A montanha mágica

terça-feira, maio 12, 2009

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"Kandinsky, em 1910, afirmava profeticamente que o seu tempo, marcado pelo materialismo, pelo desespero e pela incredulidade, “prepara-se agora, (...), para mergulhar no vazio.” (2). Este mergulho no vazio, este encontro com o Nada, com a Noite do sentido e não apenas dos sentidos, é determinante para compreender a experiência estética contemporânea. Mergulhar no vazio é expressão niilista ou mística? Não há verdadeira oposição porque a experiência mística subsume, contém e ultrapassa, o niilismo. Nega-o dialecticamente: “o niilismo só se deixa contestar partindo do seu interior, somente das trevas da sexta-feira santa, onde Deus sofre e morre por amor ao mundo, é possível proclamar a vitória da vida e da beleza, porque aquela morte é a morte da morte.” (3). Percebe-se assim que não se chega à luz senão através das trevas, à vida senão através da morte, à fé senão através da dúvida e da prova do ateísmo.


O tempo e a serialidade. Logo nos primeiros trabalhos de Fernando Calhau encontramos séries de fotografias dos estratos sobrepostos das placas tectónicas, como a memória do mundo aí visível e nessa memória a da nossa própria memória e tempo. E noutras obras o que está em obra é o tempo passagem, o tempo suspenso, o tempo morte. Numa instalação de 1976 coloca lado a lado estas duas possibilidades: a imagem do mar em movimento (filme) e a imagem parada do mesmo mar (slide). E o sentido de estranheza é imenso: uma foi roubada ao tempo, está fora do tempo, e a outra mantém-se na continuidade ininterrupta da vida, na mudança permanente, em devir. A imagem fixa não é deste mundo. Coloca-nos fora: num tempo fora do tempo. Esta oposição do tempo finito e da infinita eternidade está também presente numa série de obras em chapa de ferro, marcado pela ferrugem e a passagem temporal, onde as junções ficam à vista rasgando uma linha vertical – que lembram a obra metafísica de Barnet Newman. Nessas placas de ferro de 1996, a meio, escreveu palavras em neon: Timeless. Dead end. Endless. (Sem tempo. Beco sem saída. Sem fim.). Também nas esculturas expostas na sua última exposição, com Rui Chafes, no Pavilhão Branco em Lisboa, sintomaticamente intitulada Um passo no escuro, essa tensão dos limites corporais-temporais era evidente: para além da palavra Time, setas em néon indicavam em caixas de ferro os limites do objeto, como os limites de um corpo. A fronteira, o fim. Calhau morreria pouco depois.

Noturno. O negro e a obscuridade têm lugar cativo na obra deste artista: no filme Destruição, de 1975, apresenta um quase programa-resumo-semente da sua obra. Nele apaga-se: vemo-lo arrancar a imagem com se com um pincel cobrisse de negro o ecrã, até que o filme fica todo negro e ele escondido por detrás. Aqui, como em tantos dos seus trabalhos, afirma a recusa da imagem, da figuração, da ilusão. Nega-a. Nada para ver, nada por detrás. Ironia já presente numa série de serigrafias dos anos 70, onde a fotografia de uma ostensiva moldura barroca enquadra uma cruz, um xis, um nada, recusando assim a imagem devida à moldura. O vazio emoldurado.





A noite ocupa o seu espaço nesta obra. A noite da destruição do horizonte mas também a da concentração do sentido e da atenção vigilante. A escuridão isola-nos. Coloca-nos diante do medo, da perda, da provação e da ausência. E será ainda o tempo, ou a sua falta, que está em jogo. E o silêncio torna-se denso. Uma pobreza voluntária e incómoda. Por tudo isto, a sua obra não seduz facilmente: resiste-nos, exige atenção, esforço, trabalho. A escuridão que nos apresenta é passagem, mas sem seguranças. A noite é lugar de encontro, as sombras permitem entrever uma luz. “Olha onde não vês” era a proposta do místico Angelus Silésius para a verdadeira visão divina. A renúncia à luz física, a sua suspensão, o luto é caminho: uma via apofática, silenciosa, sem distrações exteriores. A cegueira é o início da visão autêntica: não teríamos o entusiasmo de Paulo sem a consciência da noite cega de Saulo. A escuridão conduz-nos o olhar para dentro, torna a autoconsciência mais afiada e penetrante, uma lâmina dirigida ao coração da vida interior.

Se Calhau problematiza a utilização da imagem, negando-a, o artista norte-americano da mesma geração, Bill Viola (1951), parece...


(2) Kandinsky, Do espiritual..., p.22

(3) Bruno Forte, A porta da Beleza, p.69



Paulo Pires do Vale, Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007."

posted by Luís Miguel Dias terça-feira, maio 12, 2009

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