sexta-feira, julho 17, 2009
Ilusões Perdidas (2)
fotograma de Deadwood
"A imitação das ideias tacanhas e dos modos mesquinhos atinge a pessoa mais distinta. Assim perecem homens que nasceram grandes, mulheres que, educadas pelos ensinamentos da sociedade e formadas por espíritos superiores, podiam ter sido encantadoras. A senhora de Bargeton entusiasmava-se a propósito de uma bagatela, sem distinguir a poesia pessoal da poesia pública. Na verdade, há sensações incompreensíveis que devemos guardar para nós. É sabido que o pôr do Sol é um grande poema, mas uma mulher não se tornará ridícula se o descrever com grandes palavras perante gente vulgar? Há volúpias que só podem saborear-se a dois, poeta a poeta, coração a coração. Ela tinha o defeito de empregar esses longos discursos, recheados de palavras enfáticas, tão engenhosamente chamadas nacos de prosa na linguagem dos jornalistas que todas as manhãs enchem os leitores de lugares-comuns bastante indigestos, mas que estes, ainda assim, ingerem. Distribuía de forma descomedida superlativos que sobrecarregavam as conversas em que as coisas mais insignificantes adquiriam proporções gigantescas. Nessa época, a senhora de Bargeton começava a tudo tipificar, individualizar, sintetizar, dramatizar, superlativar, analisar, poetizar, prosaizar, colossificar, angelizar, neologizar e tragificar, pois é preciso violar a língua, de vez em quando, a fim de enveredar pelos novos caminhos que algumas mulheres partilham. De resto, o seu espírito inflamava-se tanto quanto a linguagem. Trazia o ditirambo no coração e na ponta da língua. Palpitava, desfalecia, deixava-se entusiasmar por qualquer acontecimento: pela devoção de uma apagada freira e pela execução dos irmãos Faucher, por Ipsiboé (1) do visconde d`Arlin-court e por Anaconda de Lewis (2), pela evasão de Lavalette e por uma das suas amigas que conseguira afugentar os ladrões fazendo voz grossa. Para ela, tudo era sublime, extraordinário, estranho, divino, maravilhoso. Animava-se, irritava-se, deixava-se abater, recompunha-se, voltava a prostrar-se, olhava ora para o céu ora para a terra; os seus olhos enchiam-se de lágrimas. Desgastava a vida em perpétuas admirações e consumia-se em estranhos desdéns. Imaginava o paxá de Janina, gostaria de lutar contra ele no seu serralho e descobria algo de grandioso em ser cosida num saco e lançada à água. Invejava Lady Esther Stanhope, essa escritora pedante do deserto. Sentia vontade de ser irmã de Sainte-Camille e de ir morrer de febre amarela em Barcelona, a tratar de doentes: esse era um grande, um nobre destino! Enfim, sentia-se sedenta de tudo o que não fazia parte da monotonia da sua vida, rodeada de verdura. Adorava Lord Byron, Jean-Jacques Rousseau, todas as experiências poéticas e dramáticas. Acolhia em pranto todas as desgraças e entre risos todas as vitórias. Simpatizava com Napoleão derrotado, simpatizava com Mehemet Ali massacrando os tiranos do Egipto. Finalmente, envolvia numa auréola as pessoas geniais e acreditava que viviam de perfumes e de luz.
1) Charles Victor Prévot, visconde d`Arlincourt - Romacista, poeta e dramaturgo autor de numerosas obras, entre as quais esta tentativa falhada de romance negro, Ipsiboé, mas que só foi salvo do anonimato pela obra Le Solitaire, um dos grandes sucessos romanescos do início do século XIX, do qual se falará mais adiante nesta obra. (N. da T.)
2) Matthew Gregory Lewis (1775-1818) - Escritor britânico que lançou a moda do romance negro. (N. da T.)"
Honoré de Balzac (trad. Isabel St. Aubyn), Ilusões Perdidas, Publicações Dom Quixote, 2009.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, julho 17, 2009