A montanha mágica

segunda-feira, novembro 30, 2009




Há muito, muito tempo (havia quem contasse assim umas histórias na rtp 2, ao fim da tarde) comprei umas edições de música clássica em cd rom que traziam alguns dados biográficos de alguns compositores bem como alguma da História em que viveram, para rabiscar umas sebentas caseiras; nunca o fiz.

Sem ter rigorosamente nada a ver, um dia destes, muito, muito tempo depois, de repente... e se de repente...ainda que a tradução tenha muito que se lhe diga e a capa também:


"O Resto é Ruído descreve historicamente não apenas os próprios artistas, mas também os políticos, os ditadores, os mecenas milionários e os administradores de empresas que tentaram controlar a música que se escrevia; os intelectuais que tentaram impor decisões sobre o estilo; os escritores, os pintores, os dançarinos e os realizadores de cinema que os acompanharam nas estradas solitárias da exploração; as audiências que com isso se comprazeram, que insultaram ou que ignoraram o que os compositores estavam a produzir; as tecnologias que alteraram o modo como a música se fazia e ouvia; e as revoluções, as guerras quentes e as frias, as vagas de emigração e as transformações sociais mais profundas que imprimiram um novo aspecto à paisagem em que os compositores trabalhavam.

[...]


Viena, 1900

Nas suas primeiras histórias, Thomas Mann produziu diversos retratos vívidos de uma personagem paradigmática da viragem do século; o esteta apocalíptico. A história Beim Propheten (Em Casa do Profeta), escrita em 1904, começa com uma ode irónica à megalomania artística:

Que estranhas realidades existem, que estranhas mentes, que estranhos estados de espírito, nobres e disponíveis. Na periferia das grandes cidades, onde escasseiam os candeeiros de iluminação pública, e os polícias, aos pares, patrulham a pé as ruas, há casas onde se sobe até mais não ser possível e, lá em cima, se entra em lofts (1) sob os telhados onde geniozinhos pálidos assassinos do sonho, se sentam de braços cruzados e meditam; lá em cima entra-se em estúdios baratos com decorações simbólicas, onde artistas solitários e rebeldes, consumidos interiormente, esfomeados e orgulhosos, lutam por ideais radicais por entre uma névoa de fumo de cigarros. É este o objectivo, o alvo: gelo, castidade, nulidade. Aqui nenhum compromisso é válido, nenhuma concessão, nenhum meio-termo, nenhuma consideração pelos valores. Aqui o ar é tão rarefeito que já nem existem miragens de vida. Aqui reina o desafio e a consistência do aço, o supremo ego por entre o desepero; aqui reinam a liberdade, a loucura e a morte.

[...]


Paris, 1900

A certa altura, o sentido que Debussy tem de si próprio como aventureiro dos sons, um perscrutador de Fausto, dissipou-se. Em 1900 já não apelava para a constituição de uma Sociedade de Esoterismo Musical; em vez disso, louvava os valores franceses clássicos da clareza, da elegância e da graça. Andava também a ouvir atentamente a música espanhola, especialmente o canto hondo, tradição do flamenco andaluz. As suas obras mais importantes da primeira década do século --La mer, os Préludes e as Estampes para piano, e os ciclos de Images para piano e orquestra-- misturam qualidades familiares de transcedência com andamentos de dança e lirismo puro e simples. «Velas», nos Préludes, confina-se quase por completo à escala de tons inteiros. «Passos na Neve» gira em torno de repetições hipnóticas de uma figura de quatro notas. Porém, La fille aux cheveaux de lin (A Rapariga de Cabelos de Linho) tem uma melodia que apetece assobiar na rua; muitas pessoas ficariam surpreendidas ao saberem que esta peça nem sequer foi «composta». E a «Serenata Interrompida», uma cena espanhola, mistura a guitarra flamenca com escalas árabes que sugerem uma influência mourisca. Debussy não aprendeu a escrever este tipo de música em isolamento faustiano; pelo contrário, recolheu algumas pistas em noites avulsas na ópera, na opereta, em cabarés e em cafés.
Paris boémia promoveu um fácil intercâmbio do esoterismo oculto com o populismo de cabaré, principalmente porque os dois mundos se sobrepunham por vezes literalmente. A Ordre Kabbalistique de la Rose-Croix reunia-se numa sala por cima do cabaré Auberge du Clou, e enquanto a cabala debatia a sua filosofia arcana, as melodias insinuantes do café-concerto por certo emergiam no andar de cima.
Era em lugares como estes que Debussy encontrava frequentemente Erik Satie, outro revolucionário clandestino fin-de-siècle e, sob alguns aspectos, o mais destemido de todos.


(1) Palavra inglesa que, principalmente nos anos setenta do século passado, se passou a aplicar a amplos espaços sem divisórias, situados nos últimos pisos dos edifícios --por vezes armazéns transformados em apartamentos de condomínios-- e que eram geralmente , mas não só, ocupados por artistas de diversas artes. Não se trata, pois, dos vulgares sótãos. (N.do T.) "


Alex Ross (trad. Mário César d`Abreu), O Resto é Ruído, casa das letras, 2009


posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, novembro 30, 2009

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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