terça-feira, março 31, 2009
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" Nesse final dos anos 50 e início de 60, na obra de Lourdes Castro (1930), então a trabalhar em Paris, encontramos estes dois momentos: excesso e renúncia. Numa primeira fase, a acumulação e a sobreposição de objetos encontrados na rua, em casa, no lixo: resgatando-os numa colagem que lhes retorna a dignidade e unificando-os, ao cobri-los com uma mesma cor (alumínio/cinza-prata). A relação entre a arte e a vida quotidiana é aqui evidente. Depois deste excesso (e ainda desenvolvendo uma pesquisa sobre a acumulação), Lourdes encontra nas experiências serigráficas, a sombra: o mínimo de cada coisa. Uma redução, a procura do essencial, que a faz tirar as sombras da sombra. De tão próximas, diante dos nossos olhos, companhia constante, já não as vemos. E depois da sobreposição, trabalha no sentido da simplificação e individuação: dos amigos, dos gestos diários e comuns, o pentear do cabelo, o cigarro que se leva à boca, a leitura de um livro, o abraço, a refeição, os objetos diários – é ainda a relação arte-vida que aqui está em causa. E de tão comuns estas sombras tornam-se únicas, e de tão íntimas tornam-se universais. Estas sombras pintadas, no início, a acrílico sobre tela, são mais do que retratos-figurações, mesmo que acompanhadas do nome do retratado. Mais do que “alguém” identificável, elas são sinal da vida humana nua. Mais do que pormenores acessórios, fixam o necessário e exato. Uma imagem plana. Simplificada até ficar apenas o seu contorno. O mínimo da sombra.
Nesta pesquisa artística, Lourdes encontra posteriormente o material que lhe permite a desmaterialização desejada: o plexiglas. Com este material, só possível nesses anos 60, a sombra pode tornar-se transparente, luminosa, colorida. O plexiglas, pintado, serigrafado ou recortado, permite a distância da parede, projetar sombras das sombras, sobrepor cores em camadas. Mas a beleza e leveza imaterial destas sombras está marcada pela constatação ou consciência da sua passagem e fragilidade. Os amigos que lhe cederam a sombra morrerão. Os gestos, os objetos, os corpos já não são os mesmos. A parede onde as desenhou foi repintada. E aquelas sombras tornam-se lugar da sombra maior. Mas, “mais que a morte, teme-se a beleza” escreveu o poeta William Carlos William, porque a beleza dá um “beijo mortal” (12), transporta a morte, a finitude, porque mostra a fragilidade do fragmento diante do Todo. Ameaça a existência e lembra aos homens a caducidade do mundo. E a experiência da transitoriedade ficou definida nos Teatros de sombra que Lourdes apresentou na segunda metade dos anos 70.
Momentos resgatados ao fluxo de consumo da vida. Gestos diários projetados sobre um lençol, demorados, atentos. Fugacidade aparente que esconde uma permanência a encontrar. Também percebemos este impulso no Herbário de sombras, um catálogo meticuloso, científico quase, daquilo que vai deixar de ser, que passa. Como no constante regresso desenhado à sombra projetada das flores sempre novas nas jarras – desenho que começa no cuidado com que trata, apanha e arranja as flores e escolhe a jarra. Sempre em volta de um centro. Não tanto as sombras, quanto a artista. Estas obras são assim prolongamento ascético de uma vida ascética, centrada. Fruto de uma perceção atenta, de uma disponibilidade genuína (descentrada) – e sabemos como a arte do arranjo floral (Ikebana) é um caminho de sabedoria e espiritualidade, tão nobre como o tiro com arco ou a cerimónia do chá.
Segundo Plínio, a arte da pintura surgiu na Grécia, com o desenho do contorno da sombra projetada sobre o muro daquele que vai viajar, delineado por aquele que fica. A sombra é sinal, vestígio, presença de uma ausência que não se quer, ou não se pode, esquecer. Mas na obra singular de Lourdes Castro a morte não tem a última palavra, e a cor, a fluorescência, a transparência dão-nos a face da alegria. A brevidade da vida e o seu carácter transitório não encontram aqui a angústia, mas a compreensão. A sombra é sempre a tinta da luz, remete para ela e não para a obscuridade. Em Lourdes Castro, a sintonia com a vida – palavra tão próxima de Kandinsky - procura de todas as horas, revela-se numa demanda do essencial presente, aqui e agora: a flor, o fruto, a pedra, o gesto, o outro, a carta, a sombra da vida que se faz ou recebe. A procura da justiça e rigor, outros nomes para a verdade. Como o seu companheiro, Manuel Zimbro, escreveu: “Quando se escolhe atentamente não há escolha, há atenção” (13). Atenção que salva e sustenta o mundo. Na obra desta artista percebemos a exatidão das palavras de Michel Henry, comentando Kandinsky: a obra de arte é “a ressurreição da vida em nós”. (14)
(12) Paul Ricoeur, Do Texto à Acção, Porto, Rés, s.d., p.124 (13) Bruno Forte, A porta da beleza. Por uma estética teológica. Aparecida S.P.; Ideias e Letras, 2006, p.164
(13) Manuel Zimbro, “Base de Mundo” in Lourdes Castro, Sombras à volta de um centro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p.52
(14) Michel Henry, Phenomenologie de la vie, p.301
Paulo Pires do Vale, Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007."
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, março 31, 2009
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