sexta-feira, março 20, 2009
pedra angularDe D. Manuel Clemente relembro sempre aquela entrevista dada a Judite de Sousa no tempo em que João Paulo II estava bastante doente e se falava até mais não na sua substituição ou não, quase imperativa nos média. Nessa entrevista a jornalista passou o tempo todo a querer respostas imediatas, rápidas, instantâneas, num tempo curtíssimo, e D. Manuel, assim sem nada para lhe dizer naquele registo, num tempo longo longo. A jornalista agonizava e não percebia o seu convidado, parecia que não percebia o outro lado da vida que não aquele, frenético e fabricador de notícias. Uns meses mais tarde disse, numa entrevista a si feita, que não sabia viver sem aquele mundo de pressão das notícias, do estar no ar... Adiante, adiante.
A nova editora portuguesa Pedra Angular acaba de editar o primeiro livro, de um dos mais brilhantes e estimulantes intelectuais portugueses da actualidade:
Manuel Clemente
Bispo do Porto
UM SÓ PROPÓSITO
Homilias e Escritos Pastorais
Dois excertos: um da mensagem de ano novo, 2009, e outro da atribuição do Prémio Árvore da Vida / Padre Manuel Antunes 2008, do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura a Maria Helena Rocha Pereira, Fátima, 20 de Junho de 2008.
"SANTA MARIA MÃE DE DEUS
Ano Novo, Vida Nova
2. É connosco agora, neste «ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo» de 2009, que por Ele o é decerto e por nós o tem de ser também. Assim o propõe, com a precisão do actual contexto, o Papa Bento XVI, na sua Mensagem para este Dia Mundial da Paz, sob o título mobilizador: «Combater a pobreza, construir a paz». Pela análise e indicações que traz, esta Mensagem deve ser cuidadosamente estudada e correspondida por todos os católicos e pessoas de boa vontade. A Santa Sé manifesta-se hoje qual observatório permanente do estado do Mundo, juntando a informação local com a internacional, o que lhe permite análises sobremaneira avalizadas. E, tendo o conhecimento e a experiência do conjunto, abre-nos aquele horizonte geral que hoje tende a ser o mais determinante da vida das pessoas. A globalização apresenta-se de facto como realidade iniludível e é no seu contexto que devemos analisar-nos como humanidade em devir. Mas, nesta análise, contando com a imprescindível colaboração de economistas e sociólogos, estaremos também como os pastores evocados no Evangelho de há pouco, os quais, no que viram em Belém, reconheceram aquele significado maior que anunciaram a todos. Com eles, devemos olhar agora a globalização também no seu «significado espiritual e moral» (Mensagem, 2): divisamos um projecto divino, que nos quer como única família humana, fraterna e corresponsável. Só assim a globalização interessa e corresponde à expectativa de todos e à vontade divina. É à mesma luz que encaramos a pobreza, fenómeno infelizmente bem concreto e quantitativamente mensurável, mas incluindo «fenómenos de marginalização, pobreza relacional, moral e espiritual» (Mensagem, 2), também presentes em meios abastados. De tudo isto sabemos e devemos saber; com tudo isto sofremos e devemos sofrer, e sempre com quem mais sofra. Mas juntando sentimento e conhecimento, para que o remédio seja adequado. Sigamos Bento XVI, ao considerar a pobreza mundial e as suas causas. Antes de mais no âmbito demográfico, que certos equívocos tem trazido, alegando-se que a pobreza está associada ao crescimento da população e tomando este como factor negativo e até «justificativo» de campanhas de redução da natalidade, onde não faltam atentados à dignidade da mulher, aos direitos dos pais e à vida dos nascituros. Muito pelo contrário, verifica-se que nas últimas três décadas saíram da pobreza algumas populações que registaram «um incremento demográfico notável» (Mensagem, 3), revelando- se o índice positivo da natalidade como potenciador de progresso. Outro âmbito de análise é o das pandemias que atingem algumas zonas do Mundo, pondo em causa os sectores produtivos e a vida em geral. O combate a tais pandemias passa certamente pela generalização de tratamentos e remédios; passa também pelos avanços da medicina e dos cuidados médicos, requerendo a disponibilidade de cientistas e produtores de fármacos; e não dispensa, em especial nalguns casos como a SIDA, a educação para uma sexualidade respeitadora da dignidade própria e alheia. Terceiro âmbito de análise é o da incidência infantil da pobreza. Dos cuidados maternos à educação, da vacinação aos recursos médicos e ambientais, tudo devemos às crianças. Sem esquecer a promoção e a estabilidade da família, pois «quando a família se debilita, os danos recaem inevitavelmente sobre as crianças» (Mensagem, 5). Em quarto lugar, o Papa insiste na relação existente entre desarmamento e progresso. Mas lamentamos com ele que, pelo contrário, se verifique o triste conluio da corrida aos armamentos com o subdesenvolvimento, desviando-se recursos que deveriam promover a vida e a economia de populações inteiras. Acrescente-se a actual crise alimentar, que não se deve tanto à insuficiência de alimentos como à dificuldade em aceder-lhes, bem como a práticas especulativas e à ineficácia das instituições políticas e económicas. Aumenta o fosso entre países ricos e pobres, porque a tecnologia evolui mais em quem mais tem e porque os produtos industriais vendem-se mais caro do que os agrícolas e as matérias-primas dos países pobres. Algumas observações ainda, de importância definitiva para ultrapassarmos a intolerável pobreza sofrida por tão grande parte da população mundial: é necessária uma globalização que atenda aos interesses de todos, em verdadeira «solidariedade global» (Mensagem, 8); um comércio internacional onde «todos os países tenham as mesmas possibilidades de acesso ao mercado mundial» (Mensagem, 9); um mercado financeiro que sustente a longo prazo os investimentos e o desenvolvimento, até porque «uma actividade financeira confiada no breve e brevíssimo prazo torna-se perigosa para todos, inclusivamente para quem consegue beneficiar dela durante as fases de euforia financeira» (Mensagem, 10); uma cooperação internacional que invista sobretudo na formação, capacitando para a criação de rendimento (Mensagem, 11); a indispensável conjugação da responsabilidade pessoal com «positivas sinergias entre mercados, sociedade civil e Estados» (Mensagem,12). Numa homilia como esta, mesmo em dia propício, não caberia uma análise socioeconómica só por si. Mas, ainda com Bento XVI, atingimos níveis de apreciação mais profundos e até religiosos. Assim, quando se requer um «código ético comum», em que prevaleçam normas «radicadas na lei natural inscrita pelo Criador na consciência de todo o ser humano», aí mesmo onde cada um de nós sente «o apelo a dar a própria contribuição para o bem comum e paz social»; ou insistindo na necessidade de «cada homem se sentir pessoalmente atingido pelas injustiças existentes no Mundo e pelas violações dos direitos humanos ligadas com elas» (Mensagem, 8); em suma, «a luta contra a pobreza precisa de homens e mulheres que vivam profundamente a fraternidade e sejam capazes de acompanhar pessoas, famílias e comunidades por percursos de autêntico progresso humano» (Mensagem, 13)."
"MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA
A quarta atribuição do Prémio Padre Manuel Antunes, da Conferência Episcopal Portuguesa, contempla este ano, com toda a justiça e oportunidade, a pessoa e a obra da Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira.
A justiça é devida a quem dedicou e dedica um trabalho de tantos e tão preenchidos anos ao estudo e ensino da Cultura Clássica, com grande excelência internacionalmente reconhecida.
«Clássica» se chamou também por ser didacticamente transmitida, tal era a consciência que tínhamos do que lhe devíamos, da literatura à arte, da vida particular à política. E «clássica» era, ainda, por nos dar um ponto de partida humanista, suficientemente sólido e global para se tornar numa autêntica «casa comum».
Basta ler os textos do Novo Testamento, para ver como o Cristianismo nascente contou com tal cultura, vivendo nela, mesmo quando a ultrapassava 14. Aliás, caído o Império Romano, foi nas instituições eclesiais que o legado clássico encontrou abrigo e transmissão.
Particularmente com os europeus, esta cultura chegou ao Mundo inteiro e o actual quadro básico de direitos e deveres em que nos entendemos como «humanidade» é muito subsidiário desse primeiríssimo húmus.
Tratando-se de cultura, tem desta o vigor e o perigo. O vigor advém-lhe de ter sido tão propagada e assumida que ainda hoje se subentende, como memória, gosto e comportamento, verdadeiro «caldo cultural» que, à partida, nem se discutiria, tão omnipresente se revela. O perigo advém-lhe disso mesmo: é tão básica e geral, a herança clássica, que corre o risco de não ser advertida, nem sistematicamente transmitida. Isto pode significar tragicamente esquecida.
Neste preciso ponto tocamos a oportunidade da presente atribuição do Prémio Padre Manuel Antunes. Verificamos na sociedade portuguesa um maior investimento no ensino tecnológico, compreensível na actual conjuntura social e económica. Em termos de mentalidade, isto vai a par com a força da ciência, no sentido que ela foi ganhando na Europa moderna.
Tudo muito certo, tudo insuficiente. De facto, nas mais diversas áreas da sociedade e do trabalho, a modernização e os resultados práticos, vistos apenas do ponto de vista científico e técnico, correm o grande risco de perderem a prevalência humanista. Facilmente, a pessoa humana – cada homem e cada mulher em concreto – pode diluir-se na generalidade dos factores de produção e rendimento.
Perigo mais do que evidente, pois é gritante hoje em dia. Ora, se o legado clássico tanta coisa nos traz, é exactamente na imensa profundidade de cada ser humano que ele mais se traduz. E é também aqui que a cultura clássica mais se alia com o
«Ecce homo!» que Jesus de Nazaré inteiramente realiza e ofere-ce. Aqui também colhe, hoje como sempre, a advertência evangélica: «– De que vale ao homem ganhar o Mundo inteiro, se vier a perder a sua alma?»
E é por tais razões, de valor e circunstância, que a Conferência Episcopal Portuguesa, através do seu Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, atribui um prémio que transporta o nome doutro grande cultor dos estudos clássicos à Professora
Maria Helena da Rocha Pereira, eminente figura deste decisivo campo, cujo trabalho não há-de ser tido por derradeiro, mas sim como elo e garantia de futuro no saber essencial.
14 Já a própria religião grega ultrapassara outras, mas não a de Israel. Retenha-se este trecho da Autora: «A primeira e mais evidente característica destas divindades [dos Poemas Homéricos] é serem luminosas e antropomórficas, o que, pondo de parte a religião hebraica, que é um caso único e sem paralelo, representa uma superioridade incontestável sobre as demais da Antiguidade. Em vez de potências ocultas e terríveis, temos formas claras, que se comportam e reagem como seres humanos superlativados» (Pereira, Maria Helena da Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2.ª edição, 1967, vol. 1, p. 85).
[Na atribuição do Prémio Árvore da Vida / Padre Manuel Antunes 2008,
do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, Fátima, 20 de Junho de 2008]"
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, março 20, 2009