sábado, abril 23, 2011
Alterando o ângulo de visão (4)
IV – Os naufrágios são belos
Não me lembro agora do número da página mas em o Tesouro escondido a dado passo a pergunta: É possível começar uma viagem caído por terra?
Luz. Voz. Ver.
De A noite abre meus olhos
“não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor”
Quanto tempo será preciso? Como sabemos? Por dentro e lá dentro?
“a navegação dos oceanos gelados”
Quando vi pela primeira vez os primeiros minutos do filme No Quarto da Vanda, de Pedro Costa, fui naquela viagem, era de dia lá fora, o sol brilhava, queria tentar encontrar no meio daquele desmoronar constante o ponto de viragem, quanto tempo seria preciso estar lá dentro e por lá por dentro?
Louise Bourgeois:
I have been
to hell and
back.
And let me
tell you.
it was
wonderfull
"sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudades desse mar
que derruba primeiro o nosso corpo
tudo o que seremos depois"
Em o Tesouro escondido:
de Bruce Chatwin a pergunta: Por que é os homens se deslocam em vez de ficarem quietos?
De O hipopótamo de Deus e outros textos “estes peregrinos que tornam a encher as estradas de Fátima (mas também de Santiago, de Chartres, do Loreto…) assinalam-nos o dever de buscar a estrada luminosa da própria vida. (…) A parte mais importante dos quilómetros que percorrem não está em nenhum mapa: eles caminham para um centro invisível onde pode acontecer o encontro e o renascimento.”
Em A Leitura Infinita (bem como em o Tesouro escondido, página cento e sete e seguintes) Tolentino Mendonça cita «Un voyage mystérieux» de F.-B Huyge, sobre a ideia de peregrinação: “«Caminhada no espaço e no tempo, progressão no interior de si próprio, o itinerário peregrino é uma metáfora da vida profana, e é o que empresta sentido a esta vida” e “Quando o peregrino chega ao fim da viagem, ele sabe que entrevê a sua verdadeira morada.
«Partícula neste grande movimento que o ultrapassa, o peregrino sofre ao mesmo tempo uma transformação quando completa o seu itinerário pessoal. Ele pode esperar a cura de uma doença ou a remissão de uma falta, uma purificação, uma morte mística e um renascimento simbólico, mas, em todos estes casos, ele terminará a sua peregrinação diferentemente do que quando a começou. Regenerado por uma viagem que é necessariamente iniciática, despojado do homem velho, ele celebra esta regeneração na explosão de alegria das festas e celebrações que marcam o fim de um ciclo.
«Quando o peregrino chega ao fim da viagem, ele sabe que entrevê a sua verdadeira morada.»”
Como é este chegar ao fim? Alguém sabe? Ninguém sabe? Ninguém sabe?
“A Nellie, chalupa de recreio, rodou à volta da âncora sem panejar as velas, e ficou imóvel. A maré enchia quase sem vento, e como seguíamos rio abaixo só nos restava fundear à espera da viragem.”
Em Esculpir o Tempo Andrei Tarkovski
Voltando a o Tesouro escondido, “A viagem é uma espécie de propulsor deste olhar novo. Por isso é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus quadros, na sua organização, elementos inéditos que podem operar aquela recontextualização radical que em vocabulário cristão, chamamos «conversão».
A Fé é uma viagem e leva-nos a ela.”
A Tarkovski, Esculpir o Tempo:
“Acredito que uma melhora sempre se dá em decorrência de uma crise espiritual. Uma crise espiritual é uma tentativa de encontrar a si mesmo, de adquirir uma nova fé. É o quinhão partilhado por todos os que situam seus objectivos no plano espiritual. E como poderia ser de outro modo, quando a alma anseia por harmonia, e a vida é plena de discórdia? Esta dicotomia é o estímulo para a transformação, é simultaneamente a fonte da nossa dor e da nossa esperança: a confirmação da nossa profundidade e do nosso potencial espiritual.
Stalker também aborda essa questão: o herói atravessa momentos de desespero quando sua fé é abalada; mas, a cada vez, ele retorna com um renovado sentido da sua vocação de servir às pessoas que perderam suas esperanças e ilusões.”
A vida tem inimagináveis distâncias?
De A noite abre meus olhos
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono
*
ali muitas vezes se sentiu a tempo
de perder uma ilusão
*
percorriam grandes distâncias até um recanto
que outros achariam desigual
ou sentavam-se no fim da terra
*
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo
*
assim chegava cedo de mais à beira não do fim
mas do informulável
*
«só tenho medo se ficar por aqui
demasiado perto»
*
Era alguém pronto a começar qualquer destino
*
Passava aí as férias
debruçado sobre o mar
pensava se haveria no mundo
caminhos que nos conduzam
*
é assim que rodo
à volta de lugares desconhecidos
*
ninguém soube ao certo donde vinham
para encontrar uma vida
ou coisa mais pura ainda
*
Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa
*
a manhã parece-se estranhamente
com outro lugar
saberemos então que significam
os intervalos do silêncio
onde o silêncio é maior
*
Sem darmos conta já estávamos encalhados
numa qualquer estrada secundária
junto a um matagal circundado de rede
onde um letreiro quase ao acaso
diz ter morrido
Pier Paolo Pasolini
*
tomo o caminho por onde vieste
tropeçando como os que não têm olhos
*
De O viajante sem sono
Conserva um lugar junto aos castanheiros da
mata
recortado na luz esbatida, um lugar fora do trilho
Quando bruscamente nos separarmos na
encruzilhada de rápidos
*
Nesse verão nenhum de nós buscava terra firme
parecia-nos caminhar há séculos sobre as águas
Donde viemos nós? Como chegámos a esta luz
austríaca sobre as colinas
ao fumo lento no anfiteatro do golfo
à ordem aleatória do tempo?
*
Poeira levada pelo vento
espuma dispersa pela tempestade
lembrança do viajante
que se demora apenas um dia
*
e quando atravessamos o corredor na penumbra
os espelhos não nos reconhecem
*
Caminhas quase sem te moveres
os campos estendem um corpo
colado ao teu
em íntima escuridão
Quando avanças ponte fora
um dos teus ombros brilha como marfim
*
A vida tem inimagináveis distâncias?
*
tinhas de repente uma pressa desesperada
como quem do mundo inteiro
pretendesse apenas
um cigarro
Certo dia perguntaram a Tonino Guerra o que significava aquela cena de Nostalgia do homem com uma vela na mão a tentar atravessar um tanque antigo sem ela se apagar.
Voltemos a Perdoar Helena “nem te dás conta, não sabes explicar, mas há um dia em que começas. Vais caminhando dentro da tua casa, às voltas até te perderes. Há um dia, há uma hora exacta em que te deslocas dentro desse mundo que construíste e és um estranho. Por que está isto aqui? Donde terá chegado aquilo?; Quem são estes que se repetem nas fotografias?; Quem juntou tantos livros em meu redor?”
Não sei quantos dias passaram depois do desmoronamento do quarto da Vanda sei isso sim que Juventude em Marcha chegou, e chegou como não podia deixar de chegar, assim. Foram muitos dias. Foram muitas horas. Foram muitos minutos. Muitos momentos. Marcha. Carta. Vulcão. Silêncio. Corredor. Erupção? Revolução?
A vida tem inimagináveis distâncias?
Em Esculpir o Tempo Tarkovski “estou interessado no homem pronto a servir uma causa nobre, no homem relutante –ou até mesmo incapaz—de subscrever os dogmas geralmente aceitos de uma “moralidade” mundana; no homem que reconhece que o significado da existência está, acima de tudo, na luta contra o mal dentro de nós mesmos, para que no decorrer de uma vida possamos dar pelo menos um passo em direção à perfeição espiritual; pois a única alternativa a isso é, infelizmente, a que conduz à degeneração espiritual. Nossa existência cotidiana e a pressão geral para a acomodação facilitam bastante a escolha desta última alternativa.”
Era alguém pronto a começar qualquer destino
Cristina Campo em Os Imperdoáveis “Mas porque voa o tapete? […] Livros encantatórios sobre a arte do tapete respondem como oráculos a quase todas as perguntas possíveis em torno às genealogias e aos significados destes espaços de lã cerradamente apertada, depois cortada e aparada, que estendem à nossa frente os seus ardentes enredos narrativos, as suas puras geometrias mentais. Narram, estes livros, as histórias de tapetes que têm dezanove séculos, como aquele tapete persa encontrado em perfeito estado num túmulo real nos Montes Altai, que atesta, com os seus dez mil quilómetros de viagem, a total credibilidade daquela incrível Rota da Seda. Dilata-se diante dos nossos olhos a imemorial geografia do tapete, que é afinal a geografia das Noites: tecida e narrada pelas próprias migrações e mestiçagens: turcos e gregos, judeus e persas, árabes e ciganos do Egipto, sírios, arménios, circassianos, curdos, turcomanos, tártaros, mongóis. E é a mesma coluna geológica de milénios: do mítico tapete de Ctesifonte ao tapete moderno, imperturbavelmente semelhante ao antigo.”
tinhas de repente uma pressa desesperada
como quem do mundo inteiro
pretendesse apenas
um cigarro
E para terminar este quarto ponto fiquei agora na dúvida antes assim juntarei os dois, primeiro Tarkovski em Esculpir o Tempo “em Stalker, faço uma espécie de afirmação cabal: isto é, a de que basta o amor pela humanidade –milagrosamente—para provar que é falsa a suposição grosseira de que não há esperança para o mundo. Este sentimento é o nosso valor comum e indiscutivelmente positivo”, e de A leitura infinita
posted by Luís Miguel Dias sábado, abril 23, 2011