quarta-feira, junho 03, 2009
Um dia destes sentei-me num sofá algures para um café e ao meu alcance estava uma mesinha com algumas revistas em cima e ao folhear uma ao melhor estilo no consultório do dentista dou de caras cheio de surpresa com "A sombra", de José Tolentino Mendonça.
Aqui fica.
"A sombra
«Quando a forma se desloca, não nasce uma forma
(nova) mas uma sombra»
-“Le vrai classique du vide parfait “, Lieu Tseu
Por volta das 15h40, do dia 25 de Fevereiro, foi contactado o posto policial de Vieira do Minho, alertando para o desaparecimento de uma cliente na Pousada de São Bento, que encima a Barragem da Caniçada, em pleno parque do Gerês. Dois agentes deslocaram-se ao local para inteirar-se da ocorrência. O responsável da Pousada, evidentemente perturbado pela situação, conduziu-os ao quarto que fora ocupado pela desaparecida. Os agentes policiais tomaram a iniciativa de selar o armário onde estava uma mala e alguma roupa, e inventariaram outros pertences dispersos: na mesa de cabeceira - um despertador, um caderno de capa amarela, um estojo com medicamentos; dispostos na escrivaninha - dois livros de botânica, uma antologia de escritos místicos medievais e o “Livro taoísta das transformações”; sobre o leito, um sobrescrito fechado, no exterior do qual estava escrito: “a mon seul désir”.
Já no gabinete do responsável, os agentes informaram-se, com o detalhe possível, da identidade da desaparecida. O seu nome, L.Z.. Profissão, escritora. Teria uns 60, 62 anos de idade. Não era a primeira vez que se hospedava naquela Pousada. Interessava-se muito pelos arbustos e flores do jardim. As suas conversas com o pessoal de serviço versavam inevitavelmente esse motivo. Causava espanto, para não dizer inquietação, o conhecimento que manifestava. Era capaz de listar, de memória, os vários canteiros do jardim, feito em socalcos para aproveitar o deslize suave da ravina, que dá para o Cávado: Alpínia, Andríala, Agrião da Rocha, Liana Aurora, Planta da seda, Brunfélsia, Piracanto… Passava horas nesse jardim e na mata das traseiras. Estava hospedada há quinze dias. O pessoal habituara-se à sua presença, de modo que ela era menos notada. Só às refeições voltava como que a ganhar nitidez. Mas desde a véspera que ninguém se recorda dela. E as versões diferem quanto ao último momento em que teria sido vista. Sensivelmente à mesma hora, a cozinheira garante que a viu esgueirar-se para a mata; o recepcionista pensa tê-la visto parada, junto da grande lareira, a olhar fixamente a tapaçaria e um hóspede afirma que a viu na esplanada, diante do jardim, quando o último sol se reflectia, estranhamente calmo, no verde violáceo, quase negro da albufeira.
Os agentes pediram para telefonar ao Comandante, que lhes sugeriu duas coisas: chamassem os bombeiros de Póvoa do Lanhoso e dirigissem, eles próprios, no local, as operações de busca, e se preparassem para passar o caso à Judiciária de Braga, que ele imediatamente contactaria.
Chegaram, de facto, não muito depois, os bombeiros. Desceram em cordas pela encosta até ao rio, e tornaram a subir, muito lentamente. Durante horas, ouviu-se o ladrar diligente dos cães. O jardim foi revirado. Os maciços de malva-rosa, brancos e rosados, as sebes de heliótropos, os altos goivos que bordejam o caminho... A mata foi perscrutada à minúcia. Abriram-se os quartos vazios da Pousada. Vistoriou-se o sótão, as garagens e chegou-se mesmo a verificar dependências praticamente abandonadas, como um subterrâneo que termina, abrupto, contra uma aguda parede de terra. Depois acenderam-se luzes. Os camponeses das povoações em redor juntaram-se ao pessoal de serviço. Andaram com archotes, gritando o nome da desaparecida, pela noite fora, mesmo a muitos kms da Pousada. Quando despontou a manhã, a equipa principal de busca foi rendida. E repetiram-se, mais uma vez, todos os passos. Isto até ao anoitecer. E ainda no dia seguinte. Em lugar nenhum dessa exaustiva perseguição, encontraram de L.Z. o mínimo sinal. É como se toda a sua história tivesse sido inventada pela gente da Pousada de S.Bento. Os bombeiros partiam quebrados pelo esforço e cabisbaixos. Os cães, depois do alvoroço inicial, dir-se-ia terem emudecido. Os camponeses já não saíam à sua procura. E, se primeiro se inquietaram muito, não é que agora não continuassem nesse sobressalto, mas cada vez mais brandamente.
A judicária depositou grande esperança no sobrescrito deixado (intencionalmente?) sobre o leito, mas desistia agora da ideia que, com ele, L.Z. tivesse pretendido deixar uma pista, uma chave… É verdade que aquela epígrafe, “a mon seul désir”, fazia supor alguma coisa de relevante. Mas o quê? As páginas manuscritas foram lidas e relidas e apenas o desconcerto aumentava.
«Talvez os primeiros herbários se devam procurar nos capitéis dos edifícios egípcios ou na sua arte funerária, nos motivos vegetais que decoravam santuários caldeus irremediavelmente perdidos, em baixos relevos da Antiga Assíria, como aquele de Koyoundjik, que representa a passagem de deuses caçadores por um variegado bosque ou, da mesma proveniência, o que representa um leão e uma leoa aos pés de uma palmeira e de uma vinha, e que hoje se pode ver no Museu Britânico.
Talvez juntando as referências das cosmogonias primordiais se pudesse folhear um herbário poderoso: a planta imortal roubada a Gilgamesh, a verdura suscitada por Marduk, os cedros em cuja sombra Shamash, o deus-sol habitava, o roseiral que Bel plantou sobre a terra, as plantas de raízes de cristal que, num mito babilónico, se podem encontrar no centro da terra. Ou das imagens da poesia bíblica se pudesse compor um mesmo herbário fantástico, um jardim-fechado onde os nomes, os perfumes e as formas vegetais assinalam não apenas os seus itinerários, mas também os da nossa alma, porque «todos os mortais são como a erva/ e toda a sua beleza como a flor do campo» (Isaías 40,6).
Um dos mais antigos é o de Plínio, o velho (23-79 d.c.), e não é exactamente um herbário, mas alguns livros que ele dedica à botânica na sua obra Naturalis historia (livros 14-17 e 19-25), uma espécie de enciclopédia prodigiosa, que serviria, segundo ele, para ‘guiar o homem, necessitado de conselho e de ajuda na imensidão da natureza’. Plínio foi oficial de cavalaria na Germânia e desempenhou várias funções civis ao serviço da família imperial, mas viveu sobretudo numa febre ansiosa por conhecer, experimentar, recolher. Das plantas, não só reuniu conhecimentos populares e notícias eruditas: ele próprio, escrupulosamente, verificava esses saberes no jardim de um seu contemporâneo, um herborista notável de nome Castor.
Plínio conheceu outros herbários realizados já no seu tempo, normalmente ligados à prática da medicina. Esses herbários descreviam a utilidade ou o perigo que certas plantas constituíam. Num interessante estudo sobre ‘os nomes das plantas na Roma antiga’, Jacques André recorda que «às plantas inúteis não era dado um nome». Mas o conceito de ‘utilidade’ amplia-se imensamente (ou imensamente se esconde) se pensarmos no cuidado com que Plínio descreve as suas plantas mágicas.
Uma mudança na arte dos herbários ocorreu quando, para contornar falhas de conhecimento, alguns começaram a reproduzir em imagem colorida os particulares das plantas. Plínio reagiu assim a tal inovação: «Cratévas, Denys e Metródoro utilizaram um método muito sedutor, mas que só salienta a dificuldade do argumento: eles reproduziram a planta, em cor, e escreveram por baixo as suas propriedades. Mas a própria pintura é enganadora, porque as cores são numerosas, sobretudo quando se quer rivalizar com a natureza, e elas são muito alteradas pelos infortúnios da cópia. Além disso, não basta pintar a planta num único período da sua vida, pois elas mudam de aspecto com as quatro estações do ano» (Naturalis historia, 25,8)».
Passou, então, uma semana, duas… Passaram anos. Tantos que, quando me hospedei na Pousada de S.Bento, a inconcludente história policial de L.Z. tinha sido, para sossego de todos, praticamente esquecida. Devo dizer que cheguei a ela sem que tivesse bem consciência. Avizinhei-me da solução, como na maior parte dos casos acontece, de modo completamente desprevenido. A verdade tornara-se, para mim, insinuante, mas inaudível, como se aquela precisa verdade tivesse a natureza da sombra. Só o leitor poderá restituir uma unidade aos fragmentos que a história transmite. Não será sempre assim?
Resta-me, por fim, contar-vos o que sei. Percebi, certo dia, que na mesa a meu lado, jantava sozinho um professor reformado, que me tinham dito ser um medievalista ilustre. Tentei acompanhar o seu ritmo e terminar a refeição ao mesmo tempo do que ele. Quando nos levantamos, praticamente a par, inclinei a cabeça, sorrindo, em saudação. Começamos, então, a caminhar devagar até à lareira apagada, e ele parou diante da tapeçaria – uma cópia do célebre tapete, “A dama do unicórnio”, que já por um verão inteiro me fascinara, na maravilhosa sala redonda do Museu de Cluny, em Paris.
- «Vê esta reprodução? É muito curiosa… Confesso-lhe que tenho me interessado muito por ela».
Eu olhei para a tapeçaria, surpreso, mas nada me retinha a atenção. Ele continuou:
- «Os painéis da rapariga do Unicórnio foram, como sabe, tecidos por volta de 1500, na Flandres, a grande pátria da tapeçaria medieval. O conjunto, composto por seis tapeçarias, foi descoberto em 1841, no Castelo de Boussac…»
Eu acompanhava-o em silêncio.
- «Foram tecidas com fios de lã e de seda… mais de cinco fios entrançados por centímetro… As primeiras tapeçarias, recordar-se-á, são alegorias aos sentidos, e estes fornecem-lhes um título: o gosto, o cheiro, o ouvido, o tacto e a vista. A sexta, a que temos aqui reproduzida, é a mais misteriosa…»
- Misteriosa, repeti para mim. Pela janela entreaberta, um fiozinho de vento nocturno.
- «Não há acordo acerca da sua significação. Uma chave, talvez esteja no facto da Dama ter colocado no porta-joías o colar que traz ao pescoço nas outras tapeçarias.
- Como é que isso desvenda o enigma? – interessei-me.
- «Representa, quem sabe, uma espécie de renúncia aos cinco sentidos que haviam sido enunciados e ao seu esplendor… Já alguma vez pensou na renúncia? É o mapa de alguns endereços sublimes!... Mas não é por aí que queria enveredar, não é por aí… Esta cópia portuguesa tem um elemento estranho».
- De que está a falar?
- «Na tapeçaria original, a dama não tem sombra. Aqui, repare, ela ganhou um inesperado halo… uma pontuação… um contorno…».
- Agora que ele dizia, eu podia ver. Havia ali, de facto, uma sombra. Estava instalada como um zumbido interior, ambíguo, que nos modifica os pensamentos… Olhei-a até se destacar, abstracta, da própria figura. Na minha percepção confusa, parecia uma bola de terra, uma convicção que se deve recear, uma ciência inalcançável! Olhava, mas nada compreendia... Foi, por isso, como se atalhasse caminho por entre labaredas e gelos, que lhe perguntei, no tom mais sereno e desprendido de que fui capaz: «Como é que disse que esta tapeçaria se chamava?».
- «Ainda não disse. Digo-lhe agora: “A mon seul désir”».
Acenando-me delicadamente, deixou-me. Os seus passos (seriam apenas os dele?) ressoaram pelo corredor de laje.
José Tolentino Mendonça"
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, junho 03, 2009