quinta-feira, março 27, 2008
"- Bem --disse o chefe do pessoal do hotel aos criados que se encontravam mais próximos--, aí vêm de volta os nossos jericos!
Os criados, sacudindo os trapos gordurosos, dirigiam olhares francamente melévolos à turba heterogénea e silenciosa que ia tomando posse na esplanada, deixando-se cair nas cadeiras e ficando por ali sem fazer nada, comos e já houvessem naufragado. Lá estava a mulher desmedidamente gorda, com penas que mais pareciam troncos de árvore, em companhia do gordo do marido com o fato preto empoeirado e do seu buldogue branco. «Não, minha senhora», dissera-lhe na véspera o chefe do pessoal do hotel, com toda a sua dignidade. «Embora isto aqui seja o México, não permitimos que os hóspedes tenham cães nos quartos.» E a ridícula criatura beijara o focinho húmido do animal antes de o entregar ao rapaz encarregado de amarrá-lo no pátio da cozinha, onde passava a noite. Baby, o buldogue, suportara a provação com o silêncio macambúzio da sua raça e não guardara rancor a ninguém. Os seus donos, agora na esplanada, começaram logo a explorar as profundezas da grande cesta de provisões que levavam consigo para toda a parte.
Uma mulher jovem, alta, magra e grandes pernas, com uma cabeça pequenina, de cabelo curto, a balouçar-se na extremidade do pescoço esgalgado, a fímbria do vestido verde e justo a bater nas barrigas das pernas, chegou a falar em alemão com o seu companheiro, numa voz estrídula de pavoa. Ele era uma homenzinho rechonchudo e rosado, com um focinho de porco. Um indivíduo alto e desengonçado, de pés e maos descomunalmente grandes, o cabelo louro esbranquiçado cortado à escovinha, passou como se não tivesse reconhecido o hotel, voltou a trás e sentou-se à parte dos outros, caindo numa espécie de êxtase. Um menino ruivo, de aparência delicada, com uns oito anos de idade, ofegava e transpirava metido num trajo mexicano de montar, de couro alaranjado, as sardas cor de cobre a destacar-se na palidez esverdinhada da face. O pai, de ar doentio, e a mãe, triste e exasperada, amboas alemães, instigavam-no a caminha diante deles. O menino dizia monotonamente, enquanto se torcia todo:
- Quero ir, mãe, quero ir!
- Ir aonde? --perguntou a mãe em voz aguda. - Que é que tu queres? Fala claro. Vamos para a Alemanha. Isso não te basta?
- Quero ir --disse o pequeno em tom lamentoso, apelando para o pai.
Ambos trocaram um olhar e mãe disse:
- Meu Deus! Isto dá-me cabo da cabeça!
O pai segurou o rapazinho pela mão e conduziu-o apressadamente para a porta que ficava ao fundo do saguão.
- A ideia destes turistas --disse o chefe do pessoal do hotel para um dos criados. - Vestir um fato de couro a uma criança em Agosto. Até aprece um macaco!
A mãe desviou o rosto a estas palavras, corou, mordeu os lábios, e em silêncio cobriu a face com as mãos, a fim de se manter um momento em completa imobilidade na sua cadeira.
- Por falar em macacos, que me diz àquilo? --perguntou o criado, acenando de maneira quase imperceptível com o trapo na direcçãode uma jovem americana que vestia calças de algodão azul-escuro e uma camisa de algodão azul-claro. Um largo cinto de couro e um lenço de várias cores em volta do pescoço completavam a sua indumentária, que pedira emprestada, sem licença, ao trajo de trabalho dos índios mexicanos da cidade. Trazia a cabeça descoberta, com o cabelo dividido ao meio e enrolado em carrapito sobre a nuca --penteado um tanto fora de moda em Nova Iorque, mas ainda perfeitamente aceitável no México. O rapaz que a acompanhava vestia um bem talhado fato de linho e trazia um panamá na cabeça.
O chefe dos criados baixou a voz --não muito, contudo-- e pronunciou o mais grave insulto que conhecia:
- Quem sabe se é uma mula?
Ao afastar-se, notou com um rancor satisfeito que os americanos entendiam espanhol. A jovem empertigou-se, o belo nariz do companheiro tornou-se branco, com as narinas dilatadas, e os dois encararam-se como inimigos.
- Bem já te preveni de que devias, aqui, pôr uma saia --disse o rapaz. - Já devias sabê-lo.
- Bico calado --respondeu a rapariga numa voz cansada e inexpressiva. - Bico calado é o único remédio. Agora não posso mudar de roupa. Só depois de estarmos a bordo."
Katherine Anne Porter (trad. de Leonel Vallandro revista para Portugal por José Rodrigues Miguéis), A nave dos loucos, Círculo de Leitores, 1973.
posted by Luís Miguel Dias quinta-feira, março 27, 2008