sábado, novembro 22, 2008
quinto capítulo da segunda parte (2/3)versão portuguesa da Editorial Presença
segunda parte
livro cinco: Pró e contra
capítulo 4: Revolta
páginas 290-300.
"- Tenho de fazer-te uma confissão --começou Ivan. - Nunca cheguei a compreender como é possível amar o próximo. É exactamente aos nossos próximos que é impossível amar, a meu ver só os longínquos se amam. Li algures que «João Hospitaleiro»( 1), um santo, quando foi a casa dele um passante faminto e gelado, pedindo que o aquecesse, se deitou com ele na cama, o abraçou e começou a deitar o seu bafo para a boca do homem, pestilenta por causa de uma terrível doença qualquer. Tenho a certeza de que o fez por uma exaltação de falsidade, por amor ditado pelo dever, por penitência que impusera a si mesmo. Para começar a amar uma pessoa é preciso que esta se esconda porque, mal essa pessoa mostra a cara, o amor está perdido.
- O stárets Zóssima falou disso mais de uma vez --observou Aliocha. - Também dizia que o rosto de uma pessoa, muitas vezes, impede que seja amado por inexperientes no amor. Mas também há muito amor na humanidade, quase semelhante ao amor de Cristo, eu próprio sei isso, Ivan...
- Mas eu ainda não o sei nem consigo compreendê-lo e, juntamente comigo, há inúmeras pessoas que também o não compreendem. A questão é se isso provém das más características das pessoas ou da própria natureza humana. A meu ver, o amor de Cristo pelas pessoas é uma espécie de milagre na Terra. É verdade também que ele era Deus. Mas nós não somos deuses. Digamos que eu, por exemplo, sou capaz de sofrer profundamente, mas um outro nunca poderá saber até que ponto sofro, porque é outro, e não eu, além de que é raro uma pessoa reconhecer que a outra é sofredora (como se fosse um título). E, o que achas, por que não aceitará reconhecê-lo? Porque, por exemplo, cheiro mal, ou tenho uma cara estúpida, ou uma vez, há muito tempo, lhe pisei um pé. Além disso, há sofrimento e sofrimento: se for um sofrimento humilhante, a fome, por exemplo, isso o meu benfeitor ainda é capaz de aceitar em mim, mas se o sofrimento for de nível um pouquinho mais elevado, sofrer pela ideia, digamos, nesse caso já não, só o aceitará em circunstâncias muito raras, porque olhará para mim e verá de repente que eu não tenho cara que, na imaginação dele, deve ter uma pessoa que sofre por tal e tal ideia. Então, recusa-me de imediato a sua benemerência, e não o faz por ter um coração maldoso. Os mendigos, sobretudo os pedintes nobres, não deveriam nunca dar a cara, mas sim pedir esmola através dos jornais. Ainda é possível amar o próximo de modo abstracto, ou mesmo de longe, mas, de perto, quase nunca. Se tudo acontecesse como no palco, no bailado, onde os mendigos aparecem em farrapos de seda e de rendas rotas e pedem esmola dançando graciosamente, então seria possível admirá-los. Admirá-los e, mesmo assim, não os amar. Basta de falar disto. Só quis expor-te o meu ponto de vista. Queria falar do sofrimento da humanidade em geral, mas o melhor é debruçarmo-nos apenas no sofrimento das crianças. A minha argumentação ficará, assim, reduzida dez vezes, mas é melhor falarmos só das crianças. Será menos vantajoso para mim, obviamente. Mas, em primeiro lugar, é possível gostar das crianças mesmo de perto, mesmo sujas, mesmo de caras feias (aliás, parece-me que as crianças nunca são feias). Em segundo lugar, não vou falar dos adultos também porque, além de serem repugnantes e não merecerem amor, cumprem a sua pena: comeram da maçã, conheceram o bem e o mal e ficaram «como Deus». Ainda hoje continuam a comê-la. Mas as crianças não comeram nada e, por enquanto, não têm culpa de nada. Gostas das crianças, Aliocha? Sei que gostas e vais compreender por que razão quero falar delas. Se elas também sofrem muito na Terra, é por culpa dos pais, por castigo dos pais que comeram a maçã... mas isto é já um raciocínio do outro mundo, incompreensível para o coração humano aqui na Terra. Um inocente não pode sofrer por outros, ainda por cima um inocente destes! Aliocha, espanta-te comigo: também gosto muito das criancinhas. Repara que as pessoas cruéis, apaixonadas, carnívoras, karamazovistas, às vezes gostam muito de crianças. As crianças, enquanto crianças, até aos sete anos, por exemplo, são incrivelmente diferentes das outras pessoas: parecem criaturas de outra espécie e de outra natureza. Conheci um bandido presidiário: durante a sua carreira, aconteceu-lhe exterminar famílias inteiras nas casas que assaltava de noite e esfaquear também várias crianças. Mas, na cadeia, gostava estranhamente delas. Passava o tempo a olhar das grades para as crianças que brincavam no pátio. Habituou um garoto pequeno a ir para debaixo da janela e fez amizade com ele... Não sabes por que digo tudo isto, Aliocha? Dói-me a cabeça, estou triste.
- Falas de maneira estranha --observou Aliocha com preocupação --, pareces louco.
- A este propósito, houve um búlgaro, em Moscovo, que me contou há pouco tempo --continuou Ivan Fiódorovitch, como se não tivesse ouvido o irmão-- que os turcos e os tcherkesses lá, na Bulgária, cometem atrocidades por todo o lado porque receiam um motim geral dos eslavos: queimam, degolam, violam mulheres e crianças, pregam os prisioneiros às cercas pelas orelhas, com pregos, e deixam-nos lá assim durante toda a noite e, de manhã, enforcam-nos, e assim por diante, é inimiginável tudo aquilo. De facto, fala-se às vezes da crueldade «animalesca» do homem, mas isso é muito injusto e insultuoso para os animais: um animal nunca pode ser tão cruel como o homem, tão artisticamente cruel. Um tigre apenas morde e rasga as carnes, é só isso que sabe fazer, não lhe passaria pela cabeça cravar as orelhas das pessoas com pregos durante toda a noite, mesmo que o pudesse fazer. Esses turcos, a propósito, também torturavam com volúpia as crianças, desde o arrancar os bebés das barrigas das mães a punhal até os atirarem ao ar e os apanharem nas pontas das baionetas à vista das mães. Conto-te uma cena que me impressionou. Imagina: um bebezinho ao colo da mãe toda a tremer, à volta dela os turcos que tinham irrompido pela casa dentro. Fantasiaram então um divertimento: acarinham o bebé, riem-se para o fazer rir, conseguem-no, o bebé ri-se. Nisto, um turco aponta-lhe a pistola, a umas sete polegadas do rosto. O pequenino ri-se alegremente, estende as maozinhas para agarrar a pistola e, então, o artista prime o gatilho e despedaça-lhe a cabecinha... É arte, não é verdade? A propósito, ouvi dizer que os turcos gostam muito de doces.
- Irmão, aonde queres chegar? --perguntou Aliocha.
- Acho que, se o Diabo não existe e é portanto uma invenção do homem, então este inventou-o à sua imagem e semelhança.
- Nesse caso, tal como inventou Deus.
- Sabes virar o bico às palavras incrivelmente bem, como diz Polónio em Hamlet --riu-se Ivan. - Apanhaste-me, e ainda bem, fico contente. Que lindo é o teu Deus se foi criado à imagem e semelhança do homem. Acabas de perguntar aonde queria eu chegar. Pois eu sou um apaixonado e coleccionador de factos e, estás a perceber, tiro dos jornais e das conversas, de todo o lado, um certo género de histórias que colecciono, e tenho já uma boa colecção. Os turcos, é claro, fazem parte da minha colecção, mas são esrangeiros. Tenho também umas coisinhas da nossa terra natal, ainda melhores do que as turcas. Sabes que, entre nós, impera antes de mais a boa surra com as varas ou o chicote, é uma característica nacional: entre nós, as orelhas pregadas são uma coisa impensável porque, seja como for, somos europeus, mas as varas e o chicote são nossos, ninguém no-los tira. No estrangeiro, ao que parece, já não se açoita, os costumes purificaram-se, talvez, ou então já apareceram leis que não permitem que um homem açoite outro, isso não sei. Mas, tal como nós, eles compensaram-se com outra coisa, puramente nacional deles, a tal ponto nacional deles que é impensável para nós, embora, ao que tudo indica, já comece também a implantar-se aqui, sobretudo desde que arrancou o movimento religioso na nossa alta sociedade. Tenho uma brochura maravilhosa, tradução do francês, em que se conta como em Genebra, apenas cinco anos atrás, executaram um facínora e assassino, chamado Richard, um rapaz de vinte e três anos que, segundo parece, se converteu ao cristianismo mesmo antes de subir ao cadafalso. Esse Richard era o filho ilegítimo de alguém a quem os pais, aos seis anos, deram a uns pastores montanheses suiços que o prepararam para o trabalho. Crescia no meio deles como um animalzinho selvagem, os pastores não lhe ensinavam absolutamente nada, pelo contrário, aos sete anos já o mandavam apascentar o gado, à chuva e ao frio, quase nu, quase sem alimento. E quando o tratavam assim não tinham dúvidas nem arrepedimento, antes consideravam que tinham todo o direito para tal, porque Richard lhes fora oferecido como um objecto, e nem sequer achavam necessário dar-lhe de comer. O próprio Richard testemunharia mais tarde que naqueles anos, tal como o filho pródigo o Evangelho, ele ansiava por comer ao menos a lavadura que se dava aos porcos cevados antes de serem vendidos, mas nem sequer isso lhe era autorizado e batiam-lhe quando roubava o comer dos porcos. Assim passou toda a infância e juventude até que deitou corpo, ficou forte e foi roubar. O selvagem começou a ganhar dinheiro trabalhando à jorna em Genebra, mas gastava tudo nas tabernas, vivia como um monstro e acabou por matar e roubar um velho. Apanharam-no, julgaram-no e condenaram-no à morte. É que lá não há sentimentalismos. Então, é rodeado imediatamente, na cadeia, pelos padres e membros de várias confrarias de Cristo, por senhoras de caridade, etc. Na prisão ensinaram-no a ler e a escrever, explicaram-lhe os Evangelhos, chamaram-no à razão, persuadiram-no, pressionaram-no, serrazinaram-no e, por fim, ele próprio confessou solenemente o seu crime. Converteu-se, escreveu pelo próprio punho ao tribunal reconhecendo que era um facínora e que tinha, por fim, sido digno da iluminação de Deus, que lhe enviara bem aventurança. Tudo se emocionou em Genebra, toda a Genebra benemerente e beata. Tudo o que era sublime e polido se precipitou para a sua prisão, toda a gente abraçou e beijou Richard: «És nosso irmão, desceu sobre ti a bem-aventurança!» Quanto ao próprio Richard, só chora, enternecido: «Sim, desceu sobre mim a bem-aventurança! Dantes, durante toda a infância e juventude, contentava-me com a lavadura dos porcos, mas agora desceu sobre mim a bem-aventurança e morro em Deus!» «Sim, sim Richard, morres em Deus, derramaste sangue e tens de morrer em Deus. Embora não sejas culpado de não teres conhecido Deus quando cobiçavas a lavadura dos porcos e quando te batiam por roubares o alimento dos porcos (muito feio da tua parte, aliás, porque não se deve roubar), derramaste sangue e tens de morrer». Chega, então, o derradeiro dia. Richard, debilitado, chora e só repete a cada instante: «É o melhor dos meus dias, vou ter com Deus!» «Sim», gritam os padres, os juízes e as senhoras de caridade, «é o teu dia mais feliz porque vais ter com Deus!» Todo o cortejo, atrás do carro da vergonha em que levam Richard, avança em carruagens e a pé. Chegam ao cadafalso: «Morre, irmão», gritam a Richard, «morre em Deus, porque desceu sobre ti a bem-aventurança!» E arrastaram o irmão Richard, coberto de beijos dos outros irmãos, para o cadafalso, deitaram-no na guilhotina e cortaram-lhe fraternalmente a cabeça, porque sobre ele descera a bem-aventurança. Mesmo característico. A brochura foi traduzida para o russo por uns quaisquer benfeitores russos protestantes, da alta sociedade, e divulgado, para iluminação do povo russo, como anexo gratuito de jornais e outras edições. O caso de Richard é bonito porque é nacional. Entre nós, embora seja absurdo cortar a cabeça ao irmão só porque ele se tornou nosso irmão e sobre ele desceu a bem-aventurança, temos, repito, coisas nossas que não são nada piores. Temos o deleite histórico, directo e familiar da tortura por açoitamento. Nekrássov (2) tem uma poesia em que um mujique chicoteia o cavalo por altura dos olhos, uns «olhos meigos». Não há um russo que não tenha visto estas coisas, isto é à russa. Descreve um rocim fraquinho e sobrecarregado a marcar passo, não conseguindo avançar. O mujique bate-lhe, bate-lhe encarniçadamente e, afinal, bate sem perceber o que está a fazer, embriagado pelo espancamento, bate sem parar, cruelmente: «Mesmo que não possas, anda, morre mas anda!» O rocim esforça-se, o mujique começa a zurzir o bicho indefeso por altura dos olhos que choram, dos «olhos meigos». A pileca, excedida, consegue arrancar do sítio e põe-se a andar, toda a tremer, sem fôlego, como que de lado, com uns saltinhos nervosos de uma maneira antinatural e vergonhosa... na poesia de Nekrássov é uma coisa terrível. Mas é apenas um cavalo, o próprio Deus criou-os para serem chicoteados. Os tártaros explicaram-nos isso e deixaram-nos de lembrança o chicote. Mas também é possível chicotear pessoas. E assim, um senhor culto e intelectual e a sua senhora açoitam a própria filha, uma criancinha de sete anos, com varas... tenho isso anotado em pormenor. O paizinho está contente por as varas terem nós,já que assim «é mais sensível», diz ele, e toca de torturar a própria filha. Sei que existem açoitadores que se esquentem de volúpia a cada golpe, literalmente, mais e mais, a cada golpe, progressivamente. Açoitam um minuto, açoitam cinco minutos, dez minutos, e mais, cada vez com mais rapidez, causando cada vez mais dor. A criança grita, a criança já não pode gritar, sufoca: «Papá, papá, paizinho, paizinho!» A história, por qualquer acaso inconveniente, chega ao tribunal. Arranja-se um advogado. O povo russo há muito que chama ao advogado «alma vendida». O advogado berra em defesa do cliente: «O caso é tão simples, tão familiar e tão vulgar, e eis que um pai dá umas ensinadelas à filha e, para vergonha dos nossos dias, o caso vem parar ao tribunal!» Os jurados deixam-se convencer, saem e lavram uma sentença absolutória. O público ruge de alegria por o carrasco ter sido absolvido. Oh, que pena eu não ter estado lá, gritaria uma proposta de criação de uma bolsa de ensino com o nome de carrasco!... São quadros encantadores. Mas, sobre as criancinhas, tenho ainda coisas melhores, tenho uma grande, uma enorme colecção de histórias sobre crianças russas, Aliocha. Os pais de uma garota pequenina, de cinco aninhos, «gente respeitabilíssima da função pública, culta e bem-educada», ganharam ódio pela filha. Afirmo mais uma vez, com insistência, que há no meio da humanidade gente com uma particularidade especial: o amor de torturar crianças, mas só crianças. Estes carrascos, como pessoas europeias cultas e humanistas, têm até uma atitude benevolente e meiga para com todos os outros sujeitos do género humano, mas adoram torturar crianças e, neste sentido, gostam mesmo de crianças. É o facto de estas criaturinhas serem indefesas que seduz os carrascos, a confiança angélica da criança que não tem para onde fugir nem a quem recorrer é que... esbraseia o sangue podre do carrasco. Em qualquer pessoa, é claro, reside uma fera, uma fera em raiva, uma fera em excitação voluptuosa pelos gritos da vítima torturada, uma fera incontrolada, desacorrentada, uma fera doente de doenças adquiridas na depravação escorridas das gotas, dos fígados estragados, etc. Os pais desta pobre menina submetiam-na aos mais variados suplícios. Batiam-lhe, açoitavam-na, davam-lhe pontapés, cobriam-lhe o corpo de nódoas negras sem saberem sequer por que razão o faziam. Por fim, chegaram ao requinte máximo: no tempo dos frios fechavam-na na retrete gelada durante a noite só porque ela não pedia o bacio (como se uma criança de cinco anos, mergulhada no seu sono angélico e profundo pudesse pedir o bacio), sujavam-lhe o rosto com as fezes e obrigavam-na a comer essas fezes, e era a mãe, a própria mãe que a obrigava! E essa mãe podia dormir quando à noite se ouviam os gemidos da pobrezinha fechada no lugar imunda! Compreendes isto? Uma criaturinha pequenina, incapaz ainda de consciencializar sequer o que se passa, no lugar imundo, à escuridão e ao frio, a bater com o punhozinho minúsculo no peito dorido, a chorar lágrimas sangrentas e a suplicar ao «deuzinho» que a defenda, compreendes este absurdo, meu amigo e irmão, meu noviço resignado de Deus, compreendes por que foi criado e por que raio é necessário este absurdo? Dizem que sem ele o homem não poderia viver na Terra porque desconheceria o bem e o mal. Para que serve conhecer este bem e este mal diabólicos se o preço é tão alto? Todo o mundo do conhecimento não valerá estas lágrimas de criança dirigidas ao «deuzinho». Já não falo do sofrimento dos adultos, esses comeram a maçã, que vão para o diabo e que o diabo os carregue, mas estas, estas! Faço-te sofrer, Aliocha, parece que não estás bem. Se quiseres não falo mais.
- Não faz mal, eu também quero sofrer --murmurou Aliocha.
- Só mais um pequeno quadro, por ser curioso e extremamente característico, que por acaso acabei de ler numa das colectâneas das nossas crónicas antigas, na revista Arquivo ou Antiguidade, tenho de verificar, já me esqueci em qual delas. Passava-se nos tempos mais tenebrosos da servidão da gleba, no princípio deste século, e viva o libertador do povo! (3) Havia na época um general, um general com relações de alto nível e riquíssimo proprietário rural desses que (já raros na altura), ao reformarem-se e irem descansar na velhice, estavam convencidos de que mereceram durante os anos de serviço o direito de vida e de morte dos seus súbditos. Existia esse género de gente. Pois bem, o general vai viver para a sua herdade com duas mil almas, arrogante, trata com desprezo os vizinhos menos abastados, como se fossem comensais parasitas ou bobos. Tem um canil com centenas de cães e quase uma centena de moços, todos fardados, todos a cavalo. Uma vez, um rapazinho de oito anos, filho de uma criada, atirou uma pedra na brincadeira e feriu a para de um dos galgos preferidos do general. «Por que é que o meu cão preferido coxeia?» Dizem-lhe que foi o rapaz que o magoou com uma pedra. «Ah, ah, foste tu!», olha para ele o general, «prendei-o!» Pegaram no rapaz, tirando-o à mãe, e tiveram-no toda a noite fechado. De manhã cedo sai o general, vestido de gala para a caça, monta a cavalo, à volta delee stão os moços e os comensais, todos a cavalo, os caçadores, os cães. Também lá está a criadagem, para fins edificantes e, à frente de todos, a mãe do rapaz culpado. Tiram da prisão o rapaz. Está um dia de Outono pardo, frio, nublado, um bom dia para a caça. O general manda despir o rapaz, que, todo nu, treme, louco de medo, sem se atrever a chorar... «Enxotai-o!» manda o general. «Corre, corre!», gritam-lhe os moços. O rapaz corre... «Aboca!», berra o general e açula contre ele toda a matilha de galgos. Os cães, aos olhos da mãe, caçam de despedaçam a criança!... O general, ao que parece, foi detido e dado como incapaz. Então...o que fazer com ele? Fuzilá-lo? Fuzilá-lo para satisfazer o sentimento moral? Diz, Aliocha?
- Fuzilá-lo! --pronunciou baixinho Aliocha, levantando os olhos para o irmão com um sorriso convulso.
- Bravo! --vociferou Ivan numa espécie de êxtase. - Se tu próprio o dizes, então... Bravo, monge! Com que então é esse o diabinho que se esconde no teu coração, Aliocha Karamazov!
- Disse um disparate, mas...
- Isso mesmo: mas... --gritava Ivan. - Fica sabendo, noviço, que os disparates são muito necessários na Terra. O mundo assenta em disparates e, sem eles, talvez não acontecesse nada na Terra. O que sabemos, sabemos!
- O que é que sabes?
- Não compreendo nada --continuava Ivan, como que a delirar --, nem sequer quero agora compreender. Quero ficar só com o facto. Há muito que decidi não compreender. Quando quero compreender alguma coisa, traio imediatamente o facto, por isso decidi ser fiel ao facto.
- Por que estás a pôr-me à prova? --exclamou Aliocha, dilacerado e com amargura. - Dizes-mo, finalmente, ou não?
- Claro que digo, trouxe a conversa até este ponto exactamente para o dizer. És tão querido para mim que não te quero perder e não te vou ceder ao teu Zóssima.
Ivan calou-se por um momento, o rosto dele tornou-se de repente muito triste.
- Ouve: eu só falei das crianças para que o problema se tornasse mais evidente. É de propósito que não quero falar das outras lágrimas humanas, de que a Terra está impregnada da crosta até ao centro, reduzi o tema intencionalmente. Sou um bicho miúdo e reconheço humildemente que não consigo compreender por que existe este estado de coisas. Tal significa que a culpa é das próprias pessoas: foi-lhes dado o paraíso, mas desejaram a liberdade e roubaram o fogo do céu, sabendo que seriam infelizes; portanto, não há razão para termos pena delas. Oh, de acordo com a minha terrena e miserável mente euclidiana, sei apenas que o sofrimento existe, que não existem culpados, que as coisas decorrem umas das outras directa e simplesmente, que tudo corre e se equilibra... mas trata-se apenas de um absurdo euclidiano, sei bem que é assim e que não poderia concordar em viver de acordo com ele! Quero lá saber que não haja culpados e que eu tenha consciência disso, preciso de expiação, senão mato-me. E esta expiação não deve acontecer num infinito qualquer e sem se saber quando, mas aqui e agora, na Terra, para que eu veja com os meus olhos. Eu tinha fé, e agora quero ver eu próprio e se, na altura de ver, já estiver morto, que me ressuscitem porque, se tudo acontecer sem mim, será demasiado injusto. Será que sofri tanto para adubar comigo mesmo, com a minha preversidade e o meu sofrimento, uma futura harmonia para os outros? Quero ver com os meus próprios olhos o gamo a deitar-se ao lado do leão e o degolado a levantar-se e a abraçar o seu assassino. Quero estar cá quando todos, de repente, souberem por que foi tudo assim. Neste desejo se fundamentam todas as religiões da Terra, e eu sou crente. Entretanto há o problema das criancinhas. O que vou fazer com ele? É uma questão que sou incapaz de resolver. Repito pela centésima vez: os problemas são infindáveis, mas eu falo apenas das crianças, porque assim se torna extremamente claro o que preciso de dizer. Ouve: se toda a gente tem de sofrer para comprar ao preço do sofrimento a harmonia eterna, o que têm as crianças a ver com isso, és capaz de me dizer? É de todo incompreensível por que devem também elas sofrer, por que devem pagar com o seu sofrimento a harmonia. Será porque tambem elas farão parte do material e adubam consigo mesmas a harmonia dos outros, a futura harmonia? Compreendo a solidariedade no pecado entre as pessoas, compreendo a solidariedade na expiação, mas não pode existir uma solidariedade no pecado com as crianças e, se for verdade que também elas são solidárias com os pais nos crimes que estes cometem, essa verdade não é com certeza deste mundo e, para mim, é incompreensível. Talvez algum brincalhão seja capaz de dizer que, em qualquer caso, a criança vai crescer e pecar; no entanto, o menino de oito anos foi despedaçado pelos cães e não cresceu. Oh, Aliocha, não estou a blasfemar! Compreendo bem que abalo será em todo o universo quando tudo na Terra e sob a Terra se fundir num único clamor encomiástico e tudo o que é e que foi vivo exclamar: «Tens razão, Senhor, porque os teus caminhos se revelaram!» Quando a mãe se abraçar ao carrasco cujos cães despedaçaram o seu filho, e todos três clamarem em lágrimas: «Tens razão, Senhor!», nisto residirá, é claro, o coroamento da iluminação e tudo ficará esclarecido. Mas é este o cerne da questão, e é isso que eu não sou capaz de aceitar. Por isso, enquanto vivo na Terra, apresso-me até esse momento, ou ressuscitar nesse momento para ver, que eu próprio clame com todos os outros, olhando para a mãe abraçada ao carrasco do seu filho: «Tens razão, Senhor!»... mas não quero clamá-lo assim. Enquanto ainda há tempo, apresso-me a separar-me disso e, como tal, rejeito a harmonia suprema. Ela não vale uma lágrima da criança torturada que batia com o punhozinho no peito e, com lágrimas não expiadas, rezava no cubículo fedorento ao «deuzinho»! A harmonia suprema não vale as lágrimas da menina porque essas lágrimas ficaram sem expiação. Devem ser expiadas, senão não pode existir qualquer harmonia. Mas com quê, com que vamos expiá-las? Será possível tal coisa? Com a vingança? Mas para que preciso de vingança, para que preciso do inferno para os carrascos, se as vítimas já foram chacinadas, e de que harmonia se pode tratar se houver inferno? Quero perdoar e abraçar, não quero que se continue a sofrer. E se os sofrimentos das crianças foram acrescentados para perfazer a soma de sofrimentos necessária à compra da verdade, então afirmo desde já que toda a verdade não vale esse preço. Ao fim e ao cabo, o que eu quero é que a mãe não abrace o carrasco cujos cães despedaçaram o filho dela! Que ela não se atreva a perdoar-lhe! Se ela quiser, que perdoe por si, que lhe perdoe o incomensurável sofrimento materno; mas não tem o direito de perdoar o sofrimento do seu filho despedaçado, que não se atreva a perdoar ao carrasco, nem que a própria criança lhe perdoasse! Mas, se assim for, se não há direito de perdoar, onde está então a harmonia? Haverá em todo o mundo uma criatura que possa e tenha o direito de perdoar? Eu não quero a harmonia, por amor à humanidade, não quero. Quero antes ficar do lado dos sofrimentos não vingados. É melhor que eu fique com o meu sofrimento não vingado e com a minha indignação não saciada, mesmo que não tenha razão. Também estabeleceram um preço demasiado alto para a harmonia, está para além das nossas posses pagar tanto pela entrada. Por isso apresso-me a devolver o meu bilhete de entrada. E, se for um homem honesto, tenho a obrigação de o devolver com a máxima antecedência. É o que estou a fazer. Não quer dizer que não admita Deus, não, Aliocha, apenas lhe devolvo, com todo o respeito, o bilhete.
- Isso é uma revolta --disse Aliocha, cabisbaixo, numa voz muito ténue.
- Revolta? Eu não queria ouvir-te dizer esta palavra --disse Ivan com um sentimento profundo. - É impossível viver-se revoltado, e eu quero viver. Diz-me tu próprio e frontalmente, responde-me: imagina que tu mesmo estás a construir o edifício do destino humano, com o objectivo de, no fim, fazeres com que as pessoas sejam felizes, que recebam a paz e o sossego, mas que para isso seria ncessário e inevitável martirizar uma criatura minúscula, aquela criancinha que batia com a maozinha no peito, e que seria sobre as lágrimas não vingadas dela que tinhas de erguer esse edifício; concordarias então, nessas condições, em seres o arquitecto? Diz, e não mintas!
- Não concordaria --disse baixinho Aliocha.
- E podes admitir a ideia de que as pessoas para quem estás a construir concordem em aceitar a sua felicidade à custa do sangue injustificado do pequenino mártir e, ao aceitarem-na, ficarem felizes para sempre?
- Não, não posso admitir isso. Irmão --disse de súbito Aliocha com os olhos cintilantes--, acabaste de dizer: existirá em todo o mundo alguém que possa e tenha o direito de perdoar? Sim, existe, e pode perdoar tudo, tudo e todos, por tudo, porque ele próprio deu o seu sangue inocente por todos e por tudo. Esqueceste-te dele, mas é nele que se baseia o edifício, é a ele que exclamarão: «Tens razão, Senhor, porque se revelaram os teus caminhos!»
- Ah, ah, o «único sem pecado» e o seu sangue! Não, não me esqueci dele e, pelo contrário, já estava admirado por teres demorado tanto a trazê-lo à baila, porque normalmente, durante as discussões, todos os vossos o alegam antes de tudo. Sabes, Aliocha, não te rias, é que uma vez compus um poema, há coisa de um ano. Se puderes perder comigo ainda mais uns dez minutos, conto-to.
- Escreveste um poema?
- Oh, não, não o escrevi --riu-se Ivan-- e nunca na vida escrevi dois versos sequer. Mas fantasiei este poema e fixei-o. Imaginei-o com ardor. Serás tu o meu primeiro leitor, ou seja, o meu primeiro ouvinte. Na verdade, porque haveria de perder o meu único ouvinte? --soltou uma risada. - Então, queres que te conte?
- Sou todo ouvidos --respondeu Aliocha.
- O meu poema chama-se «O Grande Inquisidor», uma coisa absurda, mas apetece-me falar-te dele.
(1) Trata-se de Juliano, e não de João, Hospitaleiro, acerca do qual apenas existem lendas. Ivan, pelos vistos, refer-se a uma obra de Flaubert que foi publicada na Rússia em tradução de Ivan Turguénev, em 1877. (NT)
[Nota do blogger: Gustave Flaubert A Lenda de São Julião Hospitaleiro: em português: publicado na Assírio & Alvim e na Relógio D`Água, Contos.]
(2) Nicolai Nekrássov (1821-1877), poeta russo. (NT)
(3) Alexandre II, imperador russo, que aboliu a servidão da gleba em 1861. (NT)"
Fiódor Dostoiévski (trad. Nina Guerra e Filipe Guerra), Os Irmãos Karamázov, Editorial Presença, 2002.
posted by Luís Miguel Dias sábado, novembro 22, 2008