quarta-feira, abril 06, 2011
Alterando o ângulo de visão (1)e ainda, depois de tudo o que se ouvia,
uma canção
no despertador de plástico
vermelho
José Tolentino Mendonça
I - figuras da ardente incerteza
Como quase nunca sei por onde começar, ainda que precioso seja __________ A noite abre meus olhos é, também, um cortejo de histórias, autores, personagens, orações, livros, e, lá dentro e por dentro, encontramos, para começarmos, figuras da ardente incerteza.
Em Proibida a entrada a mendigos e vendedores ambulantes! só este título!, Walter Benjamin escreve: “Todas as religiões tiveram grande respeito pelos mendigos, porque estes são a prova de que o espírito e a regra, as consequências e o princípio falham vergonhosamente numa coisa tão singela e banal quanto sagrada e vivificante como era a esmola.
Queixamo-nos dos mendigos nos países do sul e esquecemo-nos de que a insistência com que se nos colam é tão legítima como a obstinação do estudioso perante um texto difícil. Não há sombra de hesitação, não há indício, ainda que imperceptível, de vontade ou reflexão que eles não leiam na nossa fisionomia. A telepatia do cocheiro que, com o seu chamamento, nos vem realmente mostrar que não diríamos não a uma voltinha, do vendedor que, do meio da sua quinquilharia, mostra o único colar ou camafeu que nos poderia atrair, têm a mesma natureza.”
E pergunta em Experiência e Indigência “onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar uma história como deve ser? Haverá ainda moribundos que digam palavras tão perduráveis, que passam como um anel de geração em geração? Um provérbio serve hoje para alguma coisa?”
A última vez que pudemos ouvir Tolentino Mendonça foi assim: “este texto foi-me trazido por uma analfabeta, uma mulher que lavava o chão da igreja da terra onde eu vivia, eu teria 14 anos, e… e ouvia-a dizer um trecho do Cântico dos Cânticos, eu acho que foi assim dos momentos mais extraordinários da minha vida que não sabia o que era aquilo, acho que foi a primeira vez que ouvi poesia, que ouvi muitas coisas e só anos mais tarde é que percebi que ela tinha decorado uma parte do Cântico dos Cânticos que nem ela própria sabia.”
Canto. Escuta. Segredo.
Silvina Rodrigues, no posfácio, escreve
Canto. Escuta. Segredo. Escrita. Inscrição.
Alterando, então, o ângulo de visão entremos por um atalho, mais de terra e de pó, que ainda não vi ou li noutros lugares e sítios.
Foi como um flash, de repente parado em torno de figuras da ardente incerteza, que, como em Homero, em Sófocles, em Eurípedes, na Bíblia, em Dante, em Tolstói, em Dostoiévski… trazem, em maior ou menor escala, e para além da narrativa essencial (?), uma riqueza maravilhosa/terrível de pormenores.
Em A Leitura Infinita, Tolentino Mendonça, partindo de Auerbach, diz que “na economia das narrações bíblicas, há uma profunda (e, diga-se, conseguida) intencionalidade artística e uma concepção muito elaborada do real” enquanto que “nos poemas homéricos o destino dos personagens está claramente fixado. Ocorrem as peripécias mais díspares, irrompem paixões violentas, enunciam-se perturbações e desfechos –mas tudo dentro daquela linearidade simples dos enredos predeterminados (…) o texto helénico é restrito e estático, e coloca a existência heróica a desenvolver-se nos limitados confins de um mundo senhoril. Na Bíblia o enquadramento social é mais extenso e diversificado. São heróis o rei e o servo; o sacerdote, o profeta, a mulher, o guerreiro e o pastor. Todos os componentes da sociedade aparecem representados. E o sublime tem por expressão um realismo quotidiano, inserido no plano da vida comum.”
O que dizem? Como dizem? Quando dizem? O que revelam? O que calam? O que desencadeiam? Incendeiam-se? Incendeiam?
Antes, ainda, um meio compasso de espera.
Em Perdoar Helena: “Em Electra, por exemplo… Estava com Electra nas mãos… e, imprevistamente, a minha atenção fixou-se no desenho das duas figuras anónimas. Já as devia ter lido e relido. Mas agora, pela primeira vez, atordoava-me a sua presença… São, podes argumentar, meros suportes de contraste no relato, elementos secundários… mas, garanto-te, nada acessórios, nada…”
E:
“A quantidade de anónimos, de personagens clandestinos. Parece uma infiltração. Chegam de todas as partes. São mensageiros, amas, serviçais, transeuntes. São jovens guerreiros, gregos, frígios, velhos, campesinos, estrangeiros forçados a uma actividade servil, arautos desconhecidos que chegam num estado de miséria implacável.”
E:
“Lembro-me que num verão ouvi alguém gritar desde a costa, da velha varanda de um farol e parecia comunicar com uma inteira frota de navios naufragados.”
Que cortejo magnífico… uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove… mas não te esqueças do aviso inicial: não modifiques/as percepções antigas/sejam os enigmas quem adestra/as suas próprias sequências
pois no fim tens encontro marcado com o taxidermista. Becareful.
Assim, de entre meia centena, talvez mais talvez menos, alguns fragmentos:
podia se deixasses
escrever aquela história
da filha louca dos Matildes
a falar horas seguidas
*
Uma coisa tão pesada é a Lua/ouvi hoje a estranhos no Bazar de Istambul/a medida do que perdemos é a medida do brilho
*
Talvez fosse uma mulher de Esmirna
a quem a devastação nos estranhos
nada dizia
*
Um canto deve antecipar o mudo caminho/da mão/e a conduzir como a certo louco/que tornando-se inofensivo ao adormecer/da minha aldeia eu levava de regresso/a casa
*
só pelo peso dos hábitos se tomava
aquele homem por mendigo
*
por degraus desiguais os mineiros,/os artesãos, as lavadeiras/lutam pela perfeição, lutam por Deus
*
Que dizem os exploradores
os viajantes, os peregrinos que há muito julgávamos perdidos,
os berberes, os transumantes,
os foragidos
*
Encontramos, por vezes, em desconhecidos/vindos da barreira de névoa/a espiral mais visível
*
por isso gritava
como náufrago
*
em post-sriptum envia/notícias/do homem que vende jornais/aí/em Via Rizzera
Devo guardar atenção, claro, ao teor do aviso e ao encontro; por isso, as perguntas enumeradas lá em cima, retóricas ou não, terão a resposta que quiserem/quisermos/conseguirmos chegar, segundo Paul Ricoeur, citado em A Leitura Infinita por Tolentino Mendonça, “não se trata de impor ao texto a nossa capacidade finita de compreensão, mas de se expor ao texto e de receber dele um eu mais vasto”; a escolha dos fragmentos para aqui transcritos nada mais é do que apenas uma vereda ou uma escarpa.
Parece-me, é, que esta parte do todo vai iluminando e desvendando a maior parte de uma forma inteira, “precisamente, a arte da procura e da inteireza”, de O Tesouro escondido. Essa inteireza que o poeta, um destes dias, disse, no Diário de Notícias (Madeira), da obra de Lourdes de Castro, inteireza, inteireza, inteireza.
No poema Lourdes Castro, Rua da Olaria, de O viajante sem sono: A minha arte é uma espécie de pacto:/não distingo as áreas selvagens das cultivadas/e elas não distinguem a minha sombra/da minha luz
Enquanto espero na fila para comprar peixe, do saco plástico tiro um jornal
i, 26/3/2011
Jornalista: Se eu preferir ficar aqui no jardim a ler um livro, em vez de ir à igreja, conseguirei esse mesmo levantamento? [pequenos sobressaltos em ressurreição, transfiguração]
José Tolentino Mendonça: Não tenho dúvidas disso. Uma das grandes questões que se põem às comunidades cristãs é justamente viverem com fé. Estes dias, dei comigo a pensar nisso, o que é ter fé? É ter fé em Deus, mas é também ter fé na palavra. É acreditar que uma palavra nova, uma palavra comum, pode estar inesperadamente investida de uma força maior. Quem diz uma palavra, diz um gesto. Um cumprimento entre duas pessoas...
[Suprema ironia. Somos abordados por um pedinte. "Viemos sem carteira hoje", responde
Tolentino. Quem diz a verdade não merece castigo. Continuemos.]
... pode ser muito mais do que uma rotina. Pode ser um encontro flagrante, fulgurante.
http://www.ionline.pt/conteudo/113212-tolentino-mendonca-um-poema-ruy-belo-e-um-texto-sagrado [26/3/2011]
Termino, este primeiro ponto, com palavras de Paul Ricoeur retiradas de A Leitura Infinita: «A primeira coisa que pode interpelar-nos é que as parábolas são relatos radicalmente profanos. Não há nem deuses, nem demónios, nem anjos, nem milagres, nem tempo anterior ao tempo, como nos relatos fundadores como o relato do Êxodo. Nada disto, mas precisamente gente como nós: proprietários palestinenses partindo em viagem e alugando os seus campos, gerentes e trabalhadores, semeadores e pescadores, pais e filhos; gente comum fazendo coisas comuns. Vendendo e comprando, lançando uma rede ao mar e por aí fora.”
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 06, 2011