sexta-feira, setembro 05, 2008
"O Estado em nós
O Estado nasce da livre actuação de cada particular. É o que cada um faz dele. O Estado tem as suas raízes em mim, em ti... Luís XIV disse um dia, com a auto-suficiência do monarca absoluto: «O Estado sou eu». O mesmo podemos dizer em rigor todos nós. Isto deveria encher-nos de responsabilidade. O Estado não é uma coisa já acabada, que está aí; é uma coisa que incessantemente se faz. E faz-se não por si mesmo, como uma planta; tem de ser feito. Mas quem o há-de fazer? Não um «alguém» misterioso, impessoal, mas tu!
É natural que, no Estado, tenha de haver uma ordem; de outra maneira, estaria tudo estragado. Esssa ordem, porém, há-de encarnar em pessoas que saibam que não mandam em escravos, mas que tutelam a ordem estatal no confronto de homens livres, e, além disso, que os que lhes devem obedecer não são criados, mas pessoas responsáveis perante Deus.
Pode muito bem acontecer que o Estado oprima o particular. Repete-se contìnuamente o caso de o Estado, em nome do bem comum, minimizar o indivíduo. Já tem chegado a fazer uso das violências, violando os direitos privados e dando cabo de muitas vidas. Os últimos anos deram-nos a este respeito amargas lições. Apesar disso, o Estado é, no seu ser mais genuíno, uma missão imposta ao homem por Deus; missão que, se chega a consumar-se, constitui uma das supremas criações do poder humano.
Não podemos considerar o Estado como uma máquina que funciona às cegas. Nem como um edifício firme, que está aí, por dentro do qual toda a gente circula; nem como mera ordenação de afazeres em que se insere a vida. É certo que muitas vezes, não vai além disso: longe de nós deitarmos terra nos olhos, para não vermos semelhantes aberrações. Algum motivo haverá para instintivamente nos defendermos dele. Mas, apesar de tudo, não nos é lícito subtraírmo-nos à sua esfera de competência.
Prescindindo inteiramente de que possa ir parar às mãos de quem faça dele um negócio ou o converta em instrumento da sua ambição, havemos de pensar sempre na sua íntima verdade: o Estado tem de ser diferente, qualquer coisa de vital, contrapeso do nosso individualismo pessoal, uma construção poderosa, um organismo activo, prodigioso, onde encontre expressão, não o indivíduo, nem o reduzido círculo de amigos ou da família, mas o povo. Semelhante Estado, porém, só se torna vital quando nós nos comportarmos para com ele, não de uma maneira meramente passiva, deixando-o estar aí simplesmente, ao deus-dará, abandonando-o às mãos de soldados e de empregados irresponsáveis, mas de uma maneira activa, trabalhando-o nós próprios; quando nasce vitalmente da tua atitude, quando é «Estado em ti».
Romano Guardini (trad. Ruy Belo), Cartas de Formação, Editorial Aster, Lda, Lisboa, 1960.
posted by Luís Miguel Dias sexta-feira, setembro 05, 2008