quarta-feira, abril 08, 2009
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Rui Chafes
"E Kandinsky propôs a música como o modelo para a pintura, porque ao afastar-se da perceção quotidiana, ao suspendê-la, é capaz de reproduzir as determinações escondidas do Ser, aproximando-nos assim das coisas mesmas. Um método que Michel Henry comparou à redução fenomenológica husserliana (6). Será precisamente esta palavra, redução, que, desde o final do século XX, o escultor Rui Chafes vai aplicar como programa: “A redução é uma transcendência. Essa ideia de transcendência associada à redução – que é uma ideia que vem dos ícones, da arte bizantina e também da arte medieval – é uma ideia fundamental para o meu trabalho.” (7)
Há na obra de Rui Chafes (1968), e na sua profunda reflexão teórica, um cuidado ascético: de quem percebe que a obra pode ser o lugar do silêncio no meio do barulho mediático; uma introdução de aspereza e resistência num mundo em que tudo desliza à superfície e parece transparente; uma poetização do mundo que se opõe à sua aniquilação pelo consumo e massificação; uma estratégia de lentidão e peso contra a aceleração. Mas aqui o peso da vida não se apresenta como esculturas evidentemente pesadas. Ainda que o sejam, pois trabalha o ferro, elas parecem leves, tantas vezes a flutuar, a elevarem-se, suspensas nas árvores de um parque ou no teto da galeria. E faz-nos repetidamente elevar o olhar, um movimento gótico – referência importante deste escultor, que tantas vezes demonstra a sua admiração pela obra de Tilman Riemenschneider - opondo-se nessa elevação à horizontalidade da escultura minimalista, mas mantendo desta o seu rigor.
É então a leveza (8) do pássaro e não a da pena de que aqui se trata. Uma desmaterialização paradoxal, realizada através da matéria pesada que trabalha: o ferro. Nele apaga as marcas do trabalho manual, pintando-o de negro ou cinza. O escultor olha as suas peças não como objetos, mas talismãs: “tumultos de forças, de dúvidas e de medo”. O carácter objectual da obra-de-arte é residual, uma necessidade no seu trabalho de escultor, mas a “coisa” é-o apenas para abrir mundos. O serem objetos estranhos ao mundo torna-os potências estrangeiras ao hábito, abrindo brechas no horizonte de oportunidades humano – e esta estranheza torna-se maior quando a sua inserção no meio natural transforma o ambiente dos jardins, florestas, parques.
Estes catalisadores de forças permitem um encontro com o que, segundo Rui Chafes, nos mantém acordados: a consciência da morte. O artista desempenha assim um papel ético, abre fendas no mundo e interroga-o nessa abertura, permitindo que outros se aproximem da sua própria autenticidade. Cria emoções ou permite que se aceda a elas. E entre elas a melancolia de um lugar perdido, que a beleza sempre aponta: “acredito que a transcendência não tem outro significado a não ser o de mostrar ou pressentir algo que não está aqui. E penso que a redução, enquanto processo de trabalho ou pensamento, pode efetivamente conduzir ao abrir uma porta nesta fronteira, seja em que plano for, religioso ou artístico, existem muitos caminhos.” (9). A redução compreende-se então como um processo ascético libertador: “A verdadeira liberdade não é, ao contrário do que muita gente pensa, poder ter. A verdadeira liberdade é justamente poder não ter, poder abdicar, poder renunciar, poder prescindir. Essa é que é a verdadeira liberdade, esse é que é o luxo, só alguns o podem ter. Quantos de nós poderemos ter essa liberdade? Quantos de nós nos podemos permitir dar simplesmente um passo ao lado?” (10). E esta é uma exigência que a obra coloca também ao contemplador: precisa de se despojar, renunciar a si, para poder “ver”, ou mais corretamente: “ver-se”. Compreende-se aqui o que Paul Ricoeur escreveu: “Leitor, só me encontro quando me perco” (11). É também uma exigência kandinskiana.
(5) Qualquer obra de arte, por ser fruto da actividade humana, não é já uma manifestação espiritual? Ou poderemos associar esta noção à experiência religiosa, ao sentimento da sacralidade do mundo, a uma hierofania? É o espiritual a dimensão da experiência da transcendência ou a capacidade humana de se transcender? Qualquer obra de arte, por ser fruto da actividade humana, não é já uma manifestação espiritual? Ou poderemos associar esta noção à experiência religiosa, ao sentimento da sacralidade do mundo, a uma hierofania? É o espiritual a dimensão da experiência da transcendência ou a capacidade humana de se transcender?
(6) Michel Henry, “Kandinsky et la signification de l´oeuvre d´art.”, in Phenomenologie de la vie III, Paris, PUF, 2004, p.211
(7) Michel Henry, “Kandinsky: le mystère des dernières oeuvres” in Op.cit, p.222
(8) Rui Chafes, O silêncio de..., Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p.93
(9) Sobre a Leveza cfr Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milénio, Lisboa, Teorema, 1998, pp.17-44
(10) Rui Chafes, O Silêncio de..., p.157
(11) Ibidem, p.94
Paulo Pires do Vale, Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007."
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 08, 2009