sexta-feira, setembro 12, 2008
"O Estado em nós
Para uma pessoa se enquadrar bem no seio do Estado e do povo, precisa de uma visão recta, de um juízo recto e de boas oportunidades. É necessário ter uma orientação política, não essa que se aprende nos livros e nos cursos, mas essa outra que se vai formando lentamente. Lá por um estudante ter feito todo o curso de medicina com ardente entusiasmo, não significa que seja já um médico magnífico. Para isso requere-se muito tempo. Sê-lo-á quando conhecer vitalmente o homem saudável e o doente, o corpo e a alma de um e de outro, quando conhecer não só com o entendimento (nesse caso, os melhores médicos seriam os que melhores alunos da Faculdade), mas através desse contacto vital com o doente concreto que tem ali na sua presença, quando for dotado de um olho que, através dos sintomas externos, saiba penetrar até à própria raiz da doença, saiba ver que o corpo está doente por causa da alma e a alma por causa do corpo, quando tiver um ouvido fino, que capte não só o que se diz abertamente, mas o que se diz a meias e até o que se cala. É verdadeiro médico quem possui tacto fino e mão segura, firme e terna ao mesmo tempo, quem tem uma confiança esperançada no seu coração, no seu poder de curar e de libertar. Esse homem é um perfeito médico. Nesse caso, há «formação médica».
O mesmo acontece com um homem de Estado. Não é só a ciência, aliás necessária (quem se intromete em assuntos de governo sem um rigoroso conhecimento da sua missão é um irresponsável), que faz o homem de Estado, na verdadeira acepção da palavra. Só o é aquele que consegue uma atitude análoga, que vê com rigor o que é o «Estado», que intui o que é útil e o que é prejudicial ao Estado, que é dotado de uma potência criadora, construtiva e conservadora do Estado.
É desta atitude política que queremos falar. Primeiro, porque um dia alguns de nós terão deveres a cumprir na vida pública. Além disso, porque precisamente agora a questão política tornou-se urgente e inquietante de uma maneira especial. Também é nosso intuito fazê-lo da maneira mais simples possível. De coisas tão importantes como a essência do Estado, ou a maneira de estruturar a sociedade futura, falaremos muito pouco. Dedicaremos a nossa atenção a coisas miúdas. À semelhança dos outros capítulos, só nos interessa fornecer o instrumento de trabalho. Falaremos, é certo, de parlamento, autoridades e leis; mas só para vermos como se encontra na vida ordinária as raízes de todas estas coisas.
Com isto pretendo o que, na minha maneira de ver, é vital. Não me interessa dizer isto ou aquilo ou aquilo, mas apenas uma coisa: pôr a descoberto a atitude política. Se a tens, olhas à tua volta, observas, a cada movimento, cada leitura do jornal, dilata-te o horizonte. Se não a tens, então tudo é negociação, aborrecimento e intriga.
Tenho de pressupor, para já, que tu não és desses que saem da sede do partido carregado de caixas de ficheiro, dispostos a revolucionar o mundo do pensamento com os milhares de títulos que essas caixas costumam conter: «nacional», «internacional»; «popular», «humanitário»; «fidelidade ao Estado», «revolucionário»...
Hoje em dia, toda a gente tem essas coisas espalhadas pelos bolsos. Abrir os olhos, examinar os gestos alheios, reflectir demoradamente sobre alguma coisa, isso já não é preciso. Os ficheiros resolvem tudo. Seria absolutamente supérfluo perguntarmos a nós próprios como actuariam, em dadas circunstâncias, certas palavras ou normas, ou determinados acontecimntos. Surge qualquer ideia ou aparece uma oportunidade, ou regista-se qualquer acontecimento? Deita-se um olhar; --já está! esta ou aquela atitude! Vai-se à caixa --aqui está! Pronto! É formidável não ser preciso pensar! Nós, pela nossa parte, não estamos dispostos a que os partidos nos carimbem, nem que os jornais nos esmaguem."
Romano Guardini (trad. Ruy Belo), Cartas de Formação, Editorial Aster, Lda, Lisboa, 1960.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, setembro 12, 2008