terça-feira, janeiro 27, 2009
John Updike (Março 18, 1932 - Janeiro 27, 2009)
"- Kathryn, não quer comer alguma coisa? Não sei bem o que tenho... uma sanduíche de peru fumado ou uma lata de atum com que posso fazer uma salada. Deve estar cheia de fome. Eu estou.
A jovem responde com uma inocente efusão autopropagandística.
- Oh, quando estou interessada naquilo que estou a fazer, esqueço-me completamente de comer. Depois, cerca das quatro da tarde, pergunto a mim própria porque me sinto tão tonta. Mas a senhora levanta-se tão cedo e...
Mas não diz: És velha e frágil e para além da comida tens tão poucos prazeres. Alimentos e recordação. O que é que nos nossos passados continuamos a tentar recuperar, que maravilha deixada fora do lugar e pisada pela pressa de vivermos os nossos dias, os dias que, uma vez desaparecidos, adquirem a magestade do testemunho eterno --estive ali, fiz isto, os tempos eram estes, era bela e tinha todo o potencial do meu belo futuro?
- Estou bem --garante vivamente a Kathryn. - Vamos continuar até ao fim da fita. Será bom para a linha. Pergunte-me o que quiser.
- A "admiradora"... Leu as memórias dela? São melhores do que se poderia esperar e apresentam uma imagem muito diferente de Zack do que aquela que me está a oferecer. Inteligente, doce, um homem do mundo e não só do mundo artístico.
- Inteligente, tão inteligente que a teria matado se ela não tivesse sido projectada do descapotável quando ele o estampou no bosque. A amiga que ia com eles não teve a mesma sorte e ficou debaixo do carro quando este se voltou. O Zack não... voou directamente de encontro ao tronco de um carvalho como a bala humana de um canhão. Durante o funeral, o caixão ficou fechado porque o aspecto da cabeça dele era uma desgraça.
A palavra "desgraça" tolhe-lhe a língua, sabe-lhe a uma coisa perdida, era uma palavra de que Zack gostava, usando-a a respeito de um quadro em que exagerara o número de camadas de tinta para apagar a imagem e tinha de eliminar certas zonas com uma colher para que a vida regressasse à tela.
- Não, não li o livro da admiradora. Só poderia ser um texto interesseiro e semianalfabeto."
John Updike (trad.Carmo Romão), Procurai a minha face, Civilização Editora, 2007.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, janeiro 27, 2009