A montanha mágica

domingo, maio 01, 2011

Alterando o ângulo de visão (5)


V – com tão pouco, a amizade reinventa o mundo e a sua alegria!


Começo por uma nota de rodapé de O Passo do Adeus, de Cristina Campo: escreve Tolentino Mendonça, tradutor do livro: “identificava-se ela tanto com este amor a Hofmannsthal, que era a oferta de Livro dos Amigos uma espécie de «senha» a assinalar o princípio e a orientação das suas amizades.”

Neste caso esta senha era oferecida a Simone Weil, e no prefácio a Os imperdoáveis, de Cristina, Tolentino Mendonça escreve: “quando a Assírio publicou o volume de poesia de Cristina Campo, O Passo do Adeus, fez também sair O Livro dos Amigos, de Hugo Hofmannsthal. Era o presente que a escritora oferecia para selar os pactos de amizade. Mas mais do que isso: o modelo antológico que estrutura essa obra, era o único de que ela se sentia verdadeiramente próxima e capaz. Em vez de uma construção unitária um fio de gemas, anotações colhidas aqui e ali ao sabor não do gosto, mas da intransigência, um rigor de miniatura. Cristina considerava Hofmannsthal um dos poucos que soube buscar a verdade essencial e última entre as dobras delicadas que há nas coisas. […] Acontece agora que a edição de Os Imperdoáveis coincide com a de Espera de Deus, de Simone Weil. Se há um sentido mesmo que impreciso em toda a ordem de vizinhança, o que quer que isso seja, é aqui reforçado por uma espécie temerária de parentesco que vincula estes dois livros, estes dois destinos: aquele inequívoco, que não cabe à carne, nem ao sangue revelar.

Foi o poeta Mario Luzi quem ofereceu a Cristina Campo o primeiro texto de Simone Weil. A entrega aconteceu num jardim de Florença. […] Em Florença, na década de 50, ela há-de aproximar-se de todos os que lhe possam falar de Simone […] Como ocorre em certos desenhos subtis, mil centelhas lentíssimas pareciam preparar a instantânea e irremediável precipitação. Cristina Campo depressa se tornou uma referência para a tradução, a edição e o estudo da obra de Simone Weil em Itália. […] E há, claro, o poema Elegia de Portland Road, que alude à última residência de Weil em Londres, publicado em O Passo do Adeus: […] Havia nesta aliança Campo-Weil qualquer coisa fulgurante, instintiva, inflexível. Uma devastadora afinidade descia das câmaras abscônditas e trespassava os detalhes mais quotidianos.”

Em O Hipopótamo de Deus e outros textos há um deles que se intitula É possível descrever a amizade?

Na segunda parte desse texto o testemunho de “uma inesquecível história de amizade é a de Maria Helena Vieira da Silva e Mário Cesariny, cuja trajectória aparece agora registada no imperdível volume de correspondência Gatos Comunicantes […] As primeiras cartas do poeta começavam por um «Maria Helena » ou «Minha querida Maria Helena». E da parte da pintora o mesmo: «Mário», «Querido Mário», «Querido anjo-daemon». Mais para a frente Cesariny despedia-se repetindo «Miau, Miau, Miau» ou «Seu, seu Cesariny». Maria Helena escrevia: «Um grande abraço», «Muitos abraços e beijos». Com tão pouco, a amizade reinventa o mundo e a sua alegria.”

E na primeira metade do texto diz-se que “a amizade é singularíssima e mune-se de uma desconcertante simplicidade de meios. O traço mais universal da sua gramática é, talvez o da presença: mas esta tanto se faz de muitos encontros, como de poucos; de muitas palavras ou de um silêncio espaçado e confidente; de um telefonema por dia ou por ano; de uma ou de incontáveis atenções… O importante é que tudo isso se torne, a dada altura, uma história que nos acompanha e por onde o essencial da vida passa.”

Lembro-me muitas vezes de uma história simples, de David Lynch, também de um texto de Clarice Lispector, também de uma história de calmaria de Tonino Guerra, de Jules and Jim, também de Band à part, de mãos dadas e de sorriso no rosto numa correria cúmplice ao Louvre todo em dez minutos, ou em Fellini, dos amigos adolescentes no cinema, ou em Visconti, nos irmãos Rocco, ou em Mann, a montanha mágica e… não terá fim, cada um de nós um mundo.

Mas demoremo-nos primeiro em Clarice depois em Tonino:

Em Contos de Clarice Lispector Uma amizade sincera “a amizade é matéria de salvação […] Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar […] Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.”

E uma das partes de uma das histórias para uma noite de calmaria, Uma história de amor entre dois eunucos chineses, de Tonino Guerra:

Segunda-feira

Desde que comecei a escrita do diário vejo que te interessas ainda muito por mim.

Terça-feira

Sinto que desejas ler o que escrevo.

Quarta-feira

Hoje removi as pedras no horto para que pensasses que escondia aí estas páginas. E, de facto, tu repetiste os meus gestos e ficaste desiludido.

Quinta-feira

Leio nos teus olhos que estás a sofrer. Então é verdade que ainda me queres bem.

Sexta-feira

Hoje quero que encontres estas pequenas linhas e percebas que és a minha vida.

Depois de ler chorou. E viu que, junto do canavial, também o outro chorava.”


De A noite abre meus olhos:

Entre amigo e amigo
jamais se afastam
coisas tão felizes:

*

Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

*

Tenho amigos que rezam a Simone Weil
Há muitos anos reparo em Flannery O`Connor

*

Recebi hoje uma carta do José Bento
que dizia sentir-se um rato diante de Santa Teresa
eu gosto tanto dele, posso dizer o mesmo

*

A beleza nunca é clara
no modo em que se aproxima

*



pormenor de, Rui Chafes, Sou como tu, 2008



Para terminar o ponto cinco, Tiago Cavaco (http://vozdodeserto.blogspot.com) na apresentação de O Hipopótamo de Deus e outros textos (http://www.youtube.com/amontanhamagica1#p/u/49/3vXEZ0R2xLg), “Uma coisa que eu até gostaria de dizer, conheço o Tolentino mas não nos damos muito bem, mas não consigo. Há um magistério no Tolentino Mendonça, que é de facto o magistério da amizade, e como já disse eu gostaria de ser o primeiro a desmentir isso, mas de facto não posso."

posted by Luís Miguel Dias domingo, maio 01, 2011

Powered by Blogger Site Meter

Blogue de Luís Dias
amontanhamagica@hotmail.com
A montanha mágica YouTube




vídeos cá do sítio publicados no site do NME

Ilusões Perdidas//A Divina Comédia

Btn_brn_30x30

Google Art Project

Assírio & Alvim
Livrarias Assírio & Alvim - NOVO
Pedra Angular Facebook
blog da Cotovia
Averno
Livros &etc
Relógio D`Água Editores
porta 33
A Phala
Papeles Perdidos
O Café dos Loucos
The Ressabiator

António Reis
Ainda não começámos a pensar
As Aranhas
Foco
Lumière
dias felizes
umblogsobrekleist
there`s only 1 alice
menina limão
O Melhor Amigo
Hospedaria Camões
Bartleby Bar
Rua das Pretas
The Heart is a Lonely Hunter
primeira hora da manhã
Ouriquense
contra mundum
Os Filmes da Minha Vida
Poesia Incompleta
Livraria Letra Livre
Kino Slang
sempre em marcha
Pedro Costa
Artistas Unidos
Teatro da Cornucópia


Abrupto
Manuel António Pina
portadaloja
Dragoscópio
Rui Tavares
31 da Armada

Discos com Sono
Voz do Deserto
Ainda não está escuro
Provas de Contacto
O Inventor
Ribeira das Naus
Vidro Azul
Sound + Vision
The Rest Is Noise
Unquiet Thoughts


Espaço Llansol
Bragança de Miranda
Blogue do Centro Nacional de Cultura
Blogue Jornal de Letras
Atlântico-Sul
letra corrida
Letra de Forma
Revista Coelacanto


A Causa Foi Modificada
Almocreve das Petas
A natureza do mal
Arrastão
A Terceira Noite
Bomba Inteligente
O Senhor Comentador
Blogue dos Cafés
cinco dias
João Pereira Coutinho
jugular
Linha dos Nodos
Manchas
Life is Life
Mood Swing
Os homens da minha vida
O signo do dragão
O Vermelho e o Negro
Pastoral Portuguesa
Poesia & Lda.
Vidro Duplo
Quatro Caminhos
vontade indómita
.....
Arts & Letters Daily
Classica Digitalia
biblioteca nacional digital
Project Gutenberg
Believer
Colóquio/Letras
Cabinet
First Things
The Atlantic
El Paso Times
La Repubblica
BBC News
Telegraph.co.uk
Estadão
Folha de S. Paulo
Harper`s Magazine
The Independent
The Nation
The New Republic
The New York Review of Books
London Review of Books
Prospect
The Spectator
Transfuge
Salon
The Times Literary...
The New Criterion
The Paris Review
Vanity Fair
Cahiers du cinéma
UBUWEB::Sound
all music guide
Pitchfork
Wire
Flannery O'Connor
Bill Viola
Ficções

Destaques: Tomas Tranströmer e de Kooning
e Brancusi-Serra e Tom Waits e Ruy Belo e
Andrei Tarkovski e What Heaven Looks Like: Part 1
e What Heaven Looks Like: Part 2
e Enda Walsh e Jean Genet e Frank Gehry's first skyscraper e Radiohead and Massive Attack play at Occupy London Christmas party - video e What Heaven Looks Like: Part 3 e
And I love Life and fear not Death—Because I’ve lived—But never as now—these days! Good Night—I’m with you. e
What Heaven Looks Like: Part 4 e Krapp's Last Tape (2006) A rare chance to see the sell out performance of Samuel Beckett's critically acclaimed play, starring Nobel Laureate Harold Pinter via entrada como last tapes outrora dias felizes e agora MALONE meurt________

São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


Old Ideas

Past