A montanha mágica

quinta-feira, dezembro 17, 2009



"O momento de grande ansiedade para Stravinsky veio a ocorrer quando interpretou a sua Sonata para Piano no festival da ISCM de 1925, em Veneza. Janácek estava lá e também estavam Diaghilev, Honegger, a princesa de Polignac, Cole Porter, Arturo Toscanini, e Schoenberg, com o seu olhar avermelhado. Muitos puseram em causa o novo estilo neoclássico de Stravinsky; correu o rumor de que ele já não era um compositor «sério», que tinha passado a ser um imitador. Segundo relatos da altura, Schoenberg saiu da sala. Stravinsky deve ter tido consciência do cepticismo que o rodeava; segundo escreveu o seu biógrafo Stephen Walsh, a insegurança era «o demónio que espreitava permanentemente nas regiões profundas da consciência de Stravinsky». Também as tensões emocionais o avassalavam. Yekaterina Stravinsky, a sua mulher, tinha sofrido um esgotamento nervoso devido a tuberculose. A devoção de Yekaterina à ortodoxia russa parecia uma censura silenciosa ao estilo de vida peralta do marido, já para não falar do seu caso com Vera Sudeykina, que continuava.
Alguns dias antes do concerto, apareceu um abcesso na mão direita de Stravinsky. Um pouco para sua própria surpresa, foi a uma igreja, ajoelhou-se e pediu ajuda divina. Precisamente antes de se sentar para tocar, espreitou por debaixo da ligadura e viu que o abcesso já lá não estava. Esta cura súbita soou a Stravinsky como milagre, pelo que começou a sentir um renascimento da sua fé religiosa. O seu «retorno oficial» aos sacramentos teve lugar quase um ano depois, durante a Semana Santa de 1926, quando contou a Diaghilev que estava a fazer jejum «devido a uma necessidade mental e espiritual extrema». Por volta da mesma ocasião, Stravinsky escreveu uma breve e pungente composição do pai-nosso em eslavo antigo. Ao longo dos cinco anos seguintes compôs uma trilogia de obras sagradas de tom solene ou explicitamente sagrado: Oedipus Rex, Apollo, Sinfonia dos Salmos. A religião era a sua nova «realidade», os seus novos alicerces; deu substância à sua devoção ao passado e, não por acaso, deu sentido à sua vida ligeiramente dissoluta.
Ao redescobrir a religião, Stravinsky estava paradoxalmente a seguir a moda. O ano de 1925 foi um ano de sobriedade renascida na cultura francesa. Muita gente andava a meditar sobre um ensaio de despedida escrito por Jacques Rivière, recentemente falecido, sobre a «crise do conceito de literatura»; o crítico sugerira que as artes se estavam a tornar demasiado desinteressadas, demasiado «desumanas», e citou a «música dos objectos» de Stravinsky como um dos sintomas de um declínio ético e espiritual. Cocteau, depois de sofrer a perda do seu jovem amante Raymond Radiguet, viciara-se em ópio e depois de passar por uma epifania alucinatória no elevador de Picasso, regressou ao catolicismo em Junho do mesmo ano. O mestre espiritual de Cocteau era o filósofo neotomista Jacques Maritain, que acreditava que a arte moderna se poderia purificar, adquirindo uma imagem de verdade divina, assumindo-se como «perfeita, completa, limpa, durável, honesta».
Também Stravinsky foi influenciado por Maritain, talvez por se ter sentido punido quando o filósofo criticou a noção de «arte para nada, para nada mais do que ela própria». Depois de reflectir sobre a ideia de uma ópera ou de um oratório sobre a vida de São Francisco de Assis, Stravinsky optou por enveredar por um tema da tragédia antiga e pediu a Cocteau que escrevesse uma adaptação em língua francesa da história de Édipo. De seguida mandou traduzir para latim. «A escolha do latim teve a grande vantagem de pôr à minha disposição um meio não morto, mas sim petrificado, e assim transformado em monumento imunizado contra todos os riscos de vulgarização», escreveu mais tarde Stravinsky. A partitura recomendava: «Só os seus braços e cabeças se movem. Devem dar a impressão de estátuas vivas.» Esta obra demonstrou um grande empenhamento relativamente ao projecto Rivière quanto à reabilitação espiritual e também quanto à filosofia de Maritain que afirmava ser a arte um trabalho sagrado.
O envolvimento de Cocteau significou que Oedipus só poderia avançar em direcção à solenidade. As declamações em latim estavam entrelaçadas com uma narração que, em francês, era consciente e satiricamente pomposa. O narrador de Cocteau está tão embrenhado na sua dignidade literária que, por vezes, nem se apercebe do que se está a passar no palco. «E agora vão ouvir o famoso monólogo "O Divino Jocasta está morto"», proclama ele, mas a seguir não se ouve qualquer monólogo."


Alex Ross (trad. Mário César d`Abreu), O Resto é Ruído, casa das letras, 2009.


posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, dezembro 17, 2009

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