quarta-feira, março 02, 2011
absolutamente muito ótimo, do blog da cotovia, Daniel Jonas: estou de acordo com ele
"Agora travava-se um despique aceso entre um jovem dramaturgo, Tiago Rodrigues, e Isabel Stilwell. Tiago comparava a actualidade laboral do jovem à de um escravo; Isabel que não. Afinal — num momento particularmente tenso em que a jugular lhe criara um carocinho — “os escravos não organizavam protestos nem iam para a rua, graças a Deus.” Pasmei. Dei-lhe o desconto, compassivo. Afinal, quantas vezes, enfurecidos num debate, não somos amiúde levados pela ira da retórica até ao arrazoado insano? Simpatizei, empático. Mas depois da refrega da jugular de Isabel, e da minha racionalidade pia, uma dúvida inquieta persistia, a douda. Precisava mesmo de saber se Stilwell, pela graça de Deus, pensava mesmo aquilo sobre escravos. Precisava de saber se Isabel era apenas ignara ou tentara, estulta, o difícil e arriscado número da ironia, sem sucesso. Deu-lhe a moderadora em tom jocoso e peixeiro: “E Spartacus?” Anuí. Não podia discordar da mediação da graça de Fátima. Spartacus! Sem dúvida: Spartacus! Kubrick. Kirk Douglas. Spartacus! Poderia invocar outros. Mas eram tantos! — Toussaint L’Ouverture e a rebelião escrava da Revolução Haitiana, por exemplo, a rebeldia consistente e sistemática na história da escravatura do Brasil, todos os movimentos de libertação racial, colectivos ou pessoais, como Rosa Parks e aquele lugar livre no autocarro que pelos vistos circulava na rua— tantos eram e seriam que, prostrado, sem forças, caí na minha melancolia e fiquei absorto a considerar o canal. Estava exangue. E aquele “graças a Deus”?... Seria um acto sincero de agradecimento e ainda por cima ao mesmo Deus que eu adoro? E nem a tradução daquele graças a Deus por um mero ainda bem, ou, como diria Lauro Dérmio, still well, em amaricano, foi capaz de levantar a minha moral. O problema persistia. Ainda bem que os escravos não se revoltavam? Seria Aindabem a favor da escravatura? Era ignorante, graças a Deus e ainda bem? Perguntas, perguntas... E aquele “nem iam para a rua”... Era para ser levado à letra? Escravos que iam para a rua no intervalo da sua função de escravo? E seria aquela triste ignorância uma espécie de admoestação ao jovem com apetite pela manifestação organizada?: Vejam bem (Vejam bem, não, caramba) Olhai, atentai no escravo que não organiza nem protesta! Considerai o escravo, jovens, e segui o seu exemplo. A metódica organização do pensamento de Aindabem implorava ali por um momento de humor que pudesse intervir em socorro do espectador em apuros. E o humor interveio. Eis que alguém ainda não identificado pelas câmaras, levantado da primeira fila, pede a palavra. Fátima não sabe o seu nome. Ele apresenta-se. É presidente de uma associação de estudantes-escravos com uma impronunciável sigla: FASCIA ou qualquer coisa do género."
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, março 02, 2011