A montanha mágica

segunda-feira, outubro 26, 2009

há a descoberta de uma nova maneira de estar vivo





esta vida que tem sido para mim uma segunda morte





O actor é um pensamento em cena


não é preciso reflectir para fazer o bem




recriar o fogo de um pensamento




fotografias de Luís Santos e Paulo Cintra



Teatro da Cornucópia: Ifigénia na Táurida

Luís Miguel Cintra: "Conta Eckermann que Goethe lhe teria dito que na Ifigénia as palavras escritas seriam só um pálido reflexo da agitada vida que teria nascido nele durante a sua criação e que o trabalho do actor ao representá-la seria fazer-nos voltar a esse fogo que animou o poeta enquanto as escrevia. Ou seja, o trabalho do actor seria uma complexa dramaturgia: começar por decifrar a inteligência do texto e ao pôr-se em cena como personagem conseguir a reconstrução de um “fogo” que lhe deu origem. Foi esse o trabalho que tentámos fazer: recriar o fogo de um pensamento, entendendo-se que o fogo é vida ou a vida é fogo.
Agora que longamente trabalhámos, julgo ver na peça a imagem do próprio pensamento que a criava, a exposição de uma revelação, de um processo mental, de uma aprendizagem. O trajecto é o das trevas para a luz. Em Ifigénia, em Orestes, em Toas. É o da transformação da barbárie ou da velha Cultura em Civilização. É o caminho até à revelação da verdadeira natureza de Deus através da revelação de cada um a si próprio. Trajecto desejado por um mal estar, mas trajecto imprevisto, e só consentido e conseguido pelo amor à verdade que é sinónimo de respeito pela vida. É esse amor à verdade (o de Ifigénia, neste caso) que tudo move. No confronto com o que a vida nos traz, com “o acaso”, se se quiser, “coisa que não dominamos”. É esse o fogo, o desejo do confronto. O tema da peça julgo que é o próprio Conhecimento. Citando a própria Ifigénia: conhecimento de si próprio. Conhecimento do mundo. Nisso consiste a vida. Pelo menos para aquela raça de infelizes que são escolhidos pelos deuses, para os que querem criar mais vida. Para os artistas, pelo menos, com certeza. Para os que têm desejo de existir. Ou não fosse Goethe autor do Fausto.


Todos os temas nesta história se sobrepõem. Como seria de esperar se se trata de um mito. Múltiplas dicotomias se geram no discurso dos homens presentes na história: deuses/homens, guerra/paz, barbárie/civilização, verdade/mentira, coração/razão, palavra/força, bem/mal. Mas há uma dicotomia fundamental que tudo abarca e todas as outras resolve, porque a resolve a natureza: morte/vida. Como se a escolha natural da vida tudo resolvesse e todas as outras escolhas anulasse. É por Ifigénia sentir um mal estar, e ao senti-lo o conhecer, e ao conhecê-lo o poder formular, o de um absurdo (“esta vida que tem sido para mim uma segunda morte”), que esta peça começa. Ifigénia sente-se estranha num lugar de morte. O seu lugar só pode ser o da vida. Mas como julga que foram os deuses que nesse lugar de morte a deixaram, ao contrário do que a seu irmão acontece, duvidará dos deuses mais do que da vida e, por vias tão afectivas como inteligentes, e pela intervenção da própria vida, com a chegada à ilha de seu irmão, que ela poderá salvar, acabará por chegar a uma evidente “reinvenção” da vontade dos deuses. Decidindo que pode decidir não matar, não matar os estrangeiros, inventa uma nova Diana à sua imagem, e percebendo que pode negar o castigo das fúrias, pode salvar o seu irmão, ou, melhor, percebendo que a sua fidelidade à vida a tanto a obriga, começa por entender, com Pílades, que são os homens que não conhecem os deuses (esses que escrevem direito por linhas tortas), e que os deuses precisam dos homens para defenderem a vida contra a morte. Aprende a confiar na vida. Esse o primeiro estádio a que o seu impulso vital a conduz. Mas nova etapa surge no seu percurso. Ultrapassada essa dicotomia, nova questão se lhe põe. E já é só humana, levantada pela fidelidade à verdade de si própria, ao seu afecto por Toas, que é por excelência masculino, personificação por excelência da espada, do poder de matar, de uma vontade de se substituir aos deuses, já identificados como espírito de vida. E mais uma vez não duvidando da vida, descobre que é Toas quem luta contra si próprio, contra a sua natureza, e por intervenção sua, fá-lo reconhecer-se, e conhecer o seu amor como maior que a razão absurda (política?) para matar. Transforma-se ela própria em deusa (afinal ninguém entendera o oráculo porque a imagem da deusa que regressando à Grécia salvaria Orestes era Ifigénia…) e no momento em que Toas cede à vida, ao futuro, abdicando de matar e aceitando tão só a morte natural a que a velhice conduz, tratará como um deus quem viver nessa desejada terra da bondade. Faz finalmente a síntese e a dissolução de todas as oposições numa só verdade: a verdade da fidelidade à vida, fidelidade racional e irracional, tão sentida quanto pensada, tão humana como divina. Chega ao conhecimento da realidade e da sua imanente transcendência. E só uma mulher abdicaria assim da espada. Faça-se em mim a vontade da vida. Que é andrógina. Fusão dos dois princípios."




Duas das últimas adaptações explícitas de tragédias gregas que tinha visto foram os filmes Noite Escura e Mal Nascida, de João Canijo, que muito para lá do fio da navalha nos mostram algum mundo português de Portugal: cru, sujo, violento, analfabeto, racista, xenófobo, machista, criminoso e inocente.

Há ali, no fundo do poço, uma luta constante pela sobrevivência e pela esperança, por uma ideia, de que falam Rui Chafes, Lobo Antunes e Luís Miguel Cintra, por exemplo, de uma ideia universal, que se fixe e que se fosse possível não se pudesse voltar a violar, de adquirido; na lama ou no lixo o nascimento de uma flor, como em Fellini.

Beatriz Batarda, no Noite Escura, a limpar o chão cheio de sangue da casa de banho do bar de alterne, e, agora, na Ifigénia na Táurida, uma nova Diana, nesse teatro da cornucópia onde, sempre que vou, vejo actores em luta por essas ideias, imortais e universais, dando corpo a esse "o actor é um pensamento em cena", lutando e sofrendo e gemendo e chorando e gritando como se ali, naquele momento, naquela tensão, se decidisse tudo. E decide, sabemos.

É por isso que ali aplaudo sempre de pé, satisfeito e consumido.

posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, outubro 26, 2009

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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