A montanha mágica

terça-feira, setembro 29, 2009

Os Detectives Selvagens: pp. 494-498

página 496, linha 24





fotograma de The Limits of Control, de Jim Jarmusch




Aqui fica o excerto referido no post anterior, é a vida.


"E, quando perguntara a Cesárea para que precisava de uma navalha, ela respondera-lhe que a tinham ameaçado de morte, e depois rira-se, um riso, recorda a professora, que trespassara as paredes do quarto e as escadas da casa até chegar à rua, onde morrera. Nesse momento, parecera à professora que caía sobre a Rua Rubén Darío um silêncio repentino, perfeitamente orquestrado, o volume dos rádios baixara, o vozear dos vivos apagara-se de repente, e apenas ficara a voz de Cesárea. E então a professora vira, ou parecera-lhe ver, uma planta da fábrica de conservas coladas na parede. E, enquanto ouvia as palavras que Cesárea lhe tinha a dizer, umas palavras que não vacilavam mas que também não se atropelavam, umas palavras que a professora prefere esquecer, mas que se lembra perfeitamente e que até compreende, agora compreende, os seus olhos percorreram a planta da fábrica de conservas, uma planta que Cesárea tinha desenhado, em algumas zonas com grande cuidado nos detalhes e noutras de forma esquemática ou vaga, com anotações nas margens, embora a letra às vezes fosse ilegível e outras estivesse em maiúsculas, e até entre pontos de exclamação, como se Cesárea, no seu mapa feito à mão, se estivesse a reconhecer no seu próprio trabalho, ou estivesse a reconhecer facetas que até então ignorava. E então a professora tivera que se sentar, embora não o quisesse fazer, na beira da cama, e tivera que fechar os olhos e ouvir as palavras de Cesárea. E mesmo, embora se sentisse cada vez pior, tivera a coragem de lhe perguntar por que razão tinha desenhado a planta da fábrica. E Cesária dissera algo sobre os tempos que se avizinhavam, se bem que a professora tivesse achado que, se Cesárea se tinha entretido a confeccionar aquela planta sem sentido, não fosse por outra razão senão pela solidão em que vivia. Porém Cesárea falara dos tempos que haviam de vir, e a professora, para mudar de assunto, perguntara-lhe que tempos seriam esses e quando viriam. E Cesárea dissera uma data: por volta do ano 2600. Dois mil seiscentos e picos. E depois, perante o riso que provocara na professora uma data tão peregrina, risinho sufocado que mal se ouvira, Cesárea voltara a rir-se, embora desta vez o estrondo do seu riso se tivesse mantido dentro dos limites do quarto.
A partir desse momento, recorda a professora, a tensão que flutuava no quarto de Cesárea, ou a de que ela se apercebia, fora baixando até se diluir por completo. Depois fora-se embora, e não voltara a ver Cesárea até quianze dias depois. Nessa ocasião Cesárea dissera-lhe que se ia embora de Santa Teresa."


Roberto Bolaño (trad. Miranda das Neves), Detectives Selvagens, Teorema, 2008.


posted by Luís Miguel Dias terça-feira, setembro 29, 2009

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