quarta-feira, janeiro 20, 2010
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Fotografia de Eduardo Gageiro
"Curiosa forma tem Alberto Vaz da Silva de abeirar-se aqui de Sophia, em evocação intensa, dilectíssima e discreta. «Quem tiver ouvidos para ouvir (...)». A visão inaugural é a de um jardim. Ainda não se fala de livros, nem de versos, mas de uma adolescente num «maravilhoso jardim semi-abandonado e selvagem», deslizando atrás do aroma «profundo, intenso, secreto, veludoso, insondável» que é a alma do mundo e a nossa própria. Quando Sophia, recuperando a memória desse lugar, escrever que «o corpo de Alexandre da Macedónia era, por sua natureza, aromático», certamente re-corda e a-corda. Os jardins são, para a consciência, territórios de origem, patamares, cavidades maternais, propulsores de vertiginosa passagem.
Este é, se quisermos, um livro sobre jardins. Os que nos precedem, os que formam sem sabermos a nossa alma e os seus declives, os que silenciosamente se avistam nas várias formas de grafia, desde aquela que cintila na vastidão silenciosa dos céus (e que também nos pertence), à nossa grafia íntima, feita de arranhões, de registos digitais, de textos, crateras.
A meditação sapiencial e mística leva-nos frequentemente para o interior de jardins. Homero descreve os de Alcíno como uma experiência encantadora: «ali, de pé, se maravilhou o sofredor e divino Ulisses». Virgílio trata-os muito especialmente, pois crê que aí se pode encontrar a felicidade. Ovídio evoca, com deliciado detalhe, os jardins de Flora. Teresa de Ávila escreve: «Nos inícios desta vida de fidelidade que quero contar ( ... ), saboreava a mais viva alegria em representar a minha alma como um jardim». A Bíblia começa e termina com um jardim: o do Éden e esse anónimo onde foi escavado um sepulcro, que será depois encontrado vazio. Nem por acaso, Maria Madalena, primeira testemunha da Ressurreição, confunde Jesus com um jardineiro. Será que confunde? Comenta Yourcenar: «Que melhor nome poderia dar-se àquele que fez crescer tantas sementes na alma humana?».
Existem no idioma hebraico duas formas distintas para nomear árvore: ets e ilan. O primeiro termo é o mais comum na narrativa bíblica, mas o segundo também se encontra, e é, de longe, o preferido pela Cabala. Deriva do aramaico ilana e o seu valor numérico é 91 (lembremos que a cada letra do alfabeto corresponde um número. Neste caso: 1+10+30+50). Ora, se atendermos à dimensão simbólica e espiritual dos números (sim, mesmo as coisas que nos parecem mudas têm uma voz!), árvore (valor 91) tem uma sinonímia com anjo (malakh, também de valor numérico 91). Ao dizer árvore é como se disséssemos anjo. Não nos espantemos da ligação natural do jardim às tipologias sagradas. Como explica Hipólito de Roma, no século III, «do jardim terrestre elevamos os nossos olhares para o jardim celeste».
Um eixo semântico atravessa a poética de Sophia de Mello Breyner Andresen: o do enlace, súbito ou repetidamente buscado, com o «inicial» e o «primeiro». Poema a poema somos remetidos para o «limpo», o «intacto», o «inteiro», o «puro». A poesia é aqui dicção peremptória do original, assombro perante a solenidade com que o visível refulge (ou pode ainda refulgir), justo e sem pregas, susceptível de descoberta. Esse é o seu ethos."
José Tolentino Mendonça in Evocação de Sophia, ed. Assírio & Alvim, 2009.
Guilherme d'Oliveira Martins:
"A poesia deveria ser universalista e por isso, ao lermo-la, encontramos o espírito de aventura e de novidade, que põe a pessoa em primeiro lugar, no sentido do prosopon grego, etimologicamente significativo de máscara teatral, que define a singularidade e a universalidade, aliando o que as une e o que as distingue.
Nesse sentido, a poesia de Sophia é europeia e transcende as fronteiras, bebendo através das raízes grega, mediterrânica e judaico-cristã a força das origens. Sentimos a partilha inspiradora que vem de Homero a Camões, chega a Pessoa, mas continua em Rainer Maria Rilke. E Frederico Lourenço diz-nos que a Grécia de Sophia é “construída pelo olhar dela, uma geografia anímica que tem tanto de Grécia como de Portugal”. E lembra O Búzio de Cós, onde se não ouve “nem o marulho de Cós nem o de Egina / Mas sim o cântico da longa vasta praia / Atlântica e sagrada / Onde para sempre a minha alma foi criada”, afirmando ainda (o tradutor da “Ilíada” e da “Odisseia”), emblematicamente, que “a Homero ela foi buscar a absoluta simplicidade de efeitos no acto de narrar”.
“no fundo da copa havia um desvão onde estava uma grande arca. Essa arca era para nós a caverna do Ali Babá. Lá dentro estavam os fatos de máscaras que os nossos tios e tias tinham usado na sua juventude no bailado da ‘Princesa de Sapatos de Ferro’ e no bailado do ‘Arlequim e Columbina’. Eram fatos maravilhosos, feitos de cetim de todas as cores, desenhados por Almada Negreiros e cortados e cosidos pela Maria Carolina. O meu preferido era o vestido da princesa feito de tiras amarelas e tiras brancas…». E, no outro extremo da cidade, da casa do Campo Grande, lembra: “nas tardes de Verão sentávamo-nos nos degraus da escada em meia-lua que liga a sala grande com o jardim e falávamos sem fim de todas as coisas visíveis e invisíveis do céu e da terra”.
Um dia disse a Jorge de Sena (grande e próximo amigo):“a minha família – pelas sabidas razões políticas – quase não me fala. Os meus amigos de juventude quase me detestam”. Mas também lhe confidencia: “Ser ao mesmo tempo poeta, mulher do D. Quixote e mãe de cinco filhos é uma tripla tarefa bastante esgotante”.
A Grécia entusiasma-a. Mas, confessa ainda a Sena: “não pense que vim da Grécia paganizada. Aliás o paganismo ali não é ‘nada do que se conta’! Voltei sim mais apta a compreender o Evangelho que S. Paulo pregou em frente da Acrópole. Mais apta a compreender toda a vital necessidade de ligação, de religação”.
E Maria Velho da Costa dá-nos um testemunho inesperado e essencial. É a crónica de uma cumplicidade, plena de pequenos episódios, em momentos diferentes. É Sophia rediviva. Lembrança de uma rapariguinha impraticável – “uma rapariga de setenta anos, capaz de ser vaidosa e frívola; e grandiosa como um mistério do mais abscôndito Deus, o inominável”. E inesperadamente ouvimos: “- Vamos à Baixa comer scones Marie?”. Maria Velho da Costa usa todo o seu talento, toda a sua força, para nos falar apenas de Sophia. “Nós divertíamo-nos como velhas meninas loucas naqueles dias de licença e privilégio consentidos…”. Lemos, relemos e sentimo-nos como moscas felizes, a testemunhar essa alegria essencial. "
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, janeiro 20, 2010