quarta-feira, dezembro 01, 2010
caminhos de ferro
Chief, Franz Kline (American, 1910-1962), 1950.
Oil on canvas, 58 3/8" x 6' 1 1/2" (148.3 x 186.7 cm).
Gift of Mr. and Mrs. David M. Solinger.
© 2010 The Franz Kline Estate /
Artists Rights Society (ARS), New York
Nas últimas páginas do seu maravilhoso tratado/legado/endosso/também testamento, Um Tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Tony Judt escreve sobre o serviço público que é o comboio, que são os caminhos-de-ferro, e cita Marcel Proust "as estações ferroviárias... não constituem, por assim dizer, parte da cidade, mas contêm tanto a essência da sua personalidade, como o nome pintado no letreiro".
E diz, abram-se ò tímpanos, aquilo que nós/mundo precisamos de ouvir/reflectir/agir.
"Os comboios já eram o símbolo da vida moderna no decénio de 1840 --daí a atracção que exerciam nos pintores ´modernistas`, de Turner a Monet. Ainda desempenhavam esse papel na época dos grandes expressos que atravessaram o país na última década do século XX. Os comboios electrificados do metropolitano foram os ídolos dos poetas e artistas gráficos modernistas a partir de 1900; nada era mais ultramoderno que os novos supercomboios aerodinâmicos que adornavam os cartazes neo-expressinistas dos anos 30. O Shinkansen japonês e o TGV francês são hoje os ícones do sortilégio técnico e de grande conforto a 300 km/h.
Os comboios, ao que pareceria, são eternamente contemporâneos --mesmo que saiam de vista por um bocado; neste sentido, qualquer país sem uma rede ferroviária eficiente é, em aspectos fulcrais, ´atrasado`." (Tony Judt, Il fares the Land, 2010)
Quase como muitos milhões de pessoas também tive quem na infância mais primeira me falasse apaixonadamente de comboios, "um dia destes vamos fazer uma viagem até ao Porto de comboio", e depois vê-los nas páginas dos livros onde começamos a aprender a ler e a escrever, e depois de estar parado nas filas de trânsito imensas imensas que nos levavam até à Póvoa de Varzim, pouca-terra, pouca-terra, pouca-terra... tanta terra, tanta terra, tantos sonhos.
Franz Kline chamou-lhe Chief, decorou-lhe o nome e pintou-a, mas pintou não o que se vê "but the feelings aroused in me by that looking".
Antes de ler o texto que tinha ao lado, não me lembro do que achei que era quando a vi pela primeira vez, talvez uma avião, talvez um insecto, um trompeteiro nova-iorquino, talvez... metamorfose, talvez um fantasma, talvez uma nuvem negra, talvez um novo ser ou um dos mais antigos, em certos baralhos de cartas o ás de espadas, a entrada na mina, a auto-estrada quase diária para o Porto há uma dúzia de anos, o Homem numa trincheira, não sei, sou dependente de campo.
Mas lembro-me de achar que ele e Tony Judt estão, se não no mesmo comprimento de onda, muito perto.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, dezembro 01, 2010