domingo, março 16, 2008
"Agosto de 1931 -- A cidade e porto de Vera Cruz é para o viajante um pequeno purgatório encravado entre a terra e o mar. Os seus moradores, porém, sentem-se muito satisfeitos consigo mesmos e com a cidade que ajudaram a criar. Iniciados nos costumes locais, que reflectem a sua história e o seu temperamento, vão vivendo uma existência ora violenta, ora letárgica, com um risonho desprezo pela opinião alheia, estribados na fagueira ideia de que os seus hábitos e sentimentos estão acima de toda a crítica.
Quando folgam nas suas frequentes festas públicas e privadas, a imprensa noticia tais ocorrências numa prosa lírica, falando da alegria reinante e exaltando o gosto exuberante e aristocrático --para ela, termos sinónimos-- das decorações e das comidas e bebidas, e desmancha-se em elogios à habilidade com que as pessoas da alta-roda sabem dosear a cortesia mais reqintada com uma fácil jovialidade, segredo esse dos Vera-Cruzanos que a sociedade provinciana da capital inveja furiosamente e em vão procura imitar. «Só a nossa gente sabe divertir-se com largueza e maneiras civilizadas», escrevem os jornais. E prosseguem: «Somos generosos, cordiais, hospitaleiros, compreensivos.» Isso destina-se a ser lido não só por eles próprios, mas pelos bárbaros poliglotas do Planalto Central, que teimam em considerar Vera Cruz apenas como um pestilento lugar de embarque.
Há talvez um ligeiro sintoma de má consciência na pugnacidade com que essas asserções são feitas, bem como na metódica brutalidade de tratamento por via de regra dispensado aos viajantes que têm de passar pelas mãos dos Vera-Cruzanos antes de alcançarem o refúgio temporário de algum navio surto no porto. Os forasteiros só pensam em pôr-se ao largo e o único desejo dos habitantes é vê-los pelas costas --não, porém, sem primeiro lhes arrancarem todos os tributos, remunerações e gorjetas devidos à cidade e aos seus cidadãos. É realmente, aos olhos do visitante ocasional, uma típica cidade portuária, cínica por natureza, desavergonhada por experiência, afeita a expor aos olhos de estranhos os seus aspectos mais sórdidos: nove vezes em dez, o viajante em trânsito é um carneiro a pedir que o tosquiem, sendo o décimo um patife que seria uma lástima não empandeirar. Num caso como no outro, o que é preciso é tirar-lhes o dinheiro. E o tempo urge."
Katherine Anne Porter (trad. de Leonel Vallandro revista para Portugal por José Rodrigues Miguéis), A nave dos loucos, Círculo de Leitores, 1973.
posted by Luís Miguel Dias domingo, março 16, 2008