sábado, abril 05, 2008
"Um dia depois do almoço de arroz cozido, Carlier pousou a chávena do café, sem lhe tocar, e disse:
- Que se lixe! Vamos mas é tomar um café decente ao menos uma vez. Vai lá buscar o açúcar, Kayerts!
- É para os doentes --disse o interpelado em voz baixa e sem levantar os olhos.
- Para os doentes? --troçou Carlier: - Bah!... Pois bem! Estou doente.
- Nao está mais doente que eu, e eu passo bem sem ele --respondeu Kayerts, conciliador.
- Vá! Venha mas é o açúcar, seu forreta velho traficante de escravos!
Kayerts olhou para ele espantado. Carlier sorria-se com toda a insolência que era capaz de mostrar. E de repente pareceu-lhe que nunca tinha visto aquele homem antes. Quem era? Não sabia nada dele. De que seria capaz? Apoderava-se dele uma emoção violenta, como se estivesse na presença duma coisa inesperada, perigosa, decisiva. Mas fez por responder com toda a compostura:
- Essa piada é de muito mau gosto. Não a repita.
- É piada? --disse Carlier, crescendo na cadeira. - Tenho fome, estou doente, não estou a brincar! Detesto hipocrisias. Tu és um hipócrita. Tu és um negreiro. Eu sou um negreiro. Neste país só há negreiros. Hei-de tomar café com açúcar hoje, dê lá por onde der.
- Proíbo-o de me falar nesse tom --respondeu Kayerts com uma clara resolução.
- Tu... O quê? --berrou Carlier, saltando.
Kayerts também se levantou.
- Eu sou seu chefe --começou, tentando dominar a voz que lhe tremia.
- O quê? --gritou o outro. - Quem é o chefe? Aqui não há nenhum. Aqui não há nada, a não ser tu e eu. Vai buscar o açúcar, seu pote...
- Tento na língua. Vá para o seu quarto --berrou Kayerts. - Está demitido... seu malandro!
- Carlier agarrou num banco. Dum momento para o outro tornara-se agressivo e perigoso.
- Seu civil gordo! Seu inútil! Toma!
Kayerts baixou-se do outro lado da mesa e o banco foi embater na parede.
Então, como Carlier estava a tentar virar a mesa, Kayerts, em desespero, fez uma investida cega, de cabeça baixa, como um porco encurralado, e derrubando o amigo, fugiu pela varanda para o seu quarto. Fechou a porta, puxou do revólver e ficou a arfar. Em menos de um minuto Carlier estava a bater à porta furiosamente, a uivar: - Se não trazes o açúcar, mato-te à vista como a um cão. Agora... um, dois, três. Não dás o açúcar? Já te mostro quem manda."
Joseph Conrad (trad. Carlos Leite), Histórias Inquietas, Assírio & Alvim, 2002.
posted by Luís Miguel Dias sábado, abril 05, 2008