segunda-feira, outubro 12, 2009
E NÃO ANDAM POR AÍ,
À NOSSA PROCURA?
Jorge Silva Melo
“E eis que surge uma família em luto, com rostos esmaecidos e como que vindos de um sonho. São as Seis Personagens que procuram Autor e que tentam viver. Querem ser mergulhadas num drama. São mais reais do que tu, encenador, trapalhão imundo. São reais e demonstram-no…”
Foi com esta declaração que Antonin Artaud saudou a estreia em Paris (em 1923, pelos Pitoeff) deste texto que rasgou as quatro paredes falsas do teatro como, ao mesmo tempo, entre o Cais do Sodré e Campo de Ourique, passando pelo copo de três no Val do-Rio e olhando os guindastes no Porto de Lisboa, Pessoa rompia a identidade da voz poética.
E a dúvida ficou, o chão que treme por baixo dos pés dos actores, a necessidade de contar uma história, a impossibilidade de a contar na forma que tínhamos para a moldar, já que a vida é maior do que a escrita, a realidade impede a forma, tudo explode e o homem se dividiu, estilhaçado – pois o que em nós sente, está pensando... – o passado irrompe no presente, amaldiçoando-o, retirando-lhe tapetes e tábuas...
O que foi este veneno que, desde aqueles anos 20 de entre as duas Guerras, nos ministrou Pirandello, o siciliano, como se fosse um licor apenas, o que foi esta dúvida, que não nos livramos dela, e com ela entramos na “era da suspeita”?
Que maldição, que poesia instalou ele nos velhos palcos do teatro (e ainda os há, velhos palcos?) para, pela derradeira (e sempre recomeçada) vez, podermos convocar fantasmas e melodramas, dramalhões impossíveis e vícios secretos, para vermos agonizar, entre gemidos, a odiada burguesia, a família sufocante, estrangulada, enredada na sua esterilidade?
Confesso: Seis Personagens à Procura de Autor é uma das muito poucas peças que, tendo já visto feitas e extraordinariamente (a encenação de Klaus Michael Grüber de 1981, na Freie Volksbuhne de Berlim, com cenografia de Titina Maselli, será um dos três, quatro mais belos espectáculos que vi), sempre quis fazer. Pois sempre me quis meter neste novelo, enredar-me nesta cama de gato.
Pirandello conta que tudo começou em 1910, quando lhe bateu à porta da fantasia a tragédia destas personagens. E pensou contar-lhes a história, escrever um romance. Em 1917, ainda não a consegue formalizar. E escreve numa carta “Seis Personagens, metidas num drama tremendo que chegam até mim para eu as meter num romance. São uma obsessão. E eu digo-lhes que não, que não quero saber delas. E elas que me mostram todas as suas feridas, e eu que as ponho na rua.” Em 1911, num conto, Tragédia de uma personagem, chega-se ao Autor uma delas, o Doutor Fileno. Que lhe pede que escreva a sua queda, que lhe dê vida. E usa argumentação que há-de surgir na boca do Pai, quando Pirandello, em 1921, ousa finalmente escrever mas agora para um palco, a impossível tragédia. E não há-de parar aí; em 1924, escreve um ensaio-prefácio onde revela o processo de criação; e quando dirige a peça, em 1925, para o seu Teatro d´Arte (e para Marta Abba, a actriz), reescreve o texto inserindo muitas das alterações, sugestões, variantes que vira nas produções que entretanto se fizeram da peça pelo mundo inteiro (e principalmente em Paris, 1923 – pelos Pitoeff – e Berlim, 1924 – por Max Rheinhardt).
E nós voltamos assim com ela aos anos em que o positivismo começou a tremer, o naturalismo se pôs a andar às arrecuas. Com o jovem Brecht que sempre perseguiremos, com este funâmbulo Pirandello de todos os arabescos, com tantos que nos lançaram o teatro para dentro destes nossos anos inseguros. Sem nos amparar na ilusão, sem nos acomodar ao já visto.
É bom, de vez em quando, voltar atrás.
E eu ando encantado, neste 2009, a reencontrar Pirandello, a perder-me nos seus silogismos, fulgurantes uns, apenas decorativos outros, farto que ando de me dizerem, nestes anos de recessão estética, que o que devemos é contar histórias daquelas com meio, fim e contracena, que é possível, voltar a fazer retratos e paisagens, agradar ao mercado, que no teatro devemos televisão, restaurando aquele mundo (injusto, não o esqueçamos) que há tempos já foi abaixo.
É com espanto que Pirandello vê o mundo cair, a burguesia e a sua imagem: e nada pode fazer a não ser desconfiar.
E que fazer com esta dúvida, que fazer? Talvez seja a mais duradoura das questões que o pirotécnico Pirandello ainda nos lança, 90 anos depois, casquinando: que fazer com a dor, a tremenda dor da existência?
Talvez por isso, as Seis Personagens andem ainda por aí, à procura. À nossa procura?
E já se sabe que não há escrita que lhes valha."
SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL
SEIS PERSONAGENS
À PROCURA DE AUTOR
ARTISTAS UNIDOS
SET ~ OUT O9
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, outubro 12, 2009