sexta-feira, setembro 26, 2008
"O elemento criador: inspiração e êxito
No que se disse anteriormente, definem-se as primícias da graça como uma característica especial de acções que não podem ser exigidas nem forçadas, e que procedem totalmente da livre iniciativa. Tal característica verifica-se também no modo de realização próprio da obra e da acção criadoras. E daí resulta a seguinte antítese: a actividade criadora distingue-se do trabalho como o acto gracioso se distingue da consequência jurídica.
O trabalho procede da reflexão e do esforço e pode realizar-se em todo o tempo, dentro dos limites marcados pelas relações exteriores e pela capacidade interna. Brota da inspiração e, por isso, necessita de uma hora propícia: que venha a inspiração, que se ilumine a ideia, que as condições do êxito coincidam e as forças interiores se harmonizem. O acto criador não pode ser calculado nem obtido pela força. Como todo o imprevisível, acontece «quando quer».
Não significa isto que as grandes obras e acções apareçam por si mesmas. Pelo contrário, pressupõem um trabalho incessante, uma intensa concentração e muita renúncia. Não obstante, tudo isto apenas consegue dispor, assegurar e desenvolver o processo fundamental da produção, a inspiração, sem que de nenhum modo a possa forçar. Quanto ao êxito --essa benévola conexão das coisas entre si, que torna a realidade acessível à ideia conhecida e possibilita a sua execução-- menos ainda pode ser adquirido pela força. O cálculo, a pressão exterior e a necessidade constituem mesmo um obstáculo. Precisamos, assim, de um ambiente em que a forma possa emergir, em que os elementos se unifiquem e a realização se consiga.
É certo que há meios, às vezes muito estranhos, para ajudar o processo criador. Todavia, só dentro de certos limites é que conseguem produzir efeito e, mesmo assim, com muitos riscos. Basta lembrar o papel desempenhado na vida dos grandes artistas pelos excitantes e pelos processos de concentração; o modo como o sonho pode servir a criação; e, enfim, a importância dos presságios, dos astros e, de uma maneira geral, de todo a «superstição» na actividade das personalidades criadoras. São vários os factores de uma técnica de produção. Mas, rigorosamente falando, ao criador só lhe é dado preparar as condições, estar alerta e pagar, pelo restante, o preço exigido.
É impossível determinar donde vem a inspiração. O trabalho é um processo que nasce da inteligência e da decisão da vontade e que se executa dentro de uma transparente lógica de esforço e rendimento. Pode ser tão matemático que pouco interesse a pessoa que o realiza, e pode mesmo chegar a um grau tal de despersonalização que o trabalhador se transforme em simples espectador da máquina. A inspiração, pelo contrário, tem uma origem indeterminável. Quando se fala de um centro criador no indivíduo, cuja forma mais expressiva se chama genialidade, apenas nos referimos a um simples nome.
O homem sente que esse centro é um dos bens mais pessoais que possui. Ao criar, experimenta um profundo sentimento de si mesmo que pode chegar até ao orgulho e à «hybris». O sujeito que cria é ele mesmo, no sentido mais vital da palavra. Mas por outro lado, esse ponto de origem apresenta-se como que situado fora da personalidade,acima ou abaixo dela ou ultrapassando em interioridade o seu estado de espírito. É quase uma espécie de soberano em relação ao livre arbítrio, a ponto de poder travar as iniciativas e contrariar os seus mais poderosos anelos vitais.
Esta soberania do poder da inspiração exprime-se --de acordo com representações herdadas dos antigos-- pela palavra «génio». A seu respeito, temos a sensação de que o seu ponto de partida se acha orientado para o conjunto de toda a existência. Daqui deriva o facto de que as atitudes do grande criador, dos génios, adquirem, por vezes, um carácter de verdadeira repercussão na estrutura do mundo, que só se pode designar pelo vocábulo «cósmico». Quando Dante e Shakespeare falam, parece que os próprios fundamentos do orbe se abalam.
Pelo que se refere ao êxito, o elemento que o decide acha-se desde o princípio, não no indivíduo que cria, mas na totalidade da existência. Trata-se da conjugação de infinitos factores, inacessíveis à vontade consciente ou inconsciente, por mais poderosa e segura que ela seja. Referimo-nos ao momento fecundo, ao favor de uma hora, à conjuntura histórica, etc. Claramente se vê como é difícil e exigente esse elemento, se pensamos, por exemplo, na enorme quantidade de circunstâncias, da mais diversa natureza, que tiveram de reunir-se para tornar possível a Divina Comédia ou os dramas de Shakespeare.
O momento do favor objectivo adquire um carácter especial quando se verifica segundo uma forma extraordinária: a sorte. Por vezes, é curioso observar como caminham estranhamente juntos o poder e o imprevisível, a segurança e o risco contínuo. A história mostra nesse terreno como tem sido extraordinàriamente intenso esse sentimento entre os homens de acção. O fenómeno desemboca por sua vez no problema do destino, de que trataremos no próximo capítulo.
Mas é preciso insistir que a inspiração e o êxito, a iluminação interior e a hora propícia, não andam necessàriamente juntos. É uma coisa admirável quando isso acontece e quando as circunstâncias individuais e gerais se põem à disposição da obra e da vontade de acção. Mas também pode suceder o contrário, e temos então a tragédia do criador ou do herói infortunado.
Tais fenómenos mostram-nos que a criação tem um carácter semelhante ao da graça. Seria cómoda afirmar que na realidade todas as coisas têm uma causa necessária, e se desenrolam e se ligam umas às outras sem solução de continuidade e que, por essa razão, o sentimento deste carácter de graça é uma ilusão, embora esta ilusão seja de certo modo significativa. Num sentido que se move por causalidades mecânicas, não existiria nem criação nem liberdade, e tudo ficaria reduzido a uma necessária sucessão de processos e nada mais.
Tal concepção é falsa e profundamente indigna. Os mecanismos formam a armação do mundo, o sistema de funções que asseguram a sua sobrevivência. Mas o mundo contém em si um outro elemento, precisamente aquele de que brota a verdadeira criação."
Romano Guardini (trad. Domingos Sequeira), Liberdade Graça Destino, Editorial Aster, Lisboa, 1958.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, setembro 26, 2008