quarta-feira, abril 07, 2010
Lev Tolstói, Yásnaia Poliana, 1828 - Astapovo, 1910 (5/100)
"Stöetzer
Em Weimer, nos começos do nosso século, ainda vivia Julius Stöetzer, professor de profissão, que morara, enquanto estudante, sob o mesmo tecto que Eckermann, a pouca distância da casa de Goethe. Partilhava então o quarto com um colega e por vezes acontecera-lhe avistar, arrepiado de emoção, juntamente com o jovem companheiro, a sombra do grande homem à janela. Mas os dois estudantes queriam conhecer algo mais e contemplar o ídolo à vontade. Dirigiram-se ao dono da casa, fâmulo de Goethe, e suplicaram-lhe que lhes proporcionasse os meios de satisfazerem esse desejo. Eckermann era um homem amável; num dia de Verão introduziu os estudantes, por uma porta disfarçada, no jardim da célebre casa, e foi aí que eles esperaram, ansiosos, que Goethe aparecesse; com efeito, apareceu, o que lhes causou pânico: passeava envolto num roupão claro --o seu famoso roupão de flanela, provavelmente-- e, ao avistar os nossos dois sócios, plantou-se diante deles, envolvido pelo vapor da água de Colónia, com as mãos atrás das costas e a barriga espetada, com aquela cara de síndico de cidade livre que, se acreditarmos em testemunhos fidedignos, lhe servia para disfarçar o embaraço. Perguntou pelo nome dos rapazes e que é que pretendiam, falando provavelmente a ambos ao mesmo tempo. Tal procedimento não podia deixar de parecer severo e acarretava complicações em matéria de resposta. Depois de os estudantes terem balbuciado umas coisas vagas, o velho recomendou-lhes que se aplicassem nos estudos. (Será que tal atitude significava que mais valera que eles se dedicassem ajuizadamente aos seus exercícios do que ficarem pasmados num jardim?...) Dizendo isto, Goethe foi-se afastando.
Eis o que se passou em 1828. Trinta e dois anos depois, Stöetzer, uma tarde, à uma hora, Stöetzer, que se tornara um aplicado professor, dedicadíssimo à profissão, ia começar a aula aos alunos do quarto ano da escola superior quando um jovem entreabriu a porta, meteu a cabeça e anunciou que um estrangeiro desejava falar com o senhor professor. O tal estrangeiro entrou sem pedir licença; tratava-se de um homem muito mais novo que Stöetzer, de barba um tanto rala, de olhinhos cinzentos e malares salientes; tinha duas rugas profundas entre as sobrancelhas escuras. Desprezando qulaquer apresentação informou-se sem mais nem menos da matéria das aulas que teriam lugar à tarde. Disseram-lhe que seriam de história e de alemão. Declarou que achava muito bem e acrescentou que, tendo visitado as escolas da Alemanha do Sul, da França e da Inglaterra, queria igualmente informar-se das da Alemanha do Norte. Falava como um alemão. As pessoas só podiam supor que se tratava dum professor, a avaliar pela competência com que ele formulava as suas perguntas, pelo interesse com que explicava as coisas, pelo cuidado com que tomava notas no seu bloco. Assistiu a toda a aula. Quando os rapazes acabaram de redigir nos cadernos um exercício que consistia na escrita duma carta acerca dum tema dado, ele pediu licença para levar as «redacções» e guardá-las em casa, pois, dizia, tinha muito interesse por elas.
O professor achou que essa exigência era ingénua. Quem indemnizaria os alunos pela perda dos cadenos? Weimar não era uma cidade rica... Tais foram as objecções corteses do professor. O estrangeiro respondeu que tudo se arranjaria e foi-se embora, pura e simplesmente.
Stöetzer mandou chamar o director para lhe comunicar um acontecimento extraordinário. Ainda não acreditava bem na importância das palavras que ia dizer, pois só mais tarde viria a compreender a que ponto tinha razão. Nessa época ainda não podia entender a importância do nome com que o homem se apresentara ao voltar à sala de aula, com um cadeno debaixo do braço, travando assim conhecimento com os nossos dois pedagogos: «Conde Ivan Tolstoi, da Rússia». Mas, quando já era muito velho, o professor Stöetzer ainda pôde compreender que espécie de personagem havia visto nesse dia."
Thomas Mann (trad. José Martins Garcia), Goethe e Tolstoi, Arcádia, 1979.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 07, 2010