sábado, novembro 15, 2008
Passei metade da manhã de hoje com SOB UM FALSO NOME, de Cristina Campo.
Aqui fica um fragmento de Uma misteriosa americana que teve como arauto T.S. Eliot. Retrato de Djuna Barnes.
Os cinco dias sem dizer nada, peço desculpa.
"Uma misteriosa americana que teve como arauto T.S. Eliot. Retrato de Djua Barnes
Vinte ou trinta anos representam pouco numa vida que baniu dos seus limites o aplauso, essa mortal medida do tempo. Existe em Nova Iorque --ou em Paris?-- uma elevada mente feminina, uma artista pura, cujo nome acontece ficar sempre de fora em todos os repertórios: Djuna Barnes. Ela podia ser, para aqueles que a conhecem, a grande desconhecida do século XVII, uma espécie de Condessa de Winchilsea. Dela aparece um trabalho todos os vinte anos. Dela se conhece apenas um retrato que, para ser perfeito, mais parece uma máscara fúnebre. Nele Djuna Barnes surge em perfil branco: um pequeno chapéu preto aperta-lhe a cabeça, e dele se suspende, ocultando o perfil, rígida como as grades de uma prisão, a grossa rede de um véu preto. O lábio inferior habsbúrgico, um pouco saído, e o nariz perfeito, desolado, inclemente. O pescoço esbelto, envolto numa gola de pele, está descoberto, e se eu o olhar melhor, indiferente, com essa indiferença terrível dos desarmados. Uma pérola brilha no lóbulo precioso da orelha. É o retrato de uma mulher sem idade, que lança a sua inflexível fragilidade, a sua sepulcral elegância contra esse Argos das mil cabeças a que ela «chama o horror geral da boca comum». Um retrato de princesa aprisionada, que não desdenharia o escapulário da trapista. A sua poesia não deixa imaginar senão aquilo a que Bloy chamava «uma aparente Vida terrestre»; uma figura determinada a tornar-se sombra, espectro, e a adorar, como acontece a um espectro, as formidáveis coisas abandonadas pelo homem e já tocadas pela lividez da morte: os versos duma feitura formidável, as armas ferozmente elaboradas, o gesto perfeito, a Europa. Podemos tentar seguir esta sombra feminina, o modo como nela se «associa magestade e lenda», através das «ferozes viagens» da sua mente de um a outro lugar desses lugares moribundos: pequenas, orgulhosas cidades alemãs, a velha Londres, nobres e velhas casas da Áustria ou da Polónia, perdidas salas italianas, a sala púrpura de Santa Úrsula de Carpaccio. E essas altas igrejas católicas que se abatem sob o peso das suas pratas gastas, colmeias vazias inacianas; e criaturas soberbas de dedicação, desdém, demência, criaturas de grande raça e celestial ironia, de palavras torturadas e irrevogáveis como cartas góticas. O espanto é grande ao reconhecer que de uma ponta a outra as obras de Djuna Barnes são uma espécie de horror, o horror sagrado de uma consciência inclemente e reprovadora, unicamente dedicada ao comércio com os grandes e com os mortos (ou com os loucos e com os santos).
Declinam o silolóquio fora de moda
sendo um modo de conversarem
com os melhores que tu."
Cristina Campo (trad. Armando Silva Carvalho), Sob um falso nome, Assírio & Alvim, 2008.
posted by Luís Miguel Dias sábado, novembro 15, 2008