quarta-feira, abril 29, 2009
3 horas que mais pareceram 30 minutosEscrevi ex-tra-or-di-ná-ri-o e não o vou justificar, podia, mas não, podia ao escolher meia dúzia de versos e dizer isto é extraordinário. E chegava. Para mim sim.
Estamos a falar de Shakespeare. E de Auden... "um mito".
E depois disse excelentíssimo, referindo-me à tempestade da cornucópia como sendo teatro excelentíssimo e, mais uma vez, devia e podia justificar o que disse, mas não, não é preciso, seria quase ridículo.
No entanto, duas observações: imaginei um Caliban diferente (sim, li o que Luís Miguel Cintra disse e escreveu sobre isso; também
Peter Brook, O Espaço Vazio, publicado na Orfeu Negro em 2008: "Quando se trata de encenar Shakespeare, voltamos a ouvir o mesmo conselho: «representem o que está escrito». Mas o que é que está escrito? Um conjunto de signos numa folha de papel. As palavras de Shakespeare são um registo das palavras que ele queria que fossem ditas, palavras que saíam da boca das pessoas como sons, com um determinado tom, com pausas ritmo e gestos que complementavam o seu sentido. Uma palavra não começa como palavra --é o produto final de um processo que se inicia por um impulso, estimulado por uma atitude e um comportamento que ditam a necessidade de expressão. Este processo ocorre dentro do dramaturgo e repete-se dentro do actor. Ambos podem apenas ter consciência das palavras; no entanto, para o autor e depois para o actor, a palavra é a pequena parte visível de uma formação gigantesca que não se vê. Alguns autores tentam fixar o significado e a intenção das suas peças com indicações cénicas e explicações, mas não podemos deixar de ficar impressionados com o facto de os melhores dramaturgos serem aqueles que se explicam menos. Eles percebem que, muito provavelmente, o excesso de indicações será inútil. Compreendem que só seguindo um processo semelhante ao da criação original é que se conseguirá descobrir o verdadeiro caminho para a forma como uma palavra deve ser dita. Isto não pode ser negligenciado nem simplificado. Infelizmente, no momento em que um amante fala, ou quando um rei faz ouvir a sua voz, nós precipitámo-nos e pomos-lhe uma etiqueta: o amante é «romântico», o rei é «nobre» -- e, antes que nos apercebamos, estaremos a falar de amor romântico e nobreza aristocrática como se fossem coisas que pudéssemos tirar do bolso e mostrar aos actores. Ora, estas ideias não têm uma existência tangível; se as quisermos encontrar, o melhor que podemos fazer é tentar reconstituí-las a partir da literatura e da pintura. Se pedirmos a um actor para representar em estilo romântico, ele fará um esforço corajoso nesse sentido, acreditando que sabe o que queremos dizer. A que pode ele recorrer? Ao instinto, à imaginação e a um bloco de notas com memórias teatrais --que lhe darão acesso a uma «romanticidade» vaga, logo misturada com a imitação disfarçada de um qualquer actor mais velho pelo qual ele sinta admiração. Se procurar na sua experiência pessoal, os resultados podem não casar bem com o texto, será imitativo e convencional. De qualquer modo, o resultado é sempre um compromisso --e pouco convincente, na maioria dos casos.
É inútil supor que as palavras que aplicamos ao teatro clássico --como «musical», «poético», «maior do que a vida», «nobre», «heróico», «romântico»-- têm um sentido absoluto. Elas são reflexos da abordagem crítica característica de um determinado período, pelo que tentar hoje construir um espectáculo que respeite esses princípios é o caminho certo para o teatro do aborrecimento mortal --neste caso, com uma respeitabilidade que o faz passar por encarnação da verdade.
Uma vez, ao fazer uma comunicação sobre este tema, tive a oportunidade de aplicar um teste prático. Por sorte, estava entre o público uma mulher que nunca tinha lido ou visto Rei Lear. Dei-lhe a primeira fala de Goneril e pedi-lhe para a recitar o melhor que soubesse, realçando o que considerasse mais importante. Ela fez uma leitura muito simples --e a própria fala emergiu com extrema eloquência e encanto. Expliquei-lhe então que, supostamente, aquela era a fala de uma mulher terrível e sugeri que voltasse a ler, mas agora com uma atitude hipócrita. Ela tentou fazê-lo e a assistência viu quão difícil podia ser lutar com a música simples das palavras quando se quer representar de acordo com uma indicação.")
a dizer alguns versos, por exemplo
"Deixa-me levar-te aonde crescem as maçãs bravas;
Com as minhas grandes unhas vou arrancar-te
Túbaras da terra; mostro-te um ninho de gaio,
E ensino-te a apanhar o sagui veloz.
Levo-te aonde abundam as avelaneiras,
E vou trazer-te às vezes dos rochedos alciões.
Virás comigo?"
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e imaginei a ilha deserta diferente: a vegetação, o mar e a gruta/caverna não foram excelentes; o cravo devia estar mais longe de nós.
O início é prodigioso, e toda a peça teatro excelentíssimo.
posted by Luís Miguel Dias quarta-feira, abril 29, 2009