A montanha mágica

quarta-feira, outubro 28, 2009

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fotograma de Casa de Lava, de Pedro Costa



Li, num destes dias, uma frase que dizia: "Le Festin de Babette de Karen Blixen fait réfléchir le philosophe sur l'état de l'art aujourd'hui, pour mieux en dénoncer les limites : une botte vaut Shakespeare, tout se vaut, tout est culture. Notre monde ne supporte plus les héritiers ni l'idée d'une classe cultivée, pourtant absolument nécessaire pour que l'art puisse vivre." (2ª parte)


"À palavra «alimento» os convidados, de cabeças curvadas sobre as mãos postas, lembraram-se de que tinham prometido nada dizer sobre tal assunto e em seus corações renovaram a promessa: nem sequer se permitiriam um pensamento! Estavam ali para jantar; pois também se reuniram para jantar os convidados das bodas de Caná. E a Graça quisera manifestar-se ali, no próprio vinho, tão completamente como noutro lugar da Terra.
O ajudante de Babette encheu um pequeno copo à frente de cada convidado. Eles levaram o copinho aos lábios, gravemente, em confirmação dos seus votos.
O General Loewnhielm, numa certa desconfiança daquele vinho, provou-o, surpreendeu-se, ergueu o copo à altura do nariz, depois à altura dos olhos, e pousou-o, confundido. «Isto é estranhíssimo!», pensou ele. «Amontillado! E o melhor amontillado que eu já bebi.» Momentos depois, como para testar os seus sentidos, provou uma colherzinha de sopa; provou segunda vez, pousou a colher. «Que coisa extraordinária!», disse para consigo. «Porque eu só posso estar a comer sopa de tartaruga. E que óptima sopa de tartaruga!» O General, tomado de estranho pânico, esvaziou o copo.
Em Berlevaag não era costume conversar-se muito à mesa. Mas nesta noite as línguas desatavam-se. Um velho Irmão contou a história do seu primeiro encontro com o Deão. Outro passou em revista o sermão de há sessenta anos que o tinha convertido. Uma velha, aquela a quem Martine confiara primeiro a sua angústia, recordou aos amigos que deveriam estar sempre prontos a aliviar os seus Irmãos e Irmãs dos sofrimentos que os atribulassem.
O General Loewnhielm, que iria dominar todas as conversas nesse jantar, contou que os sermões do Deão eram uma das leituras favoritas da rainha. Mas, quando um novo prato foi servido, calou-se. «Incrível!», disse para consigo. «São blinis Demidoff!» Olhou em volta para os convivas. Todos comiam sossegadamente os seus blinis Demidoff sem revelar qualquer surpresa, qualquer aprovação, como se os tivessem comido todos os dias daqueles trinta anos.
Uma Irmã, no outro lado da mesa, iniciou novo tema: os estranhos acontecimentos que tiveram lugar enquanto o Deão estava ainda entre os seus filhos, a que ela se iria atrever a dar o nome de milagres. Lembravam-se de um certo Natal, perguntou ela, em que o Deão prometera fazer um sermão na aldeia do outro lado do fiorde? Durante quinze dias o tempo esteve tão mau que nem o capitão nem pescador se arriscaram a fazer a travessia. Os aldeões já perdiam a esperança, mas o Deão dissera que, se não houvesse barco para o levar, ele os visitaria caminhando sobre as águas. E, milagre!, três dias antes do Natal a tempestade amainou, veio uma forte geada, e o fiorde gelou de uma à outra margem --e isto foi coisa que não havia memória na região!
O rapaz voltou a encher os copos. Desta vez os Irmãos e Irmãs perceberam que não era vinho o que se lhes dava a beber, porque borbulhava. Devia ser uma espécie de limonada. A limonada estava em harmonia com a exultação de todos e parecia erguê-los a regiões mais altas e mais puras.
O General Loewnhielm pousou o copo, voltou-se para os eu vizinho da direita e disse:
- Mas isto é um Veuve Cliquot de 1860.
O vizinho olhou-o com bonomia, sorriu e respondeu com uma qualquer observação sobre o tempo que fazia.
O ajudante de Babette tinha as suas ordens; servia a Congregação penas uma vez, mas ao General enchia-lhe o copo assim que estivesse vazio. O General esvaziava o seu copo repetidamente. Pois como há-de um homem de juízo comportar-se quando não pode confiar nos seu sentidos? Antes embriagado que louco.
Era frequente os homens e mulheres de Berlevaag sentirem-se um tanto pesados no decurso de uma boa refeição. Hoje não era assim. Os convivas sentiam o corpo e o coração mais leves à medida que o jantar avançava. Já não precisavam de recordar mutuamente a sua promessa. Só quando se esquecia e renunciava firmemente a todo e qualquer pensamento sobre os prazeres da mesa --compreendiam-no agora-- se podia enfim comer e beber como a lei manda.
O General Loewnhielm pousou o talher, ficou imóvel. Mais uma vez se sentiu transportado a esse jantar em Paris de que se lembrara no trenó. Um prato incrivelmente recherché e saboroso fora ali servido; perguntara o nome desse prato a um conviva, o Coronel Galliffet, e o Coronel, sorrindo, respondera-lhe que se chamava cailles em sarcophage. Mais lhe disse ainda que o prato havia sido inventado pelo chefe de cozinha desse mesmo café onde se encontravam, que tinha fama, em toda a cidade de Paris, de ser o maior génio culinário desse tempo, e que era, pasme-se uma mulher! «E realmente», disse o Coronel Galliffet, «esta mulher faz de um jantar no Café Anglais um verdadeiro romance de amor, dessa nobre e romãntica ordem em que se confundem os apetites e a saciedade tanto do corpo como do espírito! Já um dia me bati em duelo por causa de uma bela dama. Por nenhuma outra mulher de Paris, meu jovem amigo, eu verteria agora mais alegremente o meu sangue!» O General Loewnhielm voltou-se para o seu vizinho da esquerda e disse:
- Mas isto são cailles en sarcophage!
O vizinho, que estivera ouvindo a descrição de um milagre, encarou-o com um olhar ausente, assentiu num aceno e retorquiu:
- Sim, sim, claro. E que outra coisa poderia ser?
A conversa à mesa divergiu dos milagres do Mestre para os milagres menores de bondade e caridade operados dia a dia por suas filhas. O velho Irmão que primeiro entoara o hino citou a máxima do Deão: «Da nossa vida na Terra só poderemos levar aquilo que dermos!» Os convivas sorriram: que sumptuosidades iriam conhecer no outro mundo estas donzelas pobres e simples!
O General Loewnhielm já não se maravilhava de nada. Quando, momentos depois, viu as uvas, os pêssegos e os figos frescos diante de si, riu para o conviva do outro lado da mesa e observou:
- Que belas uvas!
O conviva replicou:
- E chegados a vale do Escol cortaram um ramo de videira com um cacho de uvas, que dois homens transportavam numa vara.
Então o General sentiu que era tempo de fazer um discurso. Levantou-se, empertigou-se.
Mais ninguém a essa mesa se tinha levantado para falar. Os velhos ergueram os olhos para o seu rosto em grande e feliz expectativa. Estavam habituados a ver os marinheiros e os vagabundos mortos de bêbados com o espesso gin da região, mas não reconheciam num guerreiro e cortesão a embriaguês produzida pelo mais nobre vinho do mundo."


Karen Blixen (trad. Maria Jorge de Freitas), A Festa de Babette e outras histórias do destino, Edições Asa, 1995.

posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, outubro 28, 2009

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São horas, Senhor. O Verão alongou-se muito.
Pousa sobre os relógios de sol as tuas sombras
E larga os ventos por sobre as campinas.


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