sexta-feira, setembro 18, 2009
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fotograma de Casa de Lava, de Pedro Costa
Li, num destes dias, uma frase que dizia: "Le Festin de Babette de Karen Blixen fait réfléchir le philosophe sur l'état de l'art aujourd'hui, pour mieux en dénoncer les limites : une botte vaut Shakespeare, tout se vaut, tout est culture. Notre monde ne supporte plus les héritiers ni l'idée d'une classe cultivée, pourtant absolument nécessaire pour que l'art puisse vivre."
"Na Noruega há um fiorde --um apertado e longo braço de mar cavando as altas montanhas-- chamado o Fiorde de Berlevaag. No sopé das montanhas, a cidadezinha de Berlevaag mais parece um brinquedo com casas miniaturais pintadas de cinzento, de amarelo, de rosa e tantas outras cores.
Há sessenta e cinco anos, duas senhoras de meia-idade viviam numa dessas casas amarelas. Outras senhoras, nesse tempo, usavam tournure e as duas irmãs bem podiam tê-la usado também, e com a mesma graciosidade, pois eram altas esbeltas. Mas nunca seguiram os ditames da moda: sempre se acostumaram a vestir, com modéstia, de preto ou de cinzento. Receberam elas nomes de Martine e Philippa, em homenagem a Martinho Lutero e a seu amigo Filipe Melanchton. Eram filhas de um deão, um profeta, o fundador de uma facção ou seita religiosa conhecida e respeitada em toda a Noruega. Os seus membros renunciavam aos prazeres deste mundo, pois a Terra, e tudo o que sobre ela existe, era quase uma ilusão e a realidade verdadeira era a Nova Jerusalém por que ansiavam. Desses lábios não saía uma inocente blasfémia; todos os seus colóquios não iam além de um «oh, sim», «oh, não» e dos nomes de Irmão e Irmã que a Congregação se davam.
O Deão casara tarde e, no tempo que esta história principia, tinha já morrido há muito. Os seus discípulos eram, a cada novo ano, mais escassos; estavam, a cada ano novo, mais velhos ou mais carecas ou mais surdos; vinham-se tornando até ranzinzas, quezilentos, provocando assim pequenos cismas que, triste coisa, abalavam a Congregação. Mas ainda se juntavam para ler e interpretar a Palavra. Todos conheciam as filhas do Deão desde pequenas; para eles, as duas irmãs continuavam a ser meninas, cara aos seus corações por serem filhas de tal pai. Portas adentro da casa amarela, sentiam que o espírito do Mestre estava com eles; aqui se sentiam bem, aqui tinham paz.
Estas duas senhoras tinham uma criada francesa para todo o serviço, Babette.
Estranho arranjo na casa de duas puritanas de uma cidadezinha da Noruega; estranho e quiçá duvidoso. Os habitantes de Berlevaag, porém, achavam-lhe justificação na índole bondosa e pia das irmãs. Porque as filhas do Deão consagravam os dias e os parcos rendimentos a obras de caridade; à sua porta não batia em vão o infeliz ou o necessitado. E quando Babette veio bater àquela porta, havia doze anos já, era uma fugitiva, uma desamparada, a quem a dor e o medo haviam quase enlouquecido.
Mas a verdadeira razão da presença de Babette em casa das duas irmãs havia de achar-se em tempo mais recuado e em recessos mais íntimos do coração humano."
Karen Blixen (trad. Maria Jorge de Freitas), A Festa de Babette e outras histórias do destino, Edições Asa, 1995.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, setembro 18, 2009