texto foi o relato sobre a estadia de Lenz redigido pelo próprio Oberlin (1778)" E mais à frente "quando se afirma do texto de Büchner que se trata de uma descrição da pura interioridade, um caso isolado na sua obra eminentemente política, é preciso reflectir de novo sobre os termos deste juízo. Lenz era talvez estranho ao pensamento da revolução, mas não a tudo o
e continua Bruno Duarte "a tudo isto Büchner não podia ser de modo nenhum estranho: os seus dramas respiram o mesmo ar, estão repletos de traços fundamentais da linguagem dramática de Lenz, de O Preceptor e O Novo Menoza até à Morte de Danton, ou de Os Soldados até Woyzeck. Mas também no «Lenz» se faz sentir esta estrutura recorrente do antagonismo."
Voltando a Celan "no seu discurso O Meridiano, Celan refer-se ao «Lenz» começando pela passagem amis enigmática, e também mais comentada, do texto de Büchner: «era-lhe apenas por vezes desagradável não poder andar de cabeça para baixo» (...)
Quem anda de cabeça para baixo, minhas Senhoras e meus Senhores,
-quem anda de cabeça para baixo tem o céu como abismo por baixo de si.
"São ambos desapossados", continua Bruno Duarte, "mas é no modo de os erem que divergem: em Lenz a rendição não sacrificial, o seu movimento mais próprio não é o da reacção nem o da vingança sanguinária, e com ele não entra em cena nenhuma forma do anti-herói trágico.
Mesmo se a cientificidade latente da psicografia está ausente dos eu texto, todo ele absolutamente distinto de um relato como o de Waiblinger sobre Hölderlin, por exemplo, Büchner não pôde evitar todas as suas apropriações e reduções possíveis da psiquiatria positivista e da doutrina dos instintos do século XIX á anti-psiquiatria, passando pela teoria da dedução da loucura individual do mal social, que consiste no essencial em traçar a génese histórica da esquizofrenia para explicar a partir daí o colapso do modelo teológico-político como condição do Cristianismo no limiar ou na antecipação da Revolução Francesa (...) O lenz de Büchner parece caminhar na penumbra do espírito, mas o seu elemento não é nunca o da inocência arrastada até ao limiar da catástofre. Na verdade, ele não é nem culpado nem inocente do seu infortúnio, mas cumpre antes incessantemente a sua própria maldição, e permanece encerrado na experiência do esvaziamento puro (...) De tudo aquilo que aparentemente separa Lenz de Büchner (o fatalismo, as paixões imaginárias, o aparente servilismo diante da monarquia), é a fixação da imagem do perseguido que mais se evidencia: em Lenz, a fuga é mais complexa, mais enredada em si própria --mas Büchner foi o primeiro a notá-lo.
Büchner morreu a 19 de Fevereiro de 1837, com 23 anos, após um ataque súbito de tifo."
Lenz: Lenz Buchmman, de Gonçalo Tavares
Da entrevista [16/5/2011] a Gonçalo M. Tavares:
"Achas que a loucura pertence a esse lado mais negro do ser humano?
É fundamental não romantizar a loucura. A loucura concreta é uma coisa muito dura, muito violenta.
Sim. Por exemplo Lenz, no último romance, tem uma ideia um pouco romântica, tem uma grande atracção pela loucura e pelos loucos.
Exacto. Mas se pensarmos no Jerusalém é evidente que os loucos são portadores de um sofrimento muito forte. Agora, por vezes, como no Jerusalém, a marca da maior violência vem das pessoas mais racionais, como o director do hospício. Provavelmente as coisas mais violentas, ou muitas das coisas violentas, vêm daí e não propriamente dos loucos. Ou seja, respondendo um pouco à pergunta, muitas vezes a violência não vem das pessoas que perderam a razão mas, às vezes, até estranhamente das pessoas que têm o total controlo da razão.
E será que podemos dizer que todos, ou quase todos, os protagonistas desta tetralogia são loucos? Isto é, há os que são vistos como loucos – como Mylia e Ernst – mas todos os outros, os mais racionais, têm uma racionalidade que está na fronteira entre a racionalidade e a loucura.
Não sei, tenho algumas dúvidas. Eu acho que é perigoso associarmos o mal, ou a possibilidade de fazer o mal, com a perda da razão. Quer seja, é evidente, nos loucos quer seja noutras pessoas, a razão levada ao extremo. Porque, precisamente, o que me parece importante é também estarmos um bocado atentos à racionalidade, porque a racionalidade é ela própria portadora de violência. Ou seja, acho que não se deve associar uma pessoa racional a uma pessoa bondosa. A razão e o bem não estão associados. Aliás, claramente o grande drama do século XX, se pensarmos na 2ª Guerra, no Holocausto, é que não há uma dissociação, bem pelo contrário, entre razão e violência extrema. Pelo contrário, razão e violência extrema estão muito ligadas. Portanto, eu diria que esses protagonistas são protagonistas muito humanos, no sentido em que não são, espero eu, ingenuamente pintados como seres magníficos e como seres humanos bondosos em qualquer situação. Até porque eu acho que todos nós somos muito condicionados pelo que nos vai acontecendo. E, portanto, a proclamação de que eu sou um homem bom, independentemente do que aconteça, é uma proclamação perigosa. Quando as circunstâncias mudam nós podemos fazer actos de que nos envergonharemos mais tarde.
O protagonista de Aprender a rezar na Era da Técnica faz uma distinção interessante entre a bondade e a competência técnica. Ele diz que por ser um bom médico e salvar vidas não significa que seja boa pessoa. O que é que é mais importante: ser bom ou ser competente?
Eu penso que isso é realmente um dos temas principais do romance. O que me parece é que há uma transferência, que não é dos últimos anos, é das últimas décadas ou eventualmente do último século e meio. É difícil precisar quando é que essas coisas começam. Mas é uma transferência da questão da bondade para a questão da competência. É evidente que para mim, neste momento, talvez seja claro e não seja muito injusto se eu disser que a maior parte das pessoas tem mais vergonha de, por exemplo, não dominar o último programa do Windows do que de mentirem. Ou seja, as questões morais começaram a diluir-se um pouco nas questões técnicas e, portanto, há claramente uma transformação de valores, onde a técnica começa a dominar. E a técnica a todos os níveis, não apenas técnica de maquinarias, realmente a técnica de competências. E nesse aspecto, para mim é claro que a moral do século XXI é uma moral completamente diferente do que era a moral, por exemplo, clássica. É evidente que há uma alteração.
É necessário aprender a rezar na era da técnica?
Isso é uma pergunta interessante. O título do livro já suscitou várias interpretações e isso agrada-me imenso. E por isso é que eu tento nunca dar uma interpretação definitiva de uma passagem do livro ou de um título, porque, para já, não há interpretações definitivas. Cada leitor tem a sua interpretação. Mas uma leitura pode ser essa, de que é necessário um contraponto para a evolução da técnica e que esse contraponto possa ser o carácter religioso. Se calhar também se pode pensar o que é isto de rezar. Será que no século XXI, no ano de 2008, fará sentido rezarmos da mesma maneira do que rezávamos há cem anos, ou há duzentos, ou há dois mil anos? É uma coisa que para mim é muito clara. Neste momento, a nossa paisagem é completamente diferente, se pensarmos em há dois mil anos então… Temos uma paisagem em que a técnica e as máquinas estão por todo o lado. Portanto, nesta nova paisagem da técnica, em primeiro lugar, será que faz sentido rezar? E depois, se faz sentido, que tipo de oração ou que tipo de reza faz sentido? Será que faz sentido rezarmos exactamente da mesma maneira? Isso é uma questão que se calhar este romance coloca. E provavelmente a forma de rezar do protagonista, do Lenz Buchmann, pode dar a ideia de que ele não reza, mas também podemos interpretar como uma outra forma de oração. Eventualmente a cena final pode ser interpretada dessa forma. Portanto, não sei se é preciso rezar ou não, o que é preciso é pensarmos se faz sentido rezar e se faz sentido continuarmos a rezar da mesma maneira. Talvez este livro ponha algumas questões sobre isso.
[...]
A paixão ou amor entre duas pessoas, na ideia convencional que dele se tem, não aparece muito na tua obra. Será que é o estado limite, sobre o qual é mais difícil escrever?
Eu acho que aparece em alguns momentos. Por exemplo, eu diria que a paixão ou o amor aparece, se calhar de uma forma não muito evidente, mas aparece e tem muita importância no Jerusalém. Há ali uma relação amorosa da Mylia e uma relação de sacrifício. No final ela, de certa maneira, sacrifica-se. Portanto, é uma personagem ligada à paixão. Aparece também no Aprender a rezar na Era da Técnica, sendo, é evidente, misturada com vários tipos de perversidade. A personagem Julia, por exemplo, hostiliza um avanço do Lenz Buchmann no momento em que este está forte, não correspondendo à paixão ou aos avanços de Lenz, e depois mais tarde, quando ele está doente, ela aproxima-se sexualmente, digamos, do homem fraco, que naquele caso está em decadência. Isso é um pormenor, mas julgo que tem muita força e muita importância no romance. Ou seja, é alguém que se aproxima do outro, quando o outro está fraco. Isto é uma forma de amor, de certa maneira. Claro que não é aquele amor padronizado em que um casal é feliz para sempre. Não é isso, mas há nos romances momentos de amor e de dedicação. Há vários tipos de amor entre casais, mas há também amor entre pais e filhos, etc. Por exemplo, podemos condenar o tom deste amor, mas há claramente uma relação amorosa entre o Lenz Buchmann e o pai. É uma relação de amor e dedicação que marca quase todo o livro. Desde o início, naquela primeira cena, até ao final, há uma quase reverência absoluta ao pai. E podemos utilizar a palavra amor para essa paixão de Lenz pelo pai. Claro que não é um amor com consequências muito agradáveis, mas nem sempre as relações amorosas têm consequências agradáveis para as outras pessoas. Portanto, eu acho que há situações de paixão e amor nos romances. Talvez não seja uma coisa sempre clara, sempre pacífica, porque eu acho que essas situações podem ser um bocado artificiais. Eu acredito que nestes livros o amor aparece em pequenos passos e vem do escuro, da perversidade. Portanto, esses pequenos actos e gestos de amor, paixão e dedicação ganham uma maior força, mas são sempre coisas de pormenor."
Luís Mourão, Colóquio Letras: "Em Aprender a rezar na era da técnica dir-se-ia que estas características se radicalizam: uma escrita despojada, o pensamento predominando ainda mais sobre a história e arrastando-a nos seus lances principais, e uma personagem, Lenz Buchmann, que é o não-herói mais conseguido da galeria de personagens do autor.
Lenz Buchmann é o homo faber da era da técnica, quer dizer, daquela época em que o fazer não é já a história de como um corpo humano se vai separando da natureza, fazendo-a em parte para si, mas a plena história de um cérebro que se auto-reconhece como tendo a «forma e a função de uma arma» (p. 22), com a qual aquele «ponto de ruptura» (p. 42) que acontecera entre homem e natureza se torna irreversível. Buchmann está tão consciente desta ruptura e das suas consequências relativamente ao que é a força e o suposto destino de domínio reservado a alguns humanos, que só pode ter um profundo desprezo pelo humanismo. De facto, a ideia de harmonia entre natureza e humano, mesmo segundo a primazia deste, e de reconhecimento mútuo entre humanos, escamoteia, para Buchmann, a luta entre humanos e natureza, entendida enquanto doença e morte, e entre humanos fortes e humanos fracos. É por isso que Buchmann é, primeiro, médico, e depois político. Mas é ambas as coisas de um modo rigorosamente não-humanista. Como médico, e cirurgião, apenas a competência o motiva. Que alguns doentes agradecidos possam pensar que é a bondade que guia os seus gestos só o pode irritar (p. 32), porque isso é precisamente não perceber quanto o seu corpo e as suas mãos são uma performance que nada deve à moral mas apenas a um domínio técnico que triunfa da natureza. Triunfa não em direcção a nada de superior, mas apenas à continuação da sobrevivência e da afirmação desses mesmos que triunfam. É por isso que Buchmann passa do exercício da medicina para a política: para que a sua afirmação não se faça sobre um de cada vez, mas sobre inúmeros simultaneamente. Que esse inúmero ele o pense enquanto corpo esperando o seu bisturi re-ordenador, como antes pensava o corpo doente como Cidade minada na sua racionalidade material, é não apenas um conseguimento ficcional de cruzamento de metáforas e sua literalização paródico-grotesca, mas também o colocar do político numa espécie de patamar de totalitarismo sem causa totalitária. Buchmann quer o poder, sabe como manobrar junto dos poderosos para o conseguir, sabe como convencer os fracos a dar-lho, mas a auto-afirmação que aí procura não visa qualquer compensação psicológica, é uma auto-afirmação humanamente imotivada, ou seja, segue apenas o preceito de sobreviver no mais alto patamar do domínio: questão de técnica com a qual o humano adquiriria uma natureza de outra ordem, agora absolutamente racional, a seu modo maquínica (e daí que a única coisa que repugne a Buchmann seja a perda de controlo, a começar pelo auto-controlo que lhe falha na excitação e no sexo, em que é ele o agido e não o faber, p. 194).
Como não-herói por excelência, Buchmann é aquela personagem capaz de extrair as mais extremas e impessoais consequências lógicas de um momento civilizacional, sendo ao mesmo tempo a sua encarnação e o seu fantoche. Todo o processo da doença, decadência e morte de Buchmann dá-o precisamente como fantoche da era da técnica. Uma simples frase assinala-o: «o cancro tinha-o a ele — o poderoso Lenz estava transformado num objecto» (p. 273). É a era da técnica, com a sua possibilidade de diagnóstico pormenorizado e de combate em múltiplas frentes, que impõe ao humano a possibilidade de um longo e exaustivo tempo de perda de controle. É também a era da técnica — como qualquer outra, aliás — que cria os avatares com os quais substitui as formas de evasão no imponderável das eras anteriores. No momento da morte, e numa cena que mereceria um longo comentário, a televisão está no lugar de deus:
«Estava, pois, só: Lenz Buchmann, deixado para trás, sozinho, com os seus olhos.
A luz, essa, não parava de o chamar. Queria sentir ódio, mas não conseguia. Ela tranquilizava e chamava-o.
Depois talvez tenha existido uma pausa e de novo da televisão veio uma luz forte que o chamou pelo nome. E agora ele foi; deixou-se ir.» (p. 375.)"
Alex Ross em O Resto é Ruído escreve «Há um pouco de mim na personagem Wozzeck», escreveu ele [Büchner] a sua mulher quatro anos depois «visto que tenho passado estes quatro anos de guerra, igualmente dependente de pessoas que detesto, tenho estado acorrentado, doente, cativo, resignado e, na verdade, humilhado. Ele conhecia muito bem as versões da vida real do Doutor e do Capitão (como Büchner os designava); o bloco de notas com o esboço da peça sugere que um certo Dr. Wernisch o inspirou."
Voltemos ao texto do Teatro da Cornucópia: " Assim, como Büchner, fomos levados a interrogar-nos sobre a natureza da opressão interiorizada (em que consiste? Será apenas a interiorização de uma opressão exterior?), sobre as modalidades daquilo a que se poderia chamar “libertação pelo imaginário”, sobre a distância que separa a libertação no imaginário da libertação real… Todas estas questões sentimos a necessidade de as ruminar de novo”.
E a Bruno Duarte: "No momento em que se abandona inteiramente a si mesmo, à ânsia da cessação completa de tudo e do sono da morte, Lenz experimenta ideias inteiramente animais, é o animal selvagem dominado pela imaginação até ao limite do esquecimento de si, ao mesmo tempo que aspira a sensação de não poder escapar a si próprio, e vê-se subjugado pela lei da necessidade."
Georg Büchner, Lenz: "Na manhã seguinte, com um tempo enevoado e chuvoso, chegou a Estrasburgo. Parecia estar no uso da sua razão, falou com toda a gente; agiu tal como os outros, mas havia nele um vazio aterrador, já não sentia medo, nenhum desejo; a sua existência era para ele um fardo inelutável. - Assim continuou a viver."
Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica: "O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empegada, a mais nova e a mais bonita da casa.
- Agora vais fazê-la, aqui à minha frente.
A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de sair. O pai queria ver.
- Vais fazê-la à minha frente - repetia.
Estas palavras do pai marcaram Lenz durante anos. Vais fazê-la."
Vou ter de voltar, um destes dias, a As Afinidades Electivas, Goethe, porque agora me fazia falta; mas diz João Barrento no prefácio citando Goethe numa carta a um compositor sobre As Afinidade Electivas "«Pus nele muito de mim, e nele escondi muita coisa»" e, mais à frente, numa carta a um diplomata "«Em As Afinidades Electivas não há uma única linha que eu próprio não tenha vivido, e o livro contém mais do que qualquer pessoa estará em condições de apreender com uma única leitura» (9 de Fevereiro de 1829)".
Para terminar, Bolaño:
E...
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 24, 2011