A montanha mágica

segunda-feira, abril 18, 2011

Alterando o ângulo de visão (3)


III – soube depois que era de Éfeso/e rainha


Comecemos com um acontecimento cultural último, a publicação, pela Gulbenkian, da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides.
Saltemos depois até ao Livro II e ao marco miliário civilizacional que é A oração imperial de Péricles: elogio dos mortos e do poder democrático:

“XXXVII. Temos uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por eles. E chama-se democracia, não só porque é gerida segundo os interesses não de poucos, mas da maioria, e também porque, segundo as leis, no que respeita a disputas individuais, todos os cidadãos são iguais; no que respeita a prestígio pessoal, quando alguém se distingue em alguma coisa, não é preferido para honras públicas mais por oposição de classe do que por mérito; por outro lado, no que respeita a falta de riqueza pessoal, o cidadão que tem aptidão para servir a cidade nunca, por causa da sua condição humilde, é impelido de alcançar a dignidade merecida.

[…]

XXXVIII. Para além disto, nós proporcionamos muitas formas para o espírito se repousar dos trabalhos do dia-a-dia, com jogos e sacrifícios durante todo o ano e com edifícios particulares elegantes; o prazer que vem de os contemplar mantém os sofrimentos a distância.

[…]

XL. Na verdade, nós cultivamos a beleza com simplicidade e o saber sem fraqueza. Riqueza nós usamos mais como oportunidade para agir do que como assunto para nos gabarmos. Para nós, admitir a pobreza não é vergonhoso mas não tentar escapar a ela pelo trabalho, já é. [2] Entre nós é possível que uns cidadãos tenham tanto interesse pelos negócios privados como pelos públicos e que outros, embora mais virados para os seus próprios negócios, mantenham não menos interesse pelos assuntos públicos. De facto, nós somos o único povo que pensa que um cidadão que não participa na vida pública não é apolítico mas sim inútil no que diz respeito aos interesses da cidade.“


Um destes dias ouvi Adília Lopes dizer sobre o Livro de Daniel que “é um livro lindo é um livro muito bonito e… parece cinema, e quando se está a ler para se que está ver filmes”.
É o que penso também sobre este e outros excertos da obra acima citada de Tucídides, que parecem cinema, que quando se está a ler parece que se está ver filmes.

Acerca deste ou daquele artista, desta ou daquela obra, ouvi muitas vezes dizerem que é perigoso, que era preciso ter cuidado, atenção, muita atenção. Ouvi/ouço e vou observando atentamente o que é que se diz a seguir a dizer isso. E não é muito, ou quase nada. Que é perigoso. Que tenham cuidado. Porque não se pode provar, dizem. Nem sempre, e muito mais tarde.

Quantas vezes quiseste entrar estar permanecer dentro de um filme de John Ford?
Alguém imagina ser o actor de John Ford e ter passado a vida toda lá dentro?
Não?
E num filme de Tarkovski?

De A noite abre meus olhos:

“Quando em Hilander-Athos surgiram
os primeiros tocadores de címbalos
e o seu cortejo foi saudado
com pétalas perfumadas
e grinaldas
na Porta Alta do Templo
Já lá vivia o monge Rubliev
o que chamavam pintor”

Perigoso? Em que medição do tempo?

Em O Hipopótamo de Deus e outros textos, Tolentino Mendonça refere-se à obra do sociólogo Zygmunt Bauman, e escolho um parágrafo resumo: “Bauman explica deste modo o conceito que encontrou para transcrever o que vivemos: «A sociedade moderna líquida é aquela em que as condições de actuação dos seus membros mudam antes que as formas de actuar se consolidem […] A liquidez da vida e da sociedade alimentam-se e reforçam-se mutuamente. A vida líquida não pode manter o seu rumo durante muito tempo […] É uma vida temporária e vivida em condições de incerteza constante.»”

John Ford vem-me de novo à cabeça.

Aqui ao meu lado tenho uma antologia de O Tempo e o Modo, revista de pensamento e acção, 2ª edição, editada pela Calouste Gulbenkian em 2007. Na introdução Guilherme de Oliveira Martins que “a revista o Tempo e o Modo constitui, no início dos anos sessenta, o prenúncio claro do que se preparava uma mudança radical na vida portuguesa. Não podemos compreender o que se passou até 1974, e depois, sem perceber o que a geração dos jovens lançaram e sustentaram a revista foi capaz de pensar e agir.”
Saltemos até ao número 6, Junho de 1963. Um número especial, sabemos mais à frente, subordinada ao tema/pergunta: Arte deverá ter por fim a verdade prática?
Entre outros, artigos e depoimentos de Eduardo Lourenço, Óscar Lopes, António Ramos Rosa, Mário Dionísio, João Benard da Costa, Agustina Bessa-Luís, Almeida Faria, José Cardoso Pires, Vergílio Ferreira, José Palla e Carmo, Manuel Pope, Jorge de Sena, José Carlos de Vasconcelos, Sophia de Mello Breyner Andresen, Alberto Vaz da Silva, Fernanda Botelho, Fiama Hasse Pais Brandão, Fernando Távora, Virgílio Ferreira, Herberto Helder…

Centremo-nos em três testemunhos, em fragmentos de três testemunhos à pergunta de a arte deverá ter por fim a verdade prática?:

1) Eduardo Lourenço: “No fundo, são duas formas de conforto e de renúncia. Se se quer dizer que a verdade teórica é aquela cuja existência é de ordem meramente intelectual (mas o que significa exactamente isto? O mais poderoso conhecimento prático, as matemáticas é dessa ordem…) só uma prévia desconsideração de carácter polémico pode ver nela uma qualquer oposição e muito menos inferioridade em relação ao que se designa por verdade prática. E esta última o que é? Acto ou acção que têm em si mesmos a plenitude da justificação e da inteligibilidade? Mas donde pode ela provir senão da mediação humana, isto é, de uma fonte que na sua mais ínfima expressão é já inteligência, sentido, intencionalidade em acto? Se a verdade teórica é voluntário e necessário esquecimento do caminho «demasiado humano» que ajudou a criá-la, a verdade prática é recuperação do «sentido» que em todo o acontecer humano existe por humano ser. Em suma, a distinção banal e cómoda, em vez de manifestar, esconde aquela liminar e obscura dificuldade que é a da nomeação exacta da Realidade em face da qual estamos, enraizamos, somos e que, contudo, buscamos.

(…)

É com que o que não tem verdadeiro nome nem figura que o Poeta luta até ao amanhecer, como Jacob com o Anjo, e ninguém do exterior lhe indicará os «fins», nem lhe dará as armas para esse combate que é, antes de tudo, consigo mesmo, mais incógnito do que o resto do universo. É para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce. Nenhum outro mais alto dever a move, mesmo se a aparência de uma nova finalidade empírica banal assim no-lo mostrar. Nenhuma exterior motivação a comanda e todas a podem suscitar, psicologicamente falando, as mais abstractas como as mais práticas – até as mais violentamente fanáticas ou ideològicamente puras -- se elas se converteram, se elas são uma outra forma dessa vivência sem nome que é a dos homens com a totalidade da sua experiência."

2) João Bénard da Costa: “utilizando uma afirmação duma personagem de Musil, direi que me parece só poder falar de arte, com um mínimo de probabilidades de dizer coisa que ao caso venha, aquele que considere a fruta cristalizada como a essência da fruta fresca. Ou –variação de Musil—que tão-sòmente pretenda que só com o sal se deva cozinhar.
Importa que toda a obra de arte –diga-se, todo o filme—seja reconduzido não só a nós próprios, mas para fora e para além dele próprio. Ao serviço dum conjunto de significados e de imagens, a que só nós damos significação, que só nós imaginamos e cujas últimas imagens e cujos últimos significados em nós próprios propriamente se não encontram.”

3)









4)




Voltemos à entrevista ao jornal i, ainda na fila para o peixe:

Jornalista: "Costuma acompanhar os desenvolvimentos políticos, pela televisão, por exemplo?

Tolentino Mendonça: Vejo muito pouca televisão. Hoje possivelmente verei [é quarta-feira, dia em que José Sócrates, horas mais tarde, viria a apresentara sua demissão], porque a situação política é tão forte que é impossível não ter uma atenção.

Jornalista: Como tem seguido estes tempos de incerteza?

Tolentino Mendonça: Sigo como todos os portugueses, com preocupação."

Teríamos de voltar ao ponto dois para voltar a dizer o mesmo, o óbvio, parece-me. Por que é que não havia de acompanhar a questão política como todos os portugueses ou como todos os cidadãos do mundo?

De O Hipopótamo de Deus e outros textos, três entradas: “A alergia dos cristãos à política”, “Uma imagem de Portugal” e um excerto de “A segunda vida das cabines telefónicas”:

- da primeira: “É interessante observar que nos anos 60 e 70 os movimentos cristão juvenis e universitários acalentavam um grande entusiasmo pelo compromisso social e político, discutiam acaloradamente as formas de participação política dos cristãos, qual o seu lugar e missão na edificação de um mundo novo ou de um mundo melhor. É verdade que houve ambiguidades e derivas, tornando-se a política não uma dimensão, mas o centro e, em alguns casos extremos, a totalidade, relegando para um plano secundaríssimo a função eminentemente espiritual da proposta cristã. Mas a verdade é que hoje se corre o perigo oposto: o de buscar apenas uma espiritualidade, desenhada à maneira de um bem-estar íntimo, ou intimista, em que a Fé se torna um assunto privado, uma gestão exclusiva do eu, onde as necessárias implicações históricas e colectivas não entram. Será possível conjugar um grande amor por Deus com um grande desinteresse pelos homens? A rarefacção do entusiasmo e da presença dos cristãos nas várias dimensões da vida pública é um sintoma preocupante na Igreja portuguesa.

O Deus em que os cristãos crêem não plana acima das questões escaldantes da história: ele aparece claramente comprometido com a justiça e com uma ordem social de equidade, manifestando-se a favor dos mais pobres. A opção pelos pobres, a escolha preferencial pelos sem-voz-nem-vez remonta ao próprio Cristo e ressoa claramente nos textos de origens cristãs. Como resume a primeira Carta de São João (1 Jo 4,20): «Se alguém disser: “Eu amo a Deus”, mas não amar o seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não amo o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.» A fé para ser vital tem de aceitar o risco de ser uma Fé encarnada. O Evangelho para ser vital tem de ser recebido como palavra transformante, como fenómeno colocado na massa. O cristianismo não coincide com nenhuma realidade política, mas em todas introduz uma tensão de amor, de justiça e de verdade. O cristianismo tem um sonho. Aqueles cristãos que dizem: «Eu não quero sujar as minhas mãos na realidade do mundo», como lembra Charles Péguy, «acabam rapidamente por ficar sem mãos.”

- da segunda:




- da terceira: “Ao constatar a reactivação das cabines telefónicas, vem-me á memória muitas vezes o filme de Sergio Tréfaut, Lisboetas, estreado em 2004. Quem quiser compreender a realidade humana do Portugal de hoje tem ali um guia competente. O filme elege como objecto o acolhimento aos imigrantes, tomando e cruzando vários pontos de vista. E dessa narrativa depreendemos que a integração laboral (feita segundo critérios de legalidade e justiça, nem sempre seguidos) é um ponto de partida claramente necessário, mão não é o único a dever ser cuidado numa cidadania cada vez mais partilhada. Tréfaut fala dos que não vemos, e que, contudo, estão por todo o lado, diante dos nossos olhos. Pode-se ripostar dizendo que houve sempre muitas cidades dentro de uma cidade, mas de certeza ficamos mais pobres quando não conseguimos articular criativamente (e humanamente!) as nossas singularidades.
A segunda vida das cabines telefónicas, de que maneira nos toca?


Voltemos então a A noite abre meus olhos:

"
Uma tristeza espalhava-se a ocidente/nesse verão os melhores/dos seus homens perdiam-se/em inexplicáveis derivas

*

de olhar indiferente aos sortilégios do tempo/uma inexplicável quietude de figura/diante de um mundo que ruía

*

Passeamo-nos à sombra de árvores mitológicas/silenciosos e vagos pensando/como de lugar nenhum onde estivemos/alguma vez regressámos

*

Os sinais da necessidade/por mim não espero apagá-los/água nenhuma que lavasse meu rosto/o alterou

*

também eu me recuso a dizer apenas/o que pode ser dito

*

nenhum poder ordena/em papel de prata essa dança inquieta

*

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

*

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora

*

mas estamos tão pouco/onde estamos

*

não discuto o que fizeram de nós estes anos/a verdade é de outra importância

*

Amo os que atravessaram os campos
desamparados
mais do que se pode

*

O custo das casas
por incrível que pareça
sugere a possibilidade
de uma outra vida

*

o teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços

*

«até agora somos o esterco do mundo»

*

hoje só lá se passa/para os saldos de Madrid

*

além do parque arqueológico/a cidade assemelha-se a um acampamento desolado/varandas cheias de caixotes e detritos/(devem ser exíguas as casas económicas))/muros com imprecações aos de Roma/e a débil força messiânica entregue/aos ídolos do futebol

*

Não disseram ainda, mas cada um já pensou/para a semana o piquenique no campo

*

Enchem os primeiros autocarros para o centro/lêem o jornal de distribuição gratuita/à espera que de novo o mar se rasgue/num quarto sub-alugado da periferia/onde em vez de Corte Inglés e Continente os supermercados/se chamam Lidl ou Discount

*

procuro pensar nos dois ou três interesses que me restam/entre eles Santa Teresa e o drama das prostitutas

*

A verdadeira passividade não é a do esquecimento/mas a mortal velocidade do desejo/que ninguém suporia a hora alguma

"

Não sei se o faz ou não, e se ou faz com outro nome, who knows?, mas de Herberto Helder fui buscar uma piscadela ao real mais recente, de A faca não corta o fogo, dois excertos:






Termino este terceiro ponto com uma citação de Tolentino Mendonça, retirada de uma entrevista dada a Ecclesia e que se pode ler no site da Pastoral da Cultura (26/3/2011), referida no ponto um:

"O mundo político, tal como o mundo religioso, não compreendeu Jesus."

posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, abril 18, 2011

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