domingo, setembro 14, 2008
"As primícias da graça nas relações de autoridade
E o fenómeno adquire um carácter inteiramente novo nas relações de superioridade e subordinação que não e fundamentam no direito estrito, mas no ser; que não derivam do cargo ou da autoridade, mas da força e do sentido da pessoa. Assim, por exemplo, as relações entre o mais forte e o mais fraco, o rico e o pobre, o superior, por características biológicas ou espirituais, e o inferior. Em toda elas se verifica o elemento gracioso, a generosidade, o perdão, a salvação.
A verdade é que a situação é, nestes casos, bastante mais complexa, uma vez que, estando ausente o elemento jurídico, há o perigo de que o beneficiado pela «graça» se sinta ameaçado na sua dignidade. Dentro da ordem jurídica, tal caso não acontece. Com efeito, embora o detentor da autoridade seja o mesmo que concede determinada graça, fá-lo precisamente enquanto tal, e não como um simples indivíduo. Por isso, o direito de graça é a outra face --extraordinária-- do mesmo problema; a primeira --a ordinária-- é a constituída pela garantia dada pelo detentor do poder de sustentar as normas jurídicas justas. É desta maneira que se evita o excesso de pessoalismo e se salvaguarda a dignidade do agraciado.
Mas as coisas passam-se de outra forma nos casos atrás citados. Neles não existe qualquer ordem jurídica, mas uma simples relação de superioridade. É nesso ponto que se pode criar um problema para a personalidade do inferior. Se é o inferior quem tem de reconhecer ao superior o direito de lhe conceder uma graça, o superior será forçado a eliminar do acto o seu próprio eu, e a não ambicionar mais do que a mera administração dessa possibilidade. Talvez estas palavras contenham uma definição exacta da verdadeira grandeza."
Romano Guardini (trad. Domingos Sequeira), Liberdade Graça Destino, Editorial Aster, Lisboa, 1958.
posted by Luís Miguel Dias domingo, setembro 14, 2008