segunda-feira, agosto 03, 2009
"Para ser transmitida pela voz, como para ser entendida, a poesia exige uma atenção religiosa. Entre o leitor e o auditório deve estabelecer-se uma conivência íntima, sem a qual as eléctricas comunicações dos sentimentos deixam de ter sentido. Se esta coesão entre as almas falhar, o poeta sente-se como um anjo tentando cantar um hino celeste no meio dos dichotes do inferno. Ora, na esfera em que se desenvolvem as suas faculdades, os homens inteligentes possuem a visão circunspecta do caracol, o faro do cão e o ouvido da toupeira; vêem, cheiram, ouvem tudo à sua volta. O músico e o poeta sabem-se tão prontamente admirados ou incompreendidos quanto uma planta emurchece ou revive numa atmosfera acolhedora ou repulsiva. Os murmúrios dos homens que só ali tinham vindo para acompanhar as mulheres, e que conversavam sobre negócios, soavam ao ouvido de Lucien através das leis desta acústica especial; da mesma maneira que via os hiatos simpáticos de algumas bocas violentamente entreabertas e cujos dentes escarneciam dele. Quando, tal como a pomba do dilúvio, procurava um recanto favorável onde pousar o olhar, encontrava os olhos impacientes de pessoas que obviamente haviam aguardado aquela reunião para se interrogar sobre alguns interesses positivos. Com excepção de Laure de Rastignac, de dois ou três jovens e do bispo, todos os ouvintes se entediavam. De facto, quem compreende a poesia procura desenvolver na alma o que o autor introduzir em germe nos seus versos; mas aqueles ouvintes gelados, em vez de aspirarem a alma do poeta, nem sequer ouviam as suas intonações. Lucien sentiu, pois, um desalento tão profundo que um suor frio lhe molhou a camisa. Um olhar inflamado de Louise, para quem se voltara, incutiu nele a coragem necessária para terminar; mas no seu coração de poeta sangravam muitas feridas.
- Parece-lhe divertido, Fifine? --perguntou à vizinha a seca Lili, porventura na esperança de algum incentivo.
- Não me peça a minha opinião, minha querida, os meus olhos fecham-se mal ouço ler.
- Espero que Naïs não nos ofereça muitas vezes versos ao serão --declarou Francis. - Quando ouço ler depois do jantar, a atenção que sou obrigado a prestar perturba-me a digestão.
- Pobre querido --disse Zéphirine em voz baixa--, beba um copo de água com açúcar.
- Uma bela declamação --sentenciou Alexandre--, mas prefiro o whist."
Honoré de Balzac (trad. Isabel St. Aubyn), Ilusões Perdidas, Publicações Dom Quixote, 2009.
posted by Luís Miguel Dias segunda-feira, agosto 03, 2009