terça-feira, novembro 24, 2009
"E comecei a aperceber-me de que a população dos quadros podia existir dentro das portas de uma cidade, a cidade sem museu, em que à entrada das casas, como habitantes, havia quadros, nesta, por exemplo, o retrato de uma mulher com um vestido azul que, no quadro, é verde, mas que no texto, à porta dessa casa, o sumo da minha memória vê como vermelho. É de Balthus, e eu gostaria de viver a escrever passeando entre imagens.
Dirijo-me a ela:
– Mulher, que não tens seios, tens vestido comprido, só cabeça, e um livro na mão. Que és magra, como o teu livro pequeno na mão esquerda, apoiada, no antebraço, pela direita.
Estás à espera de alguém?
– Não, não estou.Balthus: Portrait de femme en robe bleue
(Madame Georges Hilaire), 1935
– Por que olhas para mim, de testa franzida, e não para o livro? Por que pareces tão magrinha com uma cabeça tão grande? Por que tens uma cadeira de costas para ti?
– Não quero sentar-me. Quero olhar-te. Mas perdi a memória e, por falta dela, não sei ler o livro, que se tornou um objecto quase seco na minha mão. Se eu me sentar na cadeira _____
– Deixas de olhar para mim.
– Deixo de olhar para ti, e despregam-se-me os dois indícios de rugas que tenho na testa à direita.
– Despega-se também da tua boca a boca voluntariosa.
– Sim. Esboçaria um sorriso. E o meu corpo deixaria de estar ligeiramente inclinado para trás,
para a memória de anão que percute o meu vestido, a meu lado. O meu vestido, o meu lado, a minha memória. Não consigo deixar de olhar para ti. Porque me vês, compreendes? E quem me vê, como não estou habituada a que me vejam,
me tem.
Decido ir ao museu para vê-la mais vezes, entregar-lhe parte da minha liberdade quando a olho. Porque ela não é livre, existe, mas não tem, por exemplo, a realidade de poder deslocar-se para ir até à janela. Estará sempre ali, sufocada pelo livro que tem na mão, cada vez mais minúsculo, e não lê. E, na sua cara, morrerá o estereotipo dos olhos.
Mas, se não houvesse força reinante no quadro de Balthus, eu não teria escrito este texto, que bebi na sua imobilidade e na sua imagem.
– Abre-se-te o chão debaixo dos pés? – perguntei-lhe. – Estou quase fascinada por ti.
– Deixa-me cair no teu fascínio – disse-me. – Dá-me um alvo para olhar.
– Certamente – respondi-lhe. – Olha para teus irmãos (as outras belas coisas) e esgueira-te pela porta
que te abre o texto. Pois tu abriste-me ao primeiro impulso.
– É triste [luminoso] precisar de dinheiro para vibrar. Mas tu vibras com o menor impulso de dinheiro possível. O que é ainda mais luminoso.
Maria Gabriela Llansol
(Espólio de M. G. Llansol, Caderno 47, 1997)"
in A Phala
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, novembro 24, 2009
Puro llansol :)
Sou um leitor despretensioso
da obra de gabriela llansol.
Só percebo entre um terço
a metade do que escreve.
Mas sempre me fascinou
e encantou. Hesitei,
hesito ainda, ler
estes trabalhos
póstumos...
Não estarão inacabados?
Quereria ela que outros
os terminassem? Claro,
João Barrente é uma
autoridade das letras;
gostei deste extracto;
talvez me decida
a comprar...
Obrigado,
pelo post.
Abraço,
Vasco