quinta-feira, abril 10, 2008
"Silas Q. Scuddamore tinha inúmeros pequenos defeitos de natureza absolutamente respeitável e, não se sentindo inibido por pruridos de delicadeza, dava-lhes livre curso de mil maneiras um tanto discutíveis. A sua mais acentuada fraqueza era uma enorme curiosidade. Falador inato, a vida --sobretudo nos domínios em relação aos quais pouca experiência possuía-- interessava-o apaixonadamente. Levava até às raias da inconveniência a mania de fazer perguntas, conduzindo os seus inquéritos com indiscreta obstinação. Quando, por vezes, lhe confiavam correspondência dirigida a outrem, fora surpreendido a sopesar uma ou outra carta, a virá-la e revirá-la e a ler, com atenção, o nome e o endereço do remetente. Ao descobrir uma pequena fissura no tabique que separava o seu quarto daquele onde morava M.me Zephyrine, em vez de a tapar, dedicou-se a aumentá-la para melhor espiar o que fazia a vizinha.
Em finais de Março, porque a sua curiosidade ia aumentando com o decurso do tempo, alargou o buraco ainda mais, de modo a poder observar um recanto do quarto contíguo; quando, em seguida e como habitualmente, se aprestava para vigiar os movimentos de M.me Zephyrine, verificou, com grande surpresa, que a abertura fora obstruída do outro lado e mais surpreendido ficou quando o obstáculo à sua bisbilhotice foi retirado, de súbito, enquanto lhe chegava aos ouvidos, um riso abafado. Um pouco de estuque, caído no chão, traíra, decerto, o segredo do seu posto de observação e a vizinha resolvera pregar-lhe aquela partida.
Scuddamore experimentou uma viva contrariedade; recriminou M.me Zephyrine, de modo implacável, e chegou a culpar-se a si próprio. No entanto, quando, no dia seguinte, se deu conta de que ela nada fizera para o privar do seu passatempo favorito, continuou a tirar vantagens dessa aparente negligência e a satisfazer, com crescente frequência, a sua curiosidade doentia."
Robert Louis Stevenson (trad. Catarina Rocha Lima), As novas mil e uma noites, Colecção Vampiro, nº 660, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 2002.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, abril 10, 2008