terça-feira, agosto 26, 2008
Os olhos daqueles que por aqui vão passando, mais por acaso, mais distraidamente, ou com algum interesse ou sem interesse nenhum, já terão dado conta que a maior parte das citações observações ou intenções que por aqui se publicam são de vozes femininas.
Ponto. Sem mais considerações.
Acontece que ainda ando à procura das vozes femininas portuguesas, daquelas que são o que sou também, ainda só tenho três, distracção minha, imbecilidade minha, autismo meu, não desanimarei. Um destes dias um bolo de bolacha trazia o nome de outras duas que nunca lera, fez-me lembrar Grace.
Ana Teresa Pereira é uma dessas vozes, envolve-me totalmente, agarra-me, e lembro-me que foi dela que trouxe mais livros de uma vez só de qualquer livraria, só dela, muitos, e fui lê-los para a praia num agosto de muitos nevoeiros. E perdi-me, deliciado.
E gosto muito que ela não apareça por aí assim como quem anda por aí assim, que não apareça mesmo. Gosto muito. O estar sempre em bicos de pés deve cansar muito, deve atordoar. Pelo que se vê.
Ora, acontece que já não me lembro da última vez que Ana Teresa Pereira deu uma entrevista ou aceitou conversar com alguém para os outros. Mas fê-lo neste Agosto, no Jornal de Letras, Artes e Ideias, na quinzena que hoje termina, no número 988.
E vê-se que vem de outro lado, "o tempo, o espaço e a identidade não têm qualquer consistência", que diz coisas que mais ninguém diz, que nos faz levantar os olhos das letras para nos fazer desaparecer.
Vai haver novo livro no Outono, O Verão Selvagem dos Teus Olhos, e uma pessoa fica assim: contaminado, parado, varado. Atravessado. É de um verso de Yeats. E tem como banda sonora a música de Duke Ellington.
Olhem, sobre as personagens deambularem de uns livros para os outros: "Em especial nos últimos anos, os meus livros são muito cinematográficos. Tenho um pequeno grupo de actores, e eles representam as personagens, de certa forma são as personagens. Kevin é Kevin Bacon, Lizzie é Michelle Pfeiffer no tempo de Os Fabulosos Irmãos Baker. Um pequeno grupo de actores que passam de um livro para o outro, como se trabalhassem num teatro, sempre o mesmo; de vez em quando lembram-se da peça que representaram antes; como o velho actor de The Dresser, pintam a cara de negro para representar o rei Lear. E vão continuar a representar, mesmo quando eu não estiver aqui. Talvez repitam as mesmas peças, noite após noite, após noite."
"Qual foi a primeira personagem da sua escrita? Ainda a visita?
Um homem velho numa biblioteca; uma rapariga que se perde nas ruas numa noite de nevoeiro e encontra uma loja ainda aberta."
"Há quem detecte uma marca «gótica nos seus livros. Concorda?
Talvez. No filme Sunset Boulevard, quando William Holden segue pela alameda que leva à mansão, está a passar para um mundo diferente. Acho que isso acontece nos meus livros. Uma velha casa com um lago (ou uma piscina) à frente, duas casas iguais em frente uma da outra, uma biblioteca com uma lareira acesa, duas ou quatro personagens..."
E depois sobre aquilo que é inexplicável, que dá tremuras:
"É a literatura que a ajuda a «atravessar a noite»?
Os livros, os filmes. Quando comecei a escrever, pensava que os meus livros iam ficar, que iam ser traduzidos, enfim... Agora sei que isso não vai acontecer. O Cristopher Hampton não vai escrever uma peça baseada num livro meu, o David Cronenberg não vai fazer um filme... Talvez não passe o resto da minha vida a escrever, mas a fazer outra coisa. Mas continuarei a ler Richmal Crompton e William Irish, e a ver os filmes de Nicholas Ray e Hitchcock. Para atravessar a noite."
É absolutamente lamentável Ana Teresa ter de dizer isto; perdem os que não lêem português, perde Portugal.
E a entrevista termina com uma pergunta tão má tão má que já não há paciência, fica para o próximo post já a seguir.
A entrevista, ainda que pequena, é um acontecimento.
posted by Luís Miguel Dias terça-feira, agosto 26, 2008