quarta-feira, julho 08, 2009
"Quando o acaso colocou frente a frente os dois colegas de escola, Lucien, cansado de viver na miséria, preparava-se para fazer uma dessas opções extremas pelas quais os jovens se decidem aos vinte anos. Os quarenta francos por mês que David ofereceu generosamente a Lucien, propondo-se ensinar-lhe o ofício de proto, embora um proto lhe fosse perfeitamente inútil, salvou Lucien do desespero. Os laços desta amizade de colegas de escola assim reatados estreitaram-se rapidamente devido às semelhanças entre os destinos e às diferenças entre os temperamentos dos dois rapazes. Com o espírito fortalecido por vários dons, ambos possuíam a elevada inteligência que coloca o homem ao nível de todas as sumidades, mas sentiam-se relegados para a base da sociedade. Esta injustiça do destino formou um elo poderoso. Além disso, ambos haviam chegado à poesia por caminhos diferentes. Se bem que propenso às mais elevadas especulações das ciências naturais, Lucien voltara-se com ardor para a glória literária; enquanto David, que o temperamento meditativo predispunha para a poesia, se inclinava, por gosto, para as ciências exactas. Esta interposição de vocações criou uma espécie de fraternidade espiritual. Lucien apressou-se a transmitir a David as elevadas ideias que herdara do pai quanto às aplicações da Ciência à Indústria, e David apontou a Lucien as novas vias da literatura pelas quais teria de enveredar se quisesse fazer nome e fortuna. A amizade entre os dois jovens tornou-se em poucos dias uma dessas paixões só possíveis no fim da adolescência. David conheceu a bonita Ève e apaixonou-se por ela, como se apaixonam os espíritos melancólicos e meditativos. O Et nunc et semper et in secula seculorum da liturgia é a divisa desses sublimes poetas desconhecidos cujas obras consistem em magníficas epopeias geradas e perdidas entre dois corações! Quando o apaixonado penetrou no segredo das expectativas que a mãe e a irmã de Lucien acalentavam naquela bela fronte de poeta, quando se apercebeu da sua cega devoção, pareceu-lhe consolador aproximar-se da sua amada, partilhando com ela imolações e esperanças. Lucien foi, portanto, para David, um irmão de eleição. Como os ultras que queriam ser mais reslistas do que o rei, David ultrapassou a fé que a mãe e a irmã depositavam no seu génio e acarinhou-o como uma mãe acarinha um filho. Durante uma dessas conversas em que, pressionados pela falta de dinheiro que lhes atava as mãos, remoíam, como todos os jovens, a maneira de realizar uma grande fortuna agitando todas as árvores já despojadas pelos seus predecessores sem conseguir obter frutos, Lucien lembrou-se de duas ideias imaginadas pelo pai. O senhor Chardon havia falado de reduzir para metade o preço do açucar pela introdução de um novo agente químico, e de baixar de igual modo o preço do papel, mandando vir da América certas matérias vegetais análogas àquelas de que se servem os Chineses e que se podiam obter a baixo preço. David, que já conhecia a importância deste problema, discutido na casa Didot, apoderou-se da ideia, vendo nela uma maneira de fazer fortuna, e considerou Lucien um benfeitor em relação ao qual se sentiria para sempre devedor.
Fácil será adivinhar como a maneira de pensar dominante dos dois amigos, e a sua vida interior, os tornavam incapazes de gerir uma tipografia. Em vez de render quinze a vinte mil francos, como a dos irmãos Cointet, impressores-livreiros do episcopado, proprietários do Courier de la Charente, agora o único jornal do departamento, a tipografia de Séchard filho produzia apenas trezentos francos por mês, dos quais tinha de retirar a remuneração do proto, a soldada de Marion, os impostos, o aluguer; o que reduzia David a uma centena de francos por mês. Homens activos e industriosos teriam renovado os caracteres, comprado prelos de ferro, teriam procurado no comércio de livros parisiense obras susceptíveis de serem impressas a baixo preço: mas o proprietário e o proto, absorvidos pelos elaborados trabalhos da inteligência, contentavam-se com as obras fornecidas pelos seus últimos clientes. Os irmãos Cointet haviam acabado por compreender a personalidade e os hábitos de David e já não o caluniavam; pelo contrário, uma política de bom senso aconselhava-os a deixar viver a tipografia, mantendo-a numa honrada mediocridade, a fim de que não caísse nas mãos de um qualquer temível antagonista; eles próprios se encarregavam de lhes enviar a impressão dos trabalhos mais triviais e ligeiros. Assim, sem o saber, David Séchard só existia, comercialmente falando, em virtude de um hábil cálculo dos seus concorrentes. Satisfeitos com aquilo a que chamavam o seu capricho, os Cointet usavam para com ele de uma aparente rectidão e lealdade; mas, na realidade, agiam como a administração de uma empresa de transportes quando simula a existência de concorrência a fim de evitar o seu real aparecimento."
Honoré de Balzac (trad. Isabel St. Aubyn), Ilusões Perdidas, Publicações Dom Quixote, 2009.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, julho 08, 2009