quinta-feira, julho 30, 2009
.A pior raça é de quem vive atrás da coerência
vê na verdade matemática e no céu ciência
Excertos de João Bonifácio:
"Tal como "Nº 1", "Muda que Muda" tem duas ou três canções que ainda não estão acabadas. Tal como "Nº 1", "Muda que Muda" tem uma mão cheia de grandes canções, só que com uma diferença: enquanto as do primeiro disco demoravam a desvelar-se na sua imensa tristeza, estas são imediatas e compulsivas.
Mas "Muda que Muda" tem mais que isso, a começar por um humor muito próprio, ambíguo, visível logo na capa, uma espécie de gozo aos Michaeis Carreiras e Julios Iglesias. (E é por coisas destas, por este humor que não se esforça minimamente por mostrar aos outros que é efectivamente humor, que Coração perde muitos ouvintes dentro daquela classe de aspirantes a intelectuais de alpaca que ainda tem algumas dificuldades de interpretação. Pura e simplesmente essa gente não sabe onde encaixar Coração.) O humor continua na foto do libreto que apresenta Coração de calções de banho betos, tronco nu peludo e guitarra acústica, e vai ao ponto de roubar o ícone do casalinho dançante dos discos de Leonard Cohen, passando pelos falsetes e uhs e ahs que povoam este disco estival. Mas o que importa são as canções e cinco em nove são extraordinárias - sendo que quatro estão logo a abrir. A "Canção para ficar" segue-se "Passo a passo", que é Gainsbourg lo-fi: uma guitarra acústica, um órgãozinho ié-ié, aquela vozinha melosa a anunciar que "Vai ser um dia de calor", e depois o genial truque: piano, órgãos (Moog e Hammond) e uma voz desafinada de menininha coquete e virginal. Aquela voz feminina no refrão é uma lição pop: menos é mais, mal feito é bem feito, no erro é que se acerta. Canção pop perfeita em qualquer parte do mundo civilizado, e até mesmo em sítios suspeitos, como Lisboa.
Canção 3, homónima ao disco: abre com guitarrinha picada, percussão ao trambolhão e uma óptima melodia de harmónica no refrão. Depois há trompetes e coros e uma bela melodia em ascensão. João canta: "A pior raça é de quem vive atrás da coerência/ vê na verdade matemática e no céu ciência". E depois a charanga torna-se por quatro compassos homenagem ao "Road to Nowhere" dos Talking Heads e - guitarras, harmónica, coros, palmas, gritos de "hey", trompete melosa, tudo e todos numa festa magnífica - canta-se "Vou a caminho de nada, entrem comigo".
"Abalada Farewell" é o fim de quarteto de ouro, uma balada folk com Fender Rhodes que se alteia num belíssimo refrão debruado a guitarra slide. A partir daqui o disco só volta a este nível magnífico em "Cadeiras ocidentais", luso-honky-tonk servido por banjo, mais órgãos retro e uma grande interpretação de voz que depois abre num estupendo refrão cheio de coros e mudanças de ritmo. De entre as canções que não são singles óbvios, destaque para "O avesso do começo", espécie de western para assobio, harmónico e falsete. A "Sofia" falta definição melódica e a muito, muito bela "Istambul ou Budapeste" (que lembra Chico Buarque) tem o defeito de arrancar abaixo do que o resto da canção vem a ser. Mas o que interessa é que neste disco com cheiro a maresia, para ser ouvido com Martinis numa mão e uma garota na outra, entre meloas e marisco, descobrimos um Gainsbourg da Arrábida, a resposta portuguesa ao tédio burguês à francesa, as canções que vão ganhar os próximos Festivais da Eurovisão ou a banda-sonora do próximo Wes Anderson. Ao leitor pede-se pouca poeira na cabeça. A João Coração peçam-lhe tudo."
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, julho 30, 2009