A montanha mágica

quinta-feira, setembro 11, 2008

Meditação sobre uma Frase de Santa Teresa






fotograma de Síndromas e um Século, de Apichatpong Weerasethakul



"Há uma linha de prosa nos escritos de Santa Teresa que me parece cada vez mais apropriada a este tempo, por isso vos ofereço uma meditação sobre essa frase. Serviu de epígrafe a uma recente colectânea de poemas de Tess Gallagher, minha querida amiga e companheira que hoje está aqui comigo, e cito a partir da sua epígrafe.
Santa Teresa, essa mulher extraordinária que viveu há 373 anos, disse: «As palavras levam aos gestos... Preparam a alma, aprontam-na e comovem-na à ternura.»
Há luminosidade e beleza nesse pensamento expresso precisamente desta maneira. Vou dizê-lo de novo, porque há também algo um tanto estranho neste sentimento que vem até nós a esta distância, de uma época seguramente menos favorável à importante conexão entre o que dizemos e o que fazemos: «As palavras levam aos gestos... Preparam a alma, aprontam-na e comovem-na à ternura.»
São um pouco mais do que misteriosas, para não dizer --perdoem-me-- místicas estas especiais palavras e a maneira como Santa Teresa as usou, como todo o peso e toda a fé. É bem verdade que percebemos que nos surgem como ecos de um tempo mais antigo, mais ponderado. Especialmente a referência à palavra «alma», uma palavra que hoje não encontramos muito fora da igreja, talvez só na secção «soul» [alma] das lojas de discos.
«Ternura» -- aí está outra palavra que também não se ouve muito hoje, por certo não numa ocasião pública, jovial como esta. Pensem só: qual foi a última vez que usaram a palavra ou ouviram usá-la? Aparece tão pouco como a outra palavra, «alma».
Há uma personagem maravilhosamente descrita, chamada Moiseka, no conto de Tchekov sobre o «Guarda n.º 6» que, embora internado na ala dos doidos do hospital, adquiriu o hábito de se dar a um certo tipo de ternura. Escreve Tchekov: «Moiseka gosta de se tornar útil. Dá água aos seus companheiros e tapa-os quando estão a dormir; promete a cada um trazer um kopek e fazer-lhe um boné novo; dá de comer à colher ao seu vizinho de esquerda, que está paralisado.»
Embora a palavra ternura nãos eja utilizada, sentimos-lhe a presença nestes pormenores, mesmo quando Tchekov introduz um desmentido com este comentário ao comportamento de Moiseka: «Ele age deste modo não por compaixão ou por quaisquer considerações de carácter humano, mas por imitação, dominado inconscientemente por Gromov, o seu vizinho do lado direito.»
Numa alquimia provocatória, Tchekov combina palavras com gestos para nos levar a reconsiderar a origem e a natureza da ternura. De onde vem ela? Como gesto, pode ainda comover o coração, mesmo se abstraída de motivações humanas?
De certo modo, a imagem do homem isolado a desenvolver gentilezas sem expectativa ou até sem consciência disso surge perante nós com uma beleza estranha, que somos levados a testemunhar. Pode até reflectir-se sobre as nossas vidas com um olhar interrogador.
Há outra cena de «Guarda n.º 6» em que dois personagens, um médico reformado e um chefe de correios autoritário, mais velho, se encontram subitamente a discutir a alma humana.
«- Então não acredita na imortalidade da alma? --pergunta de repente o chefe de correios.
- Não, respeitável Mihail Averyanitch; não acredito nem tenho fundamentos para acreditar.
- Admito que também tenho as minhas dúvidas --reconhece Mihail Averyanitch. - E, contudo, tenho a sensação de que nunca vou morrer. Oh, penso para comigo: ´Velho malandro, já devias estar morto!` Mas há uma vozinha na minha alma que diz: ´Não acredites nisso; tu não morres.`»
A cena termina mas as palavras ficam como gestos. Nasce «uma vozinha na alma». E a forma como pusemos de parte certos conceitos sobre a vida, sobre a morte, dá de repente, de modo inesperado, lugar a uma crença de natureza admissivelmente frágil mas insistente.
Muito tempo depois daquilo que eu disse ter-se varrido do vosso espírito, sejam semanas ou meses, e de só restar a sensação de se ter assistido a um grande acontecimento público a assinalar o fim de um período significativo das nossas vidas e o início de um outro, tentem então, se costumam traçar os vossos destinos, recordar que as palavras, as palavras justas e verdadeiras, podem ter a força de gestos.
Lembrem-se também dessa palavra pouco usada que caiu fora do domínio público e privado: ternura. Pode doer. E dessa outra palavra: alma --chamem-lhe espírito, se quiserem, se assim for mais fácil marcar o território. Não se esqueçam, também dela. Prestem atenção ao espírito das vossas palavras, dos vossos gestos. Basta como preparação. Basta de palavras."


in heroísmos não, por favor, de Raymond Carver, Editorial teorema, 1993.


posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, setembro 11, 2008

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